“Esta é a era do empoderamento feminino”, disse a advogada feminista Gloria Allred, em resposta ao movimento #MeToo (“Eu também”), que ganhou o mundo em 2017 depois que a atriz Alyssa Milano fez o primeiro tuíte com a hashtag, denunciando a gravidade do assédio sexual e convidando outras mulheres a revelarem suas histórias. Em pouco tempo, milhares de respostas vieram de toda parte, engrossando o coro feminino contra a “cultura do estupro”.
O estopim foi a denúncia de que o diretor Harvey Weinstein há anos assediava atrizes, modelos e funcionárias de seu estúdio em Hollywood, incluindo nomes como Gwyneth Paltrow e Angelina Jolie. Logo outras histórias vieram à tona, culminando na condenação não só de Weinstein, mas de uma série de personalidades do show business americano. No fim das contas, a celeuma serviu para, além de expor um problema gravíssimo, também questionar o status da mulher e o que se considera como seu “lugar de fala” dentro da sociedade.
Assim como o #MeToo, outras reivindicações femininas ao longo da história confrontaram a visão da mulher como o “sexo frágil”, condenando o comportamento vil de muitos homens que, movidos por uma falsa virilidade, tendem a tratá-las apenas como “objetos de prazer” e nada mais. Foi a sensação de desprezo, abuso e irrelevância que, em boa parte, levou 90% das islandesas à rua, em 24 de outubro de 1975, para participarem do “Dia de Folga das Mulheres”. De lá para cá, outras tantas bandeiras foram levantadas, sendo o #MeToo apenas mais uma delas.
Mas, como toda revolução, o perigo de jogar o bebê fora com a água do banho também é perceptível nesse contexto, e as bandeiras hoje ditas “feministas” nos levam a debater até que ponto esse suposto “empoderamento” é realmente uma redenção da mulher e se muita coisa não passa, na verdade, de uma amarga ilusão.
Uma narrativa em contradição
A pergunta é justa diante dos modelos de “mulheres poderosas” que nos são apresentados. É “poderosa” a mulher que não preza por qualquer pudor ou modéstia e dá de ombros aos padrões ditos “convencionais”. Recentemente, a apresentação de duas cantoras num evento esportivo foi celebrada pela imprensa como uma demonstração do “girl power”, por conta das suas coreografias eróticas e figurinos sensuais. Ali, no palco, elas estariam exercendo livremente a própria sensualidade, sem qualquer submissão ou tabu.
No fundo, a questão não parece ser o modo como a mulher é tratada sexualmente pelo homem, mas se ela aceita ou não ser tratada assim. Tudo depende do consentimento. O que se busca, portanto, é a emancipação da vontade feminina, de modo que a mulher possa fazer o que quiser, acima de qualquer juízo moral. E, consequentemente, o corpo dela acaba se convertendo num instrumento de protesto, numa bandeira com a qual ela afronta papéis, instituições e a sua própria sexualidade. Trocando em miúdos, a mulher deveria ser livre para, inclusive, não ser mulher.
O sucesso de visuais andróginos é muito representativo desse pensamento, porque desconstrói qualquer estereótipo de feminilidade. Como disse Simone de Beauvoir certa vez, “não se nasce mulher; fazem-na mulher” — on ne naît pas femme, on le devient. Desse modo, considera-se que, no ser da mulher, não há uma natureza, mas apenas uma construção social, um ideal feminino, que agora deve ser desfeito para dar vez à vontade de todo aquele ou aquela que se identifica como mulher, tendo ou não uma genitália feminina...
Nem todas as mulheres, porém, comungam desse ideal feminino, sobretudo no que diz respeito a temas como vida, sexualidade e família. E aqui a narrativa do “empoderamento” parece entrar em contradição. Quando uma mulher se recusa, por exemplo, a aceitar a ideologia de gênero, ela não só é criticada, chamada de “fascista”, “machista” e “transfóbica”, como também acaba sendo excluída do seu (chamado) “lugar de fala”. Não lhe é dado o direito de divergir, restando-lhe apenas o desprezo e a zombaria, ao passo que à mulher-trans, seja lá o que esse termo signifique, são reservadas todas as deferências. Isso é particularmente sensível na área dos esportes, uma vez que o Comitê Olímpico Internacional não exige sequer a cirurgia de mudança física para que um homem possa jogar contra mulheres numa competição. Basta ao atleta declarar que “sua identidade de gênero é feminina”, e pronto, ele já pode sair distribuindo porradas em ringues femininos.
