Desde os primeiros tempos, São Lourenço é venerado como santo padroeiro da cidade de Roma, junto com São Pedro e São Paulo, e sua festa sempre foi uma das mais importantes do ano eclesiástico.
Um número notável de igrejas romanas são dedicadas a ele; várias mais, na verdade, do que as dedicadas a qualquer um dos fundadores apostólicos da Igreja na Cidade Eterna. Entre elas estão a Basílica Patriarcal de São Lourenço Extramuros, onde ele está sepultado, e três das mais antigas paróquias do centro histórico da cidade: São Lourenço em Panisperna (o famoso local de seu martírio), São Lourenço em Lucina e São Lourenço em Dâmaso.
Essas quatro igrejas são frequentemente encontradas na lista de estações desde o Domingo da Septuagésima até a Oitava de Páscoa, próximas às observâncias em honra de São Pedro e São Paulo [1]. São Lourenço em Miranda foi uma das primeiras grandes igrejas a serem construídas no coração da vida política e religiosa da cidade antiga, o Fórum Romano; está situada no pórtico do templo do imperador Antonino Pio e sua esposa Faustina, em cujos degraus o grande mártir teria sido julgado e condenado.
Duas capelas particulares dos papas também são dedicadas a ele: São Lourenço in Palatio, no Latrão, e a Capela Nicolina no Vaticano. A primeira foi construída em meados do século VIII e, após várias restaurações e adornos, tornou-se uma capela papal cerca de três séculos depois; reconstruída por Nicolau III (1277-80), ela agora sobrevive apenas em parte dentro de um edifício conhecido como Scala Sancta, em frente à catedral do papa, do outro lado da rua. O apelido da capela, Sancta Sanctorum (“Santo dos Santos”), não vem de sua condição de capela papal, mas da incrível coleção de relíquias anteriormente guardadas no interior: entre elas, um pedaço da grelha na qual São Lourenço foi assado vivo, e algumas partes de seu corpo.
No período de 330 anos entre 1048 a 1378, os papas passaram aproximadamente 250 anos fora de Roma; depois de um período tão longo de negligência e abandono parcial, seguido por dois grandes incêndios ainda no século XIV, a maior parte do vasto complexo de edifícios ao redor do Latrão definitivamente não era mais habitável. Por isso, os papas fixaram residência no Vaticano, e desde então se encontram no mesmo lugar. Em 1447, Nicolau V construiu uma nova capela no Vaticano e comissionou o pintor dominicano Fra Angelico para pintar as paredes com histórias dos dois diáconos mártires, Santo Estêvão e São Lourenço, aos quais a capela é dedicada em conjunto.
A associação dos dois santos, naturalmente sugerida pelos paralelos entre suas vidas e mortes, figura de modo proeminente na arte e na liturgia em Roma. Ambos foram diáconos sob a autoridade do papa em suas respectivas cidades: Estêvão em Jerusalém, sob São Pedro, e Lourenço em Roma, sob São Sisto II, o mais venerado dos primeiros papas martirizados depois de Pedro. Ambos foram encarregados pelos papas a quem serviam das atividades de caridade da Igreja, e ambos eram pregadores eloquentes da fé cristã. Ambos ainda sofreram martírios terríveis: Estêvão por apedrejamento, como narrado nos Atos dos Apóstolos (c. 7), enquanto Lourenço foi assado vivo.
No ofício de Santo Estêvão, a terceira antífona das Laudes (citando parcialmente o Salmo 62, com o qual é cantada), diz: Adhaesit anima mea post te, quia caro mea lapidata est pro te, Deus meus, “Minha alma está presa a vós, pois minha carne foi lapidada por vós, ó meu Deus”. No ofício de São Lourenço, esta mesma antífona é alterada para: Adhaesit anima mea post te, quia caro mea igne cremata est pro te, Deus meus, “Minha alma está presa a vós, pois minha carne foi queimada no fogo por vós, ó meu Deus” [2]. A combinação artística dos dois, tão belamente feita por Fra Angelico, também se encontra duas vezes no Sancta Sanctorum que a Capela Nicolina substituiu, nos mosaicos sobre o altar e nos afrescos que lhe adornam as paredes.
Em 3 de agosto, um ciclo de festas de duas semanas associado a São Lourenço começa com a Invenção de Santo Estêvão, uma festa do calendário universal do Rito Romano até 1960. O corpo de Santo Estêvão foi descoberto no ano 415, junto com os de Gamaliel, seu filho Abibas e Nicodemos, quando Gamaliel apareceu a Luciano, um sacerdote de Jerusalém, e revelou o local de seu sepultamento coletivo.
