Já parou para pensar que, de certo modo, os Mandamentos começam de forma exigente e vão-se abrandando? É como um sermão que começa vibrante (“Não tereis nenhum deus diante de mim”), torna-se prático (“Honra teus pais”) e acaba tão genérico, que chega a soar como lugar-comum. Refiro-me ao último mandamento: “Não cobiçarás os bens do próximo”.
O nono já é mais específico (“Não cobiçarás a mulher do próximo”), mas o último realmente nos despede de um modo que o torna semelhante a algo simbólico. O texto, na versão integral da Sagrada Escritura, não diz apenas “Não cobiçarás os bens”, mas especifica vários deles: escravos, rebanho e todas as outras posses (cf. Ex 20,17).
No livro Eu vi Satanás cair como um relâmpago, René Girard oferece uma explicação do décimo mandamento e esclarece por que ele é tão importante. Na verdade, o primeiro e o décimo mandamentos servem de suporte aos outros oito, e reconhecer isso faz toda a vida moral e espiritual mais compreensível.
Girard explica que há algo distintivo no décimo mandamento em relação aos demais: “O décimo e último mandamento é diferente dos que o precedem, tanto por sua extensão como por seu objeto: em vez de proibir uma ação, proíbe um desejo”. O desejo é a chave de interpretação que permite diferenciar o décimo mandamento dos outros, mas que também nos indica como ser fiel a todos eles.
Quem tem filhos pequenos vai entendê-lo perfeitamente. A criança A vê que a criança B tem algo que parece bom, ou talvez apenas repare que o objeto parece agradar a criança B. A criança A, portanto, decide que quer aquela coisa, e está disposta a fazer de tudo para consegui-la, inclusive agir de forma violenta. Ela pode até mesmo argumentar que o objeto em questão na verdade lhe pertence, ou ao menos quer que lhe pertença, e está disposta a fazer tudo para atingir esse objetivo. Dizemos à criança, em tons adequados à maturidade dela: “Você só quer aquele caminhão porque o viu nas mãos dele!” Continuamos: “Você nem o queria há alguns minutos, quando estava brincando com o trenzinho!”
O fato é que todos os desejos nascem do encontro com os bens dos outros. Todos alteramos o objeto de nossos desejos quando vemos o carro novo do vizinho. Pense em algo que você quer muito… É sério, pense mesmo. O que você “deseja” como fruto deste dia e do seu trabalho? Prestígio? Um carro zero? Uma casa grande? Respeito? Popularidade? Ser um “líder”? Seja sincero, pare e pense: O que você quer? De que coisas gostaria que os outros soubessem que você é dono? Precisamos conhecer o “porquê” de nossas ações. Quer que os outros pensem que você é durão, equilibrado, moderado, inteligente, cuidadoso no trabalho, poético, rico ou disciplinado? Na verdade, quais são as coisas que você deseja e de onde veio esse desejo? Você as deseja porque as considera bens possuídos pelo próximo.
São Francisco de Sales nunca desejou um carro, não porque foi santo, mas porque nunca viu um. Antes de querer que um bem seja “meu”, devo primeiro conhecê-lo. Segundo Girard, é no desejo de “torná-lo meu” que violamos com uma tacada os primeiros [três] mandamentos — sobre Deus enquanto objeto único de adoração — e rompemos o dique dos conflitos humanos. Os mandamentos restantes [do quarto ao nono] são todos contra atos de violência em relação ao próximo: mentir, roubar e matar. O fato é que todas essas coisas são feitas para proteger o que possuímos ou conseguir o que o próximo possui. Que mais, senão o desejo, poderia motivar mentiras, roubos e assassinatos?
Há grande sabedoria na vida religiosa, cujos membros literalmente perdem de vista os bens alheios, e todos os que se veem são donos das mesmíssimas coisas.
(Um comentário à parte: há uma forma de ver os bens dos outros, até de desejá-los, sem os ambicionar. Chama-se amor. O amor alegra-se com os bens dos outros e os recebe com gratidão pelo doador quando isso acontece, sem qualquer sentimento de cobiça ou de manipulação.)