Testemunho revelador
Acontece que nada vem do nada, sobretudo ideias. O “empoderamento” feminino, nos moldes descritos anteriormente, não surgiu da cabeça de uma mulher que, de repente, tomou consciência de si e de suas colegas. Na verdade, foi da cabeça de um homem, Kingsley Davis, que, por meio de sua aluna, Adrienne Germain, convenceu as fundações Rockefeller, Ford, MacArthur etc. a investirem em engenharia social, a fim de mudarem o comportamento e a mentalidade das mulheres, especialmente sobre maternidade e família. Obviamente, não é possível reduzir a complexidade do tema à intervenção de uma ou duas pessoas, mas o financiamento de ONGs feministas por fundações internacionais é coisa amplamente documentada e admitida publicamente pelas próprias feministas.
O testemunho de Frances Kissling, fundadora das Catholics for Choice [no Brasil, CDD: “Católicas pelo Direito de Decidir”], é revelador nesse sentido. Numa entrevista a Rebecca Sharpless, em 2002, ela contou como “o fato de ter recebido uma doação da Fundação Ford” representava, para sua organização recém-criada, “um ponto de virada”, porque aquilo “significava que tínhamos sido finalmente admitidas naquele [outro] mundo”, ou seja, na militância abortista. Dentre as fundações listadas por Kissling estavam, além da Ford, outras como a Sunnen e a Playboy, todas interessadas na propaganda dos “direitos reprodutivos” como meio para o controle populacional. Em 2007, o jornal The New York Times divulgou que o orçamento anual das CDD chegava a três milhões de dólares, por meio do financiamento dessas fundações, especialmente da Ford.
O papel das ONGs é importantíssimo para a propaganda cultural, dada a representatividade delas na imprensa e na política. Na audiência pública sobre a legalização do aborto no Brasil, em 2018, essas entidades se apresentaram ao STF como legítimas porta-vozes das mulheres, ainda que a maioria dos brasileiros seja contrária a qualquer mudança na legislação sobre o tema.
No caso das “Católicas pelo Direito de Decidir”, elas têm a missão específica de minar a imagem da Igreja perante a opinião pública, impingindo-lhe a pecha de “machista”, “misógina”, e “intolerante”, porque, como explicou Frances Kissling na mesma entrevista, “a moral católica é a mais desenvolvida”, de modo que, concluiu ela, “se você puder derrubá-la, derrubará por conseqüência todas as outras”. Daí todo o investimento das fundações, a fim de criar um espantalho da Igreja e seduzir as mulheres para sua suposta agenda de “empoderamento”.
A Igreja oprimia as mulheres?
É frequente a acusação de que a Igreja Católica oprime as mulheres por não as admitir ao sacerdócio ou por conta da sua moral sexual [1]. Mas, no fundo, o que se pretende com tal ataque é, segundo Judith Butler, “a luta por aceitar o desejo como princípio de deslocamento metafísico e dissonância psíquica e o esforço orientado por deslocar o desejo com o fim de derrotar a metafísica da identidade” [2]. Traduzindo: trata-se de desmoralizar a única instituição no mundo que, no contexto atual, ousa proclamar que existe uma natureza humana — donde derivam os direitos e deveres da pessoa —, natureza que homens e mulheres devem respeitar e não podem manipular como lhes apetece [3].
A verdade é que, longe de oprimir as mulheres, a consciência da Igreja sobre a natureza humana foi justamente o que as libertou, numa época em que o direito romano e a cultura pagã as consideravam inferiores aos homens. Estes tinham direito de propriedade sobre esposas e filhos, podendo dispor de suas vidas como bem quisessem. O cristianismo, por sua vez, com sua noção de natureza humana, elevou o status da mulher à mesma dignidade do homem, considerando-a também “imagem e semelhança de Deus”, conforme ensinou São Paulo: “Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus” (Gl 3, 28). Essa novidade do cristianismo foi decisiva para o fenômeno das conversões entre as mulheres na Igreja primitiva.