As relíquias de Estêvão foram levadas a muitos lugares do mundo; no último livro de A Cidade de Deus, Santo Agostinho descreve uma série de milagres que aconteceram quando uma parte deles veio para a África, incluindo a ressurreição de seis pessoas. Outra parte delas foi trazida para Roma no reinado do papa Pelágio II (579-90), que os colocou na basílica de São Lourenço Extramuros; a Legenda Áurea relata que, quando o papa foi colocá-los na tumba de Lourenço, o mártir romano se afastou para dar lugar a seu companheiro levita.
O pórtico do início do século XIII ainda possui extensos vestígios de afrescos originais desse período, ilustrando a história dos dois grandes diáconos mártires; infelizmente, eles já estavam em más condições quando a igreja foi atingida por uma bomba durante a II Guerra Mundial, danificando-os ainda mais.
Em 6 de agosto ocorre a festa de São Sisto II, martirizado na catacumba de Calisto, junto com seis dos sete diáconos da igreja de Roma, o sétimo sendo Lourenço. Quando o édito de perseguição foi emitido pelo imperador Valeriano no ano 257, o santo papa ordenou a Lourenço que distribuísse toda a riqueza da igreja aos pobres da cidade. Tendo feito isso, Lourenço viu Sisto ser levado ao martírio e dirigiu-se a ele assim:
Aonde vais sem teu filho, pai? Para onde corres, sacerdote santo, sem teu diácono? Nunca ofereceste o sacrifício sem ministro. O que, pois, te desagradou em mim, pai? Porventura me achaste indigno? Prova com certeza se é idôneo o ministro que escolheste. Ao que confiaste a consagração do sangue do Senhor e o consórcio na consumação dos sacramentos, a este negas o consórcio de teu sangue?... Abraão ofereceu o filho (cf. Gn 22, 9), Pedro mandou Estêvão à sua frente (cf. At 7, 57), e tu, pai, mostra no filho tua virtude, oferece a quem educaste, para que, seguro de teu juízo, ele alcance a coroa em tão nobre companhia.
Ao que Sisto respondeu:
Não te deixo nem abandono, filho, mas te são devidas maiores batalhas. Nós, como velhos, recebemos o curso de uma luta mais leve; em ti, como jovem, brilha um triunfo mais glorioso sobre o tirano. Logo virás, deixa de chorar: após três dias me hás de seguir. Convém ao levita seguir o sacerdote.
Estas palavras da obra De Officiis, de Santo Ambrósio (I 41, nn. 204-205: PL 16, 84-85), formam a base de várias antífonas e responsórios no ofício de São Lourenço. Sisto e seus diáconos foram então decapitados por soldados romanos.
São Sisto tem o nome mencionado no cânon tradicional da Missa [N.T.: a atual Oração Eucarística I], imediatamente após os três primeiros sucessores de São Pedro, seguido por dois bispos contemporâneos também martirizados sob Valeriano, o papa Cornélio e São Cipriano de Cartago; São Lourenço é então nomeado primeiro entre os não bispos.
Uma igreja romana de estação perto do Latrão recebeu o nome de Sisto; ela foi confiada a religiosas dominicanas durante a vida de São Domingos, que morreu no dia de sua festa. (A igreja ligada à Pontifícia Universidade de Santo Tomás, também chamada Angelicum, é dedicada a Sisto e a Domingos.) Depois que seu fundador foi canonizado em 1234, a Ordem dos Pregadores celebrou sua festa no dia 5 de agosto, ao invés do dia de sua morte, em deferência à festa muito mais antiga — costume que permaneceu até as reformas do final do século XVI, quando São Domingos voltou um dia para dar lugar à festa de Nossa Senhora das Neves.
Da mesma forma, quando o papa Calisto III instituiu a festa da Transfiguração em 1456, designando-a para o dia 6 de agosto, muitas igrejas simplesmente o ignoraram porque o dia já era ocupado por São Sisto [N.T.: no calendário litúrgico atual, sua festa se celebra no dia seguinte, 7 de agosto].
O dia 9 de agosto, vigília de São Lourenço, também era observado antigamente como a festa de São Romão, a qual foi reduzida a uma comemoração na reforma tridentina [3]. Ele foi um soldado convertido a Cristo pela pregação de Lourenço, que o batizou quando estava preso, aguardando a execução; Romão foi decapitado por ordem do imperador um dia antes de Lourenço ser morto.
