Conhecer e estudar a história da Igreja é algo que nos ajuda a compreender muitos dos acontecimentos de hoje e nos motiva a ter mais esperança na ação divina. Vejamos um caso particular.
O século IV viu o surgimento da sutil heresia do arianismo — uma negação virulenta da divindade de Jesus Cristo. Hoje isto nos parece “senso comum”: “É óbvio que Jesus é Deus! Como poderia algum cristão dizer o contrário?” No entanto, desde o fim da era apostólica, no século II, até o século IV, essa foi uma doutrina que a Igreja teve de declarar oficialmente para esclarecer a confusão da época.
O arianismo manifestou-se desde o começo do cristianismo. Nosso Senhor mesmo teve de mostrar que não era apenas um profeta poderoso, mas uma Pessoa Divina. Para isso, realizou milagres e falou com uma autoridade jamais vista em um profeta de Israel.
Depois de sua ascensão ao Céu, os Apóstolos do Senhor ensinaram sua divindade, desde a pregação de São Pedro em Pentecostes até o Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1). São João viu a necessidade de escrever seu Evangelho — tão notavelmente diferente dos outros três — para reforçar a doutrina de que Jesus Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, com uma natureza humana e uma divina.
E foi exatamente isso que acabou se tornando um obstáculo para muitos cristãos primitivos. A maioria das heresias que surgiram até o século IV envolviam erros de compreensão acerca de Jesus Cristo.
Esses erros alcançaram seu auge na teologia do padre Ário. Ordenado entre 312 e 313 d.C., em Alexandria, no Egito — um dos maiores centros de teologia cristã do mundo antigo —, Ário tinha uma história de adesão aos erros teológicos da seita lucianista e foi excomungado em 319 por Santo Alexandre, bispo de Alexandria. Apesar disso, ele era conhecido por seu ascetismo e sua pregação.
No centro de tanta controvérsia estava a palavra grega ὁμοούσιος (homo-ousios), que significa “da mesma substância”. Ário preferia a palavra ὁμοιούσιος (homo-i-ousios), que significa “de substância similar” — não igual em dignidade ou coeternidade com o Pai.
Como notou certa feita o grande padre e teólogo jesuíta John Hardon, nenhuma heresia jamais obteve sucesso sem antes receber o apoio de algum bispo católico. Não foi diferente com o arianismo. Embora Ário tivesse sido condenado pelo bispo Alexandre de Alexandria e pelo sínodo dos bispos egípcios em 321, o bispo Eusébio de Nicomédia era colaborador do heresiarca e favorito do imperador Constantino. Com o apelo de Ário ao poder político, em questão de poucos anos espalhou-se por todo o Império Romano a blasfêmia de que Jesus Cristo, longe de ser Deus, não passava de uma mera criatura.
Vendo os recém-legalizados cristãos divididos em um assunto tão importante, o imperador Constantino procurou reunir tanto o lado católico quanto o ariano para que eles chegassem a uma resolução. No ano de 325, então, em união com todos os bispos do mundo conhecido, ele convocou o Concílio Ecumênico de Niceia (atual Iznik, na Turquia). Quase dois mil bispos, padres e diáconos se juntaram para o concílio.
Em Niceia se reuniram grandes mentes católicas, como Santo Atanásio, à época diácono, Santo Hilário de Poitiers, São Nicolau e muitos outros. Embora Ário tivesse feito suas objeções, o concílio voltou-se contra ele, sustentando o ensinamento constante de Jesus Cristo tal como foi transmitido por seus Apóstolos.
Desde então, todos os católicos do Ocidente e do Oriente professam a divindade de Jesus Cristo tal como consta no Credo de Niceia: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas.”
Ário e os outros bispos que se recusaram a aceitar o Credo de Niceia foram excomungados pelo concílio e exilados na Ilíria pelo imperador.
Apenas três anos mais tarde, Eusébio de Nicomédia escreveu uma carta a Constantino em nome de Ário, e o heresiarca foi admitido de volta. Ao contrário do que ocorreu no Concílio de Niceia, desta vez o imperador se envolveu diretamente nos assuntos religiosos e fez da teologia de Ário sua opção pessoal. Ário passou os sete anos seguintes sob a proteção do imperador, tornando difícil a vida dos católicos. O heresiarca nutria um ódio especial para com Santo Atanásio e conspirou para que o santo fosse expulso de sua diocese cinco vezes.
Em 335, Constantino ordenou ao bispo de Constantinopla que desse a Ário a Santa Comunhão como sinal de reconciliação. O patriarca, ciente de que Ário não estava arrependido, rezou para que o heresiarca morresse antes de causar escândalo e cometer esse sacrilégio. Conta-se que, estando Ário a caminho da Missa (advertência de linguagem forte),
apoderou-se dele um medo nascido da consciência de seus crimes; e com violência, naquele mesmo instante, soltou-se-lhe o ventre. Perguntou então se por ali havia latrinas e, como lhe dissessem que estavam atrás do fórum de Constantino, para lá se dirigiu. Logo em seguida começou a desfalecer, e juntamente com os excrementos saiu-lhe também o ânus [...]. Seguiu-se então uma grande hemorragia, e por fim foi expelido o intestino delgado junto com o baço e o fígado. E assim morreu ele sem demora (Sócrates Escolástico, História Eclesiástica, c. 38, PG 67, 177-178).
Apesar da vitória dos católicos no concílio, a heresia continuou a espalhar-se entre os bispos e os leigos. Anos depois, São Jerônimo lamentaria: “Ingemuit totus orbis et arianum se esse miratus est — O mundo todo acordou em uma manhã, surpreendido e lamentando por descobrir-se ariano.” Tribos bárbaras como os godos, lombardos, vândalos e visigodos abraçaram a heresia e levaram-na até o século VI a muitas das terras do Império Romano fora da Itália. Lá pelo século VIII, entretanto, elas foram convertidas ao catolicismo.
Como se pode ver, a marca dessas grande crises que acontecem na vida da Igreja é a confusão. No século IV, mesmo depois que os bispos se reuniram para combater com força o erro da época, décadas foram necessárias para acabar com os efeitos mais imediatos do arianismo. Ao fim e ao cabo, porém, sempre permanece viva a promessa de Nosso Senhor no Evangelho: “Portae inferi non praevalebunt adversus eam — As portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja” (Mt 16, 18).
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