O sociólogo Rodney Stark afirma taxativamente que “a mulher cristã desfrutava de segurança e igualdade conjugal bem maiores do que as de suas congêneres pagãs” [4]. E a razão disso, conforme avalia Stark, é que, com o advento da moral cristã, o feminicídio foi proibido e a castidade passou a valer também aos homens. Ademais, as viúvas cristãs tinham o privilégio de não precisar casar de novo, o que lhes permitia desfrutar livremente da herança de seus maridos. E se, por um lado, as moças romanas eram obrigadas a casar antes mesmo da puberdade, tendo o casamento consumado logo após a cerimônia, as mulheres cristãs, por outro, não só podiam se casar mais velhas como tinham o direito de escolher seus maridos.
A virgindade, nesse contexto, era tanto uma virtude como um grito de independência da mulher. As donzelas cristãs tiveram apoio da Igreja para escapar de casamentos forçados, impostos pelos pais, tendo muitas delas optado pelo martírio, como foi o caso de Santa Bárbara. E “negar a autoridade do pai de família, o único cidadão total, proprietário, chefe militar e sacerdote, no seu lar e na sua cidade era abalar o fundamento de toda uma sociedade”, explica a historiadora Régine Pernoud [5]. Por isso, o culto das santas mulheres foi algo bem notável no início do cristianismo, como consequência do “papel ativo que as mulheres tiveram no domínio da evangelização, numa época em que o Ocidente hesita entre paganismo, arianismo e fé cristã” [6].
Idade Média, apogeu da redenção feminina
Mas se enganaria quem pensasse que essa redenção feminina, por assim dizer, foi algo particular da Igreja nascente. Na verdade, como Régine Pernoud afirma, “o apogeu corresponderia à idade feudal: do século X ao fim do século XIII”, período em que, segundo ela, “as mulheres exercem então, incontestavelmente, uma influência que não obtiveram nem as bonitas mulheres da Fronda do século XVII, nem as severas anarquistas do século XIX” [7]. De fato, Pernoud apresenta um conjunto de referências bem convincentes em seu livro A mulher no tempo das catedrais, leitura indispensável para quem acredita que a Igreja jamais concedeu “lugar de fala” às mulheres e lhes deve alguma desculpa por isso.
Exemplo contundente é o da santa religiosa Hildegarda de Bingen. Ela exerceu tal influência sobre o seu mundo que recebeu do próprio Papa Eugênio III a autorização para sair do claustro e pregar publicamente a vida mística e a doutrina cristã. Mosteiros masculinos e femininos acorriam a ela para pedir conselhos espirituais ou de outra natureza, dada a familiaridade da santa em assuntos de medicina, ciências naturais e inclusive música. O Papa Bento XVI, que a colocou no seleto rol dos Doutores da Igreja, disse que, em seus escritos, Hildegarda “manifesta a versatilidade de interesses e a vivacidade cultural dos mosteiros femininos da Idade Média, contrariamente aos preconceitos que ainda pesam sobre aquela época” [8].
Podemos aludir ainda a uma Santa Catarina de Sena — analfabeta, pobre, humilde, mas de grande sabedoria, a quem o Papa Gregório XI confiou missões diplomáticas num tempo de severa crise social e eclesiástica — ou à querela entre Henrique VIII e a Santa Sé — quando esta se colocou ao lado de Catarina de Aragão, não do infeliz monarca —, como provas inconcussas de que a fé católica jamais teve qualquer inclinação misógina. O declínio social da mulher só aconteceu na modernidade, quando esta mesma Igreja foi posta de escanteio para dar lugar à revolução protestante, com a abolição do culto à Virgem Maria, e ao paganismo renascentista, com o culto ao corpo:
Tão-logo foi suprimida a autoridade da Igreja, a postura do marido em relação à mulher tendeu a retornar ao ideal pagão do mestre e do dono em lugar de um afetuoso amigo, companheiro e protetor. Evidências claras da triste deterioração do prestígio da mulher podem ser vistas na literatura inglesa dos séculos XVII e XVIII, quando os efeitos destrutivos do protestantismo na vida social já podiam ser percebidos plenamente. A estima e o respeito cortês pelas mulheres [...], reflexo da inigualável glória da Rainha do Céu, desapareceu da literatura inglesa [...]. A mulher voltou a ser valorizada apenas por seu sexo; e aquela que não exercia atração sexual (ou deixara de fazê-lo) muitas vezes era alvo de piadas grosseiras demasiado repulsivas à mentalidade verdadeiramente cristã [9].