Estejamos seguros desta verdade: Deus criou um mundo abundante e cultivável, capaz de satisfazer as necessidades verdadeiras e naturais de todos os homens. Não há por que fazer guerra por recursos. Há-os suficientes para todos.
A criação não é um reality show cujos espectadores do céu assistem aos habitantes da terra lutar por por um montante limitado de bens, ao mesmo tempo que exigem deles que sejam “generosos”. Além disso, Deus nos criou para si mesmo. Logo, o nosso desejo mais legítimo — aquele a que os demais só podem tentar satisfazer — é o desejo de Deus, o qual se fez a si mesmo acessível por meio da razão, da Revelação e do dom direto da graça.
É verdade o que diz o salmista: “Nada me faltará” (Sl 22,1)... a menos que eu suba a cerca para ver se a grama do outro lado é mais verde. E ela é sempre mais verde, não só por ser a grama do vizinho, mas por ainda não ser a nossa grama. Quando o que está em jogo são bens, a desordem do pecado causa em nós ou o apego excessivo a eles por ciúme (um pecado possível, quando se possui algo) ou o desejo de os possuir por inveja (pecado que dá as caras quando ainda não se possui algo). Pouco depois de Adão e Eva terem aspirado à autonomia em relação a Deus, Caim invejou o bem de Abel e o matou por causa disso. A inveja a Deus e ao próximo são os dois primeiros pecados.
Eis a lógica dos dois “suportes” dos Mandamentos: “Deseje Deus, e não o que seu vizinho tem”. O décimo mandamento não é vago. É, na verdade, um remédio para a fonte de tanta desordem e pecado. Se fôssemos fiéis ao “Não cobiçarás as coisas alheias”, teriam fim não só as brigas de criança por um brinquedo, mas também as guerras, as discórdias, as contendas, as calúnias; numa palavra, todos os conflitos entre os homens.
Isso deveria nos iluminar e encorajar, particularmente durante a Quaresma. Oração, esmola e jejum [são as práticas típicas deste tempo]. Pela oração confirmamos e fortalecemos nosso verdadeiro e bom desejo por Deus; pela esmola damos algo ao próximo em vez de tentar tomar-lho; pelo jejum recordamos que os bens terrenos foram feitos para o homem, não o contrário.
Então, não: o último mandamento não é “vago”. Ele é a salvaguarda dos outros, porque os direciona pelo caminho do santo desejo.
Diz Pio XI na Encíclica Quadragesimo Anno:
Com efeito, a justiça sozinha, ainda que praticada com a máxima fidelidade, pode até remover as causas dos conflitos sociais, mas nunca poderá unir os corações e copular as almas. Ora, tudo quanto já se instituiu com o fim de firmar a paz e promover o auxílio mútuo entre os homens, por mais perfeito que pareça, tem o fundamento de sua firmeza no vínculo mútuo de almas que une os seus membros entre si, sem o qual, como muita vez o comprovamos pela experiência, mesmo as melhores disposições tornam-se ineficazes. Por isso, só poderá haver verdadeira cooperação de todos para o bem comum, quando as partes da sociedade sentirem intimamente que são membros de uma única e grande família, filhos do mesmo Pai celeste e, acima de tudo, um só Corpo em Cristo: “Sois membros uns dos outros” (Rm 12,5), de modo que, “se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele” (1Cor 12,26). Então os ricos e os outros próceres transformarão sua antiga incúria para com os mais pobres em amor solícito e operoso, acolherão de coração aberto suas justas reclamações e até lhes perdoarão sinceramente as culpas e os erros. Os operários, por sua vez, extinto todo sentimento de ódio e de inveja, do qual se servem tão insidiosamente os fautores da luta de classes, não só não aborrecerão o lugar que na sociedade humana lhes foi assinalado pela divina Providência, mas o terão em grande apreço, persuadidos de que trabalham, cada um em seu dever e ofício, útil e honrosamente para o bem comum e de que repisam com fidelidade os passos daquele que, embora fosse Deus, quis ser carpinteiro entre os homens e tido por filho de carpinteiro (AAS 23 [1931] 222-223).
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