A Santa Igreja instituiu uma festa especial para nos recordar a graça que a infinita misericórdia de Deus nos concedeu ao nomear os santos anjos para a nossa proteção temporal e espiritual. Essa festa deve nos lembrar de dar graças a Deus por esse grande benefício, e de mostrar nossa gratidão aos santos anjos por seu cuidado e solicitude. Para que isso possa ser feito com o devido zelo e devoção, reflita bem sobre as seguintes observações.

O Todo-Poderoso criou um número incontável de espíritos celestiais, imortais por natureza, e concedeu-lhes graças especiais. Sim, um número incontável, pois é dito na Sagrada Escritura: “Pode ser contado o número de suas legiões?” ( 25, 3). Por “legiões” entendem-se seus anjos. Em outro local, está escrito: “Milhares e milhares o serviam, dezenas de milhares o assistiam!” (Dn 7, 10). 

Esses espíritos celestiais são divididos em três classes, e cada classe em três coros; portanto, consistem em nove coros. O primeiro, e mais elevado, é formado pelos serafins; o segundo, pelos querubins; o terceiro, pelos tronos; o quarto, pelas dominações; o quinto, pelos principados; o sexto, pelas potestades; o sétimo, pelas virtudes; o oitavo, pelos arcanjos; e o nono, pelos anjos. Todos circundam o trono do Altíssimo, louvam constantemente sua Majestade infinita e estão sempre prontos para executar suas ordens; ainda assim, cada um desses coros tem sua função distinta, como nos ensinam os teólogos. Deus atribuiu a cada ser humano um guardião para o proteger, tirado deste nono ou último coro. Por isso são chamados anjos da guarda. Assim ensina a Santa Igreja, e não se pode duvidar que seja verdadeiro este ensinamento, pois está fundamentado nas palavras da Sagrada Escritura. 

Um anjo custódio vigia o sono de uma criança às margens de um riacho. Pintura de Melchior Paul von Deschwanden.

A cada ser humano é dado um anjo, um príncipe do Céu para proteger sua alma e seu corpo, encorajá-lo na adversidade, consolá-lo na tristeza, fortalecê-lo nas tentações, socorrê-lo nos perigos, impedi-lo de fazer o mal, incitá-lo a fazer o bem e, assim, conduzi-lo ao Céu, se ele for obediente ao seu anjo da guarda. Exatamente como nos tempos antigos, quando foi dado por Deus aos israelitas um anjo específico, a fim de protegê-los e conduzi-los à terra prometida: “Eis que enviarei o meu Anjo, que irá adiante de ti, e te guardará no teu caminho, e te conduzirá ao lugar que tenho preparado” (Ex 23, 20). Portanto, Ele dá a cada homem um anjo para protegê-lo ao longo do caminho desta vida e conduzi-lo felizmente ao Céu — do qual era símbolo a terra prometida. 

Detenha-se aqui, caro leitor, e considere a grandeza desta benevolência de Deus para conosco. Desde que o mundo é mundo, jamais ouvimos falar de um monarca que desse a um dos seus nobres cortesãos a ordem de permanecer continuamente ao lado de um camponês comum, ou de outro homem de baixa condição, para cuidar dele e conduzi-lo em segurança a uma terra distante. 

Mas nossa santa fé nos ensina que aquilo de que nunca se ouviu falar a respeito de um rei temporal foi feito para nós pelo grande e misericordioso Deus, Rei do Céu e da terra. Ele deu a cada um, até à mais miserável das criaturas, um dos príncipes do Céu, para cuidar deles, acompanhá-los constantemente e abrir-lhes as portas do mundo eterno. Que graça inestimável! Que bondade infinita! Avalie, meu caro leitor, se não tem todos os motivos para dar graças ao Altíssimo, que mostrou uma bondade tão infinita em relação a você e, portanto, está preocupado com sua salvação. Renda-lhe graças, hoje, de um modo especial, pois foi para isso que se instituiu a festa que celebramos. 

Reflita, além disso, em como nos veem os anjos, a quem fomos confiados por Deus. 

“O Anjo da Guarda”, por Henri Decaisne.