O silêncio quase absoluto sobre esses fatos é simplesmente ideológico, porque nenhuma dessas mulheres católicas serve à causa dos “direitos reprodutivos”, por mais “empoderadas” que tenham sido. Para combater a “masculinidade tóxica”, elas não reivindicaram uma “feminilidade tóxica”, não condenaram o matrimônio, não queimaram sutiãs, não se despiram em cima dum palco, nem defenderam a legalização do aborto ou qualquer coisa do gênero. Pelo contrário, elas empunharam as armas da oração e da virtude, com as quais domesticaram os bárbaros, convertendo-os a Nosso Senhor. Não custa lembrar que, nas sagradas páginas do Evangelho, é a voz de Maria Santíssima que escutamos repetidas vezes, nunca a de São José. Mas nem a Mãe de Deus nem as demais santas mulheres têm “lugar de fala” dentro do feminismo.
Fundações empoderadas, não mulheres
Entretanto, as mulheres já começam a colher os frutos desse empoderamento artificial. Os homens podem continuar a tratá-las impudicamente, desde que elas consintam. E assim temos as “poderosas” canções de funk, sertanejo, pop etc., com letras do tipo que não ousamos citar aqui, ou os filmes feministas, que não temem explorar o fetiche masculino por lésbicas para conquistar uma boa bilheteria. Com tamanho estímulo, só poderia dar nisto: “Casos de feminicídio crescem 22% em 12 estados durante a pandemia” [10].
É hora de as mulheres entenderem que a luta por “direitos reprodutivos” não é nada libertadora. Na mesma entrevista a Rebecca Sharpless, Frances Kissling dizia que sempre se perguntou o porquê de as fundações investirem tanto nos “direitos reprodutivos” e se elas continuariam a luta por esses direitos se ficasse provado que tal investimento não resulta num menor número de bebês. “Eu perguntei isto para um mundo de pessoas, e a maioria não quis responder a estas perguntas quando eu as fiz”. Kissling mesmo concluiu que seu trabalho servia apenas para empoderar as fundações, não as mulheres.
Desde o seu “lugar de fala”, Santa Catarina de Sena notava sabiamente que o mal da sociedade de seu tempo não era a Igreja ou a família, mas justamente a ausência de virtudes nos membros dessas instituições, que as rebaixavam e humilhavam com seus vícios e prevaricações. Uma coisa é a Igreja (ou a família) em si mesma, outra é quem dela abusa em benefício próprio. Por isso, não faltou à santa a bravura para dizer ao Papa, a quem considerava o “doce Cristo na terra”, estas palavras de encorajamento: “Seja homem”. Foi assim que Catarina, sempre piedosa, sempre contemplativa, pôs o clero e os demais homens de seu tempo no caminho da reta razão, levando o Papa Urbano VI a declarar: “Vede, meus irmãos, como nos tornamos desprezíveis aos olhos de Deus, deixando-nos tomar pelo medo. Esta pobre mulher nos envergonha” [11].
Para um texto que já vai longe demais, ainda teríamos exemplos mais recentes, como o de Madre Angélica, fundadora da TV católica EWTN, cujos protestos sobre a polêmica tradução inglesa do Catecismo foram acolhidos pelo então Cardeal Ratzinger, em oposição a muitos bispos; ou o de Madre Pasqualina Lehnert, que exerceu grande influência no Vaticano de Pio XII. A lista, no entanto, já é suficiente para desfazer qualquer desconfiança sobre as damas católicas. Diz um ditado antigo que, por detrás de todo grande homem, há sempre uma grande mulher. Oxalá não faltem mulheres com essa envergadura nos dias de hoje.
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