O dia 10 é a festa do próprio Lourenço, quando se consumou seu martírio sendo assado vivo em uma grelha; a tradição bizantina, que dedicou o dia 6 de agosto à Transfiguração séculos antes da Igreja latina, comemora Sisto, seus diáconos e Romão todos juntos, com o próprio Lourenço, neste único dia. A história de seu martírio é contada assim no Breviário Romano de 1529 (Valeriano aparece como um oficial sob o comando do imperador anterior, Décio):
Disse Décio ao bem-aventurado Lourenço: “Sacrifica aos deuses”. Ao que ele respondeu: “Ofereço a mim mesmo como um sacrifício a Deus, de suave odor, pois um espírito contrito é um sacrifício a Deus”. Mas os algozes foram em frente, ajuntando brasas e colocando-as debaixo da grelha [...]. Disse o bem-aventurado Lourenço: “Aprende, ó infeliz Valeriano, quão grande é o poder de meu Senhor, pois tuas brasas trazem-me refrigério, mas a ti acarretam tormento eterno; pois Ele sabe que não neguei o seu santo nome quando acusado, confessei a Cristo quando perguntado, dei graças enquanto era torrado” [...]. Todos os presentes começaram a se maravilhar, pois Décio havia ordenado que ele fosse assado vivo. Mas, com o mais gracioso dos semblantes, ele disse: “Dou-vos graças, Senhor Jesus Cristo, que vos dignastes fortalecer-me”. E levantando os olhos para Valeriano, disse: “Vê, infeliz, que assaste um lado; vira-me agora do outro, e come”. Dando graças, então, ele disse: “Dou-vos graças, Senhor Jesus Cristo, por haver merecido adentrar as vossas portas”. E, isto dizendo, entregou o espírito.
O dia 13 de agosto é a festa de Santo Hipólito, um oficial dos guardas na prisão onde São Lourenço estava detido, e também por ele convertido ao cristianismo. No Breviário de 1529, conta-se que ele teria levado o corpo de Lourenço para ser sepultado; reprovado por isso pelo imperador,e ameaçado de tortura e morte, ele respondeu: “Que eu seja digno de assemelhar-me ao bendito mártir Lourenço, a quem tu ousaste nomear com tua boca imunda”. Após a tortura, ele foi morto dilacerado por cavalos selvagens.
A história é normalmente descartada como uma invenção por estudiosos modernos, sob a alegação de que essa forma de morte, relatada pelo poeta Prudêncio, é a mesma do personagem mitológico grego Hipólito, o filho de Teseu que foi arrastado até a morte pelos cavalos de sua carruagem. Parece não ter ocorrido a nenhum dos céticos modernos que os perseguidores pudessem ter sido inspirados por seu nome a escolher essa maneira de matá-lo, imitando a história mitológica.
É certamente verdade que há muita confusão sobre a história de Hipólito; quando o papa São Dâmaso I (366-84) colocou um epitáfio sobre seu túmulo relatando seu martírio, ele afirmou que ele mesmo “confiava na tradição puramente oral, que ele não garante: ‘Dâmaso conta essas coisas que ouviu; é Cristo quem as prova’” [4].
Prudêncio também atesta ter sido pessoalmente curado de várias doenças, mais de uma vez, enquanto rezava na tumba de Hipólito. No Communicantes do cânon ambrosiano tradicional, Sisto, Lourenço e Hipólito são nomeados (nessa ordem) imediatamente após os doze Apóstolos, indicando quão grande era a devoção a eles na sé de Milão na antiguidade.
Como todas as festas mais importantes, a de São Lourenço era tradicionalmente celebrada com uma oitava [N.T.: até 1911, com a reforma do Breviário de São Pio X]; o dia da oitava, 17 de agosto, tinha uma Missa própria, como a oitava de São Pedro e São Paulo, pegando emprestada do dia da festa apenas a Epístola e o Evangelho.
O intróito desta Missa é tirado do Salmo 16, que também é rezado nas Matinas de São Lourenço: Probásti cor meum, et visitásti nocte: igne me examinásti, et non est invénta in me iníquitas, “Provaste o meu coração, e o visitaste de noite; no fogo me acrisolaste, e não foi encontrada em mim a iniquidade.” As palavras “visitaste de noite (meu coração)” referem-se à ameaça do imperador de torturar Lourenço durante toda a noite, ao que o grande levita respondeu: Mea nox obscúrum non habet, sed ómnia in luce claréscunt, “Minha noite não tem escuridão, mas nela todas as coisas brilham sob a luz.”
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