No calendário litúrgico anterior à reforma litúrgica de Paulo VI, o Tempo depois de Pentecostes (correspondente ao “Tempo Comum” de agora) era inaugurado com a parábola do grande banquete (cf. Lc 14, 16-24). O texto, proclamado no domingo seguinte à grande solenidade de Corpus Christi (o 2.º depois de Pentecostes), servia de “complemento” para os ensinamentos desta grande celebração [1], lançando uma luz sobre toda a nossa vida espiritual.

Em primeiro lugar, o banquete a que faz referência Nosso Senhor nesta parábola pode significar várias coisas. Numa outra versão da mesma história, presente no Evangelho de S. Mateus (22, 1-14), Jesus fala mais propriamente de um banquete “nupcial”, ou seja, de um casamento. Com essa analogia, Ele quer fazer referência à união entre Deus e o homem que já aconteceu em Jesus Cristo (e à qual chamamos “união hipostática”), à que está acontecendo hoje em nossa vida de oração e em cada comunhão eucarística (pois incorporamos ao nosso o Corpo de Cristo) e, por fim, à que acontecerá no fim dos tempos, quando nos unirmos a Ele de modo total e definitivo.

Concentremo-nos no segundo sentido da comparação: nossa comunhão com Deus através da vida espiritual. À luz disso, as desculpas que os convidados apresentam ao longo da parábola nada mais são do que as desculpas que nós mesmos apresentamos para não procurarmos a Deus e nos unirmos a Ele através da oração e dos sacramentos. No Evangelho, é um homem que comprou uma fazenda e precisa governá-la; é outro que comprou umas juntas de bois e precisa vê-las; é outro que se casou e precisa cumprir seus deveres conjugais… Ou seja, ninguém desocupado; são justamente os “ocupados demais” que Nosso Senhor procura repreender. 

O problema não está, evidentemente, em ter ocupações, posses ou uma família a cuidar. A grande questão, aqui, é que esses homens não compreendem (ou não querem compreender) que toda a sua vida deveria girar em torno desse banquete que é a oração íntima com Deus. O fato mesmo de eles apresentarem desculpas para não comparecerem ao festim já constitui um absurdo. Seria como alguém dizer que está “ocupado demais” para comer, por exemplo; que tem muito o que fazer e, justamente por isso, deixará de se alimentar… Ora, mas não é justamente o alimento que dará forças a essa pessoa para desempenhar bem suas atividades? 

É com esses olhos que devemos enxergar as desculpas que tantos de nós arrumamos para não rezar: “não tenho tempo”, “estou muito ocupado”, “minha vida é uma correria” são o tipo de frase que só se deve usar para coisas dispensáveis ou insignificantes. Se achamos que a oração seja isso, então a verdade é que nós ainda não entendemos nada de cristianismo. Pior do que isso: não entendemos nada da realidade do nosso ser, que tem uma necessidade profunda de Deus, uma inquietude que não cessará jamais, enquanto não repousarmos nele. Se é essa a nossa postura, somos como o homem orgulhoso descrito pelo livro do Apocalipse: 

Dizes: Sou rico, faço bons negócios, de nada necessito — e não sabes que és infeliz, miserável, pobre, cego e nu. Aconselho-te que compres de mim ouro provado ao fogo, para ficares rico; roupas alvas para te vestires, a fim de que não apareça a vergonha de tua nudez; e um colírio para ungir os olhos, de modo que possas ver claro (3, 17-18). 

O homem que vive sem oração e, além disso, não se dá conta do quanto precisa de Deus, é exatamente isto: um “infeliz, miserável, pobre, cego e nu”, que se acha “rico”, homem de “bons negócios” e “de nada” necessitado. Ou seja, é um soberbo

Mas essa soberba… quantas vezes pode vir disfarçada de humildade! São Gregório Magno, comentando a frase com que os primeiros convidados pretendiam desculpar-se — “Peço-te que me dês por dispensado” (em latim: Rogo te, habe me excusatum) —, ensina que “aquele que se escusa de ir à ceia de quem o convida, seja por causa da fazenda, seja para experimentar as juntas de bois, simula palavras de humildade: com efeito, enquanto diz ‘rogo-te’, mas se recusa a ir, soa-lhe na voz humildade, mas soberba na ação (humilitas sona in voce, superbia in actione)” [2].

