Já que nos estamos aproximando do início da Quaresma, é bom refletir sobre como iremos vivê-la, de modo que nos purifiquemos de nossos pecados e nos preparemos para a celebração da Ressurreição do Senhor. De fato, temos de pensar em que orações e penitências faremos antes antes que a Quarta-feira de Cinzas caia de repente sobre nós. Era justamente esse o objetivo do antigo tempo da Septuagésima, ainda observado pelas comunidades que utilizam o rito romano tradicional.

Em nossos propósitos, precisamos ser específicos ao invés de vagos. Devemos também incluir algo positivo, e não apenas negativo (como “abandonar” isso ou aquilo), embora, é claro, seja uma penitência libertadora renunciar não apenas à sobremesa ou à bebida alcoólica, mas a algo que, para muitos, doeria na carne, como televisão, filmes, internet somente aos domingos etc. Aqui, porém, quero concentrar-me em uma prática positiva que, de tão frutífera, pode ser mantida por nós mesmo depois do tempo quaresmal: a lectio divina.

Os Padres do Deserto, que foram os primeiros monges a escolher a solidão no deserto do Egito, podem ensinar-nos muitas lições, pois lutaram contra o mundo, a carne e o diabo e deixaram-nos sua sabedoria na forma de metáforas e aforismos.

O monge Abba Poemen disse certa vez: “A natureza da água é suave, a da pedra é dura. Mas, se a água cai incessantemente, gota a gota, sobre a pedra, acaba por desgastá-la. O mesmo acontece com a palavra de Deus. Ela é suave e nosso coração duro; mas quem a ouve com frequência, abre seu coração ao temor de Deus”.

Nosso problema fundamental é a dureza de coração; por isso, buscamos do lado de fora alguma fonte que nele possa gerar uma abertura para o Espírito Santo, algo que o amoleça, melhor dizendo, como uma rocha a transformar-se no solo onde a nova vida pode crescer. Deus nos deu a Bíblia por muitas razões, mas certamente uma delas consiste em permitir que sua Palavra opere sobre nós, dia após dia, a fim de “derreter” esse coração congelado, penetrar nele e gerar vida. Meditar a Palavra de Deus é indispensável para que ela se torne conatural a nós, como o ar que respiramos, a água que bebemos, a luz que nos permite ver, o alimento que nos sustenta.

Em seu livro Cistercian Europe: Architecture of Contemplation (lit., “Europa Cisterciense: Arquitetura da Contemplação”, sem tradução portuguesa), Terryl Kinder escreve: “A lectio divina não deve ser compreendida da forma como entendemos a leitura hoje em dia, apenas para extrair informações. Ela constitui, na verdade, outra forma de leitura, que visa a transformação interior. É uma lenta ruminação das palavras da Escritura”. Kinder nos recorda que as palavras devem ser lidas lentamente com o movimento dos lábios, e não apenas de forma silenciosa na própria mente, como costumamos fazer quando lemos um texto qualquer. O objetivo de pronunciar as palavras suave e repetidamente é dar a elas espaço para “respirar”, escavar nossas memórias, ser absorvidas e influenciar nossos pensamentos. Kinder também afirma:

Na lectio divina — diferentemente da lectio scholastica (isto é, da leitura para o estudo ou por curiosidade) —, as palavras são mastigadas, digeridas e absorvidas como os alimentos o são; e assim como o alimento físico é metabolizado e transformado no material do próprio corpo, na lectio divina, o alimento espiritual dos textos sagrados é metabolizado e transformado na substância da própria alma. É uma assimilação do texto a si mesmo.

Dom Magrassi, na obra Praying the Bible: An Introduction to Lectio Divina (lit., “Rezando a Bíblia: uma Introdução à Lectio Divina”, sem tradução portuguesa), dá ênfase a esse mesmo aspecto:

O texto bíblico [...] obviamente não revela todas as suas riquezas ao ser ouvido pela primeira vez. Muito menos pode adentrar de imediato nas profundezas da vida humana e tornar-se um elemento vital do mundo interior de cada um. Essa escuta requer meditação amorosa, calma, reflexiva e pessoal sobre o texto [...]. Não basta comer o alimento; é preciso assimilá-lo, ou como diriam os antigos, “ruminá-lo”.

Essa imagem de uma vaca mastigando sua comida, além de divertida e simples, é ao mesmo tempo profundamente verdadeira. É grande o benefício que temos a receber, ao escolhermos um Evangelho, ou uma Epístola de São Paulo, e fazermos dele uma leitura lenta, capítulo por capítulo, ao longo da Quaresma — até mesmo relendo partes desse mesmo texto por mais de um dia seguido. Também podemos utilizar com fruto um missal quotidiano, para ler atentamente uma ou outra leitura da Missa do dia. É bom que as Escrituras sejam lidas na Missa, mas esse momento geralmente passa rápido demais para ser bem aproveitado. Precisamos “cavucar” mais de uma vez. Quando caminhamos lentamente por uma leitura a sós, algo que talvez tenhamos ouvido várias vezes na Missa sem prestar muita atenção pode, de repente, atingir-nos e transformar-nos.

Assim, nas palavras de Dom Magrassi, “o aprofundar-se torna-se personalização”: Deus fala ao seu povo, sim, mas Ele também está falando a cada pessoa. Sua Palavra é tão inesgotavelmente poderosa que é “feita sob medida” para mim: “Sua Palavra assume um tom e uma ressonância especiais para mim, revelando um plano especial e único que Ele tem para a minha vida [...]. O que o Senhor disse primeiro a todos, ouço-o como destinado para mim. Ouço uma Palavra que responde aos meus problemas, ilumina os meus passos e expressa o meu ideal”.

Onde aprendemos a ouvir? No silêncio, quando não estamos trabalhando, agindo ou fazendo algo, mas apenas estando presentes. Temos de combater nossa tendência decaída ao ativismo e à agitação, tornando-nos, na contramão disso, mendigos humildes que tudo recebem das mãos do Senhor. É claro que, ao recebermos algo, precisamos fazer algo com o dom recebido, de modo que não há contradição entre receptividade e ação, ser e fazer. Mas há uma primazia da primeira sobre a segunda, que é largamente negligenciada, ou mesmo negada, pelo pelagianismo da civilização moderna. Enquanto o lema do cristão é: “O que você tem que não recebeu de Deus?” (cf. 1Cor 4, 7); o do homem moderno ocidental é: “Eu sou, por minhas próprias forças, um homem pronto”.

Nesta Quaresma, sejamos primeiro receptores da Palavra de Deus, como Nossa Senhora, a fim de que possamos ser, então, seus fiéis cumpridores. Separe dez ou quinze minutos (ou mais, se puder) da primeira parte do seu dia, sente-se com a Bíblia (e talvez uma xícara de café ou de chá, que alguns consideram uma ajuda indispensável à oração da manhã), inicie com uma oração e comece a ler uma breve passagem lentamente, pronunciando as palavras com os lábios, repetindo os versículos, ponderando e deixando que as palavras extraiam de você uma resposta em suas próprias palavras, na forma de uma oração ao Senhor.

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