Eles estão perfeitamente satisfeitos com aqueles que foram colocados sob sua responsabilidade, sejam eles pobres ou ricos, de posição nobre ou humilde. Desempenham sua missão com todo o amor e solicitude. “Eles nos amam”, diz São Bernardo, “porque Cristo nos amou”. Provam seu amor por obras, afastando de nós muitos perigos do corpo e da alma e protegendo-nos milagrosamente. Eles nos impedem de fazer o mal, animam-nos a fazer o bem e fortalecem-nos para que resistamos às tentações de Satanás. Quando somos réus de pecado, encorajam-nos a fazer penitência, de modo a aplacar a ira divina e afastar de nós o merecido castigo; alegram-se quando fazemos penitência e convertemos nosso coração a Deus; oferecem nossas orações, jejuns e outras boas obras ao Todo-Poderoso e rezam por nós. Eles não nos abandonam, quer estejamos dormindo quer estejamos acordados, quer estejamos bem de saúde quer estejamos doentes; auxiliam-nos durante a vida e na hora da morte, e acompanham nossas almas até o tribunal do Altíssimo. 

A Sagrada Escritura está cheia de exemplos que provam tudo isto, e muitos outros são encontrados na história da Igreja e nas vidas dos santos. 

Um anjo salvou o faminto Ismael do perigo de morte. Um anjo preservou a vida do obediente Isaac, detendo a espada desembainhada de seu pai. Um anjo conduziu o piedoso Lot para fora de Sodoma, impedindo-o de ser queimado com o resto de seus habitantes. Um anjo protegeu os israelitas de todos os seus inimigos. Um anjo alimentou o profeta Elias no deserto e deu-lhe forças para prosseguir em sua longa viagem. Um anjo livrou o piedoso Rei Ezequias e a cidade de Jerusalém de muitos milhares de inimigos, matando todos numa só noite. Um anjo preservou ileso o profeta Daniel no meio dos leões, e levou o profeta Habacuc para alimentá-lo. Um anjo conservou ilesos os três companheiros do mesmo santo profeta na fornalha da Babilônia. Um anjo acompanhou o jovem Tobias como guia durante sua viagem, e instruiu-o quanto ao modo como deveria desposar a casta Sara, para evitar que o Maligno o prejudicasse, como havia sido feito a outros sete, mortos pelo diabo. Além de ajudá-lo de várias outras maneiras, salvou-o também do perigo de ser devorado por um peixe monstruoso. O mesmo anjo ofereceu ao Todo-Poderoso as orações do velho Tobias, restituindo-lhe depois a visão. Um anjo protegeu a casta Judite de grandes perigos da alma e do corpo. Um anjo ensinou ao centurião Cornélio como poderia salvar sua alma. Um anjo libertou São Pedro da prisão e do risco de morte. Um anjo preservou a vida de São Paulo e de outros que estavam com ele numa embarcação. 

“São Pedro libertado por um anjo”, de Giovanni Francesco Barbieri.

Muitos outros fatos semelhantes se encontram na Sagrada Escritura e nas vidas dos santos. E o que são todos esses fatos senão provas do amor e da solicitude dos anjos por nós? Reflita sobre sua vida pregressa e veja se você mesmo não recebeu provas suficientes da devoção e do cuidado de seu santo anjo da guarda. O fato de não ter perdido a vida em muitos perigos que o cercavam; o fato de ter sido preservado de muitos pecados; o fato de não ter morrido em pecado, e ter ganhado tempo para fazer penitência; o fato de ter recebido do Todo-Poderoso tantos benefícios espirituais e temporais: tudo isso e muitos outros favores devem ser atribuídos à poderosa proteção, amor e cuidado do seu santo anjo da guarda, bem como à sua intercessão, por você, diante de Deus. 