O verbo usado pelo autor sagrado é mesmo providencial: Rogo. Ora, rogar é uma espécie de oração. Logo, também os soberbos “rezam”. Não são pagãos os homens da parábola. Não se trata de descrentes, ateus ou incrédulos. Primeiro porque Nosso Senhor contou essa história aos judeus simbolizando nos primeiros convidados justamente o povo eleito que não O quis receber; mas depois, numa interpretação mais ampla, esses convidados “ocupados demais” somos nós mesmos, os religiosos que acreditamos em Deus, mas vivemos como se Ele não existisse.

Rezamos, então? Ah, sim, rezamos! Mas o fazemos do nosso modo, em nosso tempo; as regras, somos nós que as ditamos; os termos, nós que os estabelecemos; a data, nós que a definimos. Rezamos, sim, mas os deuses, no fundo, somos nós.

Mas poderia o verdadeiro Deus se contentar com um culto prestado deste modo, com uma oração assim soberba? Não, não poderia ser. Nosso Senhor diz que os seus O adorariam “em espírito e em verdade” (Jo 4, 23), e não exteriormente, de modo fingido e dissimulado. Por isso, o texto da parábola diz expressamente que o Senhor se irou com esses homens “ocupados demais”, e que não provariam jamais do seu banquete. Seus lugares seriam ocupados por outros: “os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos” (et pauperes, ac debiles, et caecos, et claudos). 

E por que eles? Porque é essa a disposição interior que Deus espera de nós; Ele quer que nos reconheçamos necessitados dele, que nos demos conta de nossa pobreza, de nossa debilidade, de nossa cegueira e de nossa inconstância; e não que nos consideremos “plenos” e “autossuficientes” a ponto de O abandonarmos e pensarmos que temos tudo aquilo de que precisamos. Porque essa postura, no fim das contas, não passa de uma ilusão. Pauperes, debiles, caeci et claudi somos todos. A diferença é que uns andam na verdade do que são (e, por isso, são humildes), enquanto outros escolheram deliberadamente viver numa mentira: a de que se bastam a si mesmos.

E quem se basta... infelizmente deixa de participar do admirabile commercium que aconteceu no momento da Encarnação: 

Deus veio a esta nossa pobre terra para realizar uma troca; para dizer-nos, como só um bom Deus poderia fazer: “Tu me dás a tua humanidade e eu te darei a minha divindade; tu me dás o teu tempo e eu te darei a minha eternidade; tu me dás o teu corpo frágil e eu te darei a redenção; tu me dás o teu coração partido e eu te darei amor; tu me dás o teu nada e eu te darei o meu Tudo.” [3]

Quem se basta continua “humano demais”; continua aprisionado no tempo tão passageiro desta existência; continua preso às necessidades tão corriqueiras deste corpo mortal; continua vivendo no mundo limitado dos próprios sentimentos; continua fechado em seu “nada” e, no fim, não ganha o Tudo que o Preciosíssimo Sangue de Cristo nos veio comprar.

Não nos esqueçamos, pois, que o Céu é um dom, que a vida sobrenatural é um presente de Deus, e não algo a que possamos ter “direito” com um simples crachá que nos identifique como católicos ou cristãos. Disponhamo-nos às transformações verdadeiras, profundas e radicais que Deus realmente deseja operar em nós. Mas sem desculpas, sem artifícios, sem subterfúgios. Podemos até enganar os outros, ou tentar enganar a nós mesmos; mas Deus non irridetur, “de Deus não se zomba” (Gl 6, 7): Ele conhece o mais íntimo de nosso coração.

Referências

  1. Dom Prósper Guéranger explica que, “quando ainda não se havia estabelecido a festa do Corpus Christi, este evangelho já estava assinalado para este Domingo. O Espírito divino que assiste a Igreja na ordenação de sua liturgia preparava deste modo, antecipadamente, o complemento dos ensinamentos desta grande solenidade.” (El Año Litúrgico, t. IV: El Tiempo despues de Pentecostes (I). Burgos: Editorial Aldecoa, 1955, p. 113)
  2. S. Gregório Magno, apud Santo Tomás de Aquino, Catena Aurea in Lucam, c. XIV, l. 4.
  3. Fulton Sheen, “The Infinity of Littleness” (de 24 dez. 1933), in: The Eternal Galilean, Washington: National Council of Catholic Men, 1934, p. 12.

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