Face a tantas bênçãos, tanta vigilância, tanta devoção e indescritível solicitude, é razoável concluir que você deve ser particularmente grato ao seu santo anjo da guarda. É claro que, em primeiro lugar, você deve agradecer ao Onipotente, que o colocou sob a proteção de um príncipe do Céu tão nobre e tão bondoso. Mas São Bernardo também nos exorta a agradecer àqueles que, obedecendo à vontade de Deus, velam por nós com tanto amor e ajudam-nos em todas as nossas necessidades. “Sejamos cheios de devoção e gratidão para com tão poderosos protetores”, diz ele, “retribuamos o amor com amor e esforcemo-nos por honrá-los de todo o coração”

Quando Deus prometeu aos israelitas enviar um anjo a fim de protegê-los em sua viagem e conduzi-los à terra prometida, acrescentou: “Fica de sobreaviso em sua presença, e ouve o que ele te diz. Não lhe resistas, pois ele não perdoaria tua falta, pois o meu nome está nele” (Ex 23, 21); ou seja, ele é um representante de Deus. Tais palavras indicam que você deve provar com obras a sua gratidão.

“Tobias e o Anjo”, por Szymon Czechowicz.

“Honra-o”; esta é a primeira coisa que Deus exige. “Honra-o”, porque ele é um anjo de Deus, seu representante, um grande príncipe do Céu. “Honra-o”, porque Deus o elevou a uma grande glória; ele vê a face do Altíssimo e muitas vezes age em seu nome. “Honra-o”. Você honra o seu anjo da guarda se o invoca com confiança em todas as suas preocupações, especialmente quando sua alma ou seu corpo estão em perigo, nas grandes tentações, na vida e na morte. Tão logo Tobias percebeu o risco de ser devorado por um peixe monstruoso, chamou seu fiel guardião, que era um anjo: “Senhor, ele lança-se sobre mim!” (Tb 6, 3). Pediu ajuda e recebeu-a instantaneamente. 

E você, por que não haveria de recorrer, com a mesma confiança, ao seu anjo da guarda, sobretudo quando o monstro infernal, o leão que ruge, como o chama a Sagrada Escritura, o demônio, o Maligno, o tenta a pecar, e assim se esforça por devorá-lo? “Sempre que uma grande dor ou tentação aproximar-se de ti”, escreve São Bernardo, “invoca teu guia e protetor, e dize: ‘Senhor, ajuda-me, senão haverei de me perder!’”

“Obedece à sua voz”, diz o Senhor. Ele fala à sua alma por movimentos interiores ou inspirações. Por exemplo, se estiver em perigo de pecar, ele lhe diz: “Afasta-te do mal, evita o pecado”. Se estiver cercado de más ocasiões, ele lhe diz: “Retira-te daqui! Foge depressa.” Se tiver cometido um pecado, ele o exorta: “Faz penitência! Volta sem demora para teu Deus!” Do mesmo modo, ele o admoesta interiormente a praticar boas obras, a ser mais zeloso no serviço de Deus, mais solícito por sua salvação. Obedeça a esta voz, a este apelo de seu santo anjo da guarda. Não fazê-lo, é sinal de que o despreza, e isso é contrário à ordem de Deus, que não o deixará impune, pois de algum modo é uma ofensa à sua Majestade. Obedeça sempre à voz de seu anjo da guarda e não o ofenda com a desobediência, pois, caso contrário, não será digno de sua proteção.

Para concluir, apresento-lhe uma admoestação memorável de São Bernardo. Ele o exorta a recordar constantemente a presença de seu anjo e a honrá-lo devidamente em todos os lugares. Porém, diz ele, a principal forma de fazer isso é evitando o pecado, pois pecar na presença dele contraria todo o respeito que lhe é devido. Eis as palavras do santo Doutor: “Em todos os lugares, manifesta ao teu anjo a honra que lhe é devida, e não ouses cometer em sua presença o que não ousarias fazer se eu estivesse por perto.” Em outro lugar: “Caminhemos na presença dos anjos de modo a não ofender-lhes a visão”. E ainda: “Devemos guardar-nos para não ofendê-los, e por isso devemos praticar assiduamente todos os exercícios que sabemos serem agradáveis a eles, como a temperança, a castidade, a pobreza voluntária, as orações devotas etc.” 

Grave essas palavras profundamente em seu coração, pois elas contêm o melhor conselho quanto aos meios de honrar o seu santo anjo da guarda, e garantir a si mesmo sua amorosa e poderosa proteção durante a vida e na hora da morte. Evite tudo o que sabe que lhe é desagradável, e pratique, com grande zelo, tudo o que estiver convencido de que lhe será agradável.

Considerações práticas

I. O Todo-Poderoso colocou você sob a proteção de um anjo. Agradeça-lhe hoje por tão grande benefício. Agradeça também ao seu anjo da guarda por todo amor e carinho que até agora sempre lhe dispensou. Mostre-lhe sempre a devida honra, de acordo com as admoestações do Senhor. Não fique nenhum dia sem se colocar, ao menos de manhã e à noite, sob sua poderosa proteção. Faça o mesmo se for assediado por preocupações, mágoas, tristezas ou tentações, e em todos os perigos que lhe assolam a alma ou o corpo. 

Rogue a ele com frequência para que o guarde, especialmente no perigoso combate que terá de travar com o espírito infernal em sua última hora. A Santa Igreja o aconselha a fazer isso quando, em nome de todos os fiéis, invoca os santos anjos da guarda: Sancti Angeli custodes nostri: defendite nos in proelio, ut non pereamus in tremendo judicio“Ó santos anjos nossos da guarda, protegei-nos no combate, para que não pereçamos no tremendo juízo”

O anjo da guarda, por Domenico Zampieri.

Lembre-se de que seu anjo está sempre perto de você, especialmente na igreja e quando é tentado a pecar. Não faça nada de que viesse a envergonhar-se na presença de uma pessoa justa e digna. Obedeça à voz de seu anjo, como manda o próprio Deus. O anjo lhe fala no fundo do coração; admoesta-o por meio de homilias, sacerdotes e livros devotos. Não despreze suas exortações, mas siga-o, quando ele o chamar. Evite tudo o que o desagrada, e faça tudo o que lhe for agradável. O pecado, como ofensa a Deus, o aborrece, especialmente todo pecado contra a castidade. Evite-o. As boas obras, o zelo no serviço de Deus, a piedosa frequência aos santos sacramentos e a modéstia na igreja o agradam; portanto, pratique-os fielmente. Deste modo, você se tornará digno da poderosa proteção de seu anjo da guarda durante a vida e na hora da morte.

II. Seu santo anjo obedece de modo perfeito ao Todo-Poderoso. Por ordem divina, encarregou-se de você e a experiência já o convenceu de que ele cumpre bem a própria missão. Você também deve ser obediente a Deus. Ele lhe confiou uma alma preciosa e imortal, e ordenou-lhe que cuidasse bem dela — ofício que redundará em seu próprio benefício. Se tiver filhos, empregados ou outras pessoas sob sua responsabilidade, Deus também os entregou aos seus cuidados. Seja obediente a Ele e cumpra o seu dever. 

Antes de mais nada, preocupe-se com sua salvação. Seu anjo da guarda é um espírito puro, que sente um enorme pavor ante a mínima sombra de impureza. Imite-o. Deteste tudo o que é impuro, por mais insignificante que possa parecer. Não considere insignificante nada que possa ferir a castidade, pois não pode sê-lo nada que desagrade à divina Majestade ou ao seu anjo da guarda.

Seu santo anjo o acompanha com alegria à igreja. Lá, com grande reverência e acompanhado de muitos outros anjos, ele adora o seu Salvador, verdadeiramente presente no tabernáculo. Imite-o. Alegre-se por ir à igreja e ali adorar o seu Deus com angélica reverência. Faça suas orações de tal maneira que seu santo anjo possa oferecê-las com satisfação ao Todo-Poderoso. Não profane suas devoções com palavras desnecessárias, olhares vãos, atitudes indecentes ou outras irreverências semelhantes. Deus exige um sacrifício sem mancha, e seu santo anjo não apresentará nenhum outro à Majestade divina. 

Embora esteja encarregado de você e o acompanhe constantemente, seu anjo desfruta da presença de Deus, louvando-o e glorificando-o sem cessar. Imite-o, pensando frequentemente no Altíssimo durante as tarefas do dia, trabalhando em sua presença e louvando-o, por meio das orações que fizer em determinados momentos, ao renovar os seus bons propósitos e com breves jaculatórias piedosas. Se seguir seu santo anjo na terra, desfrutará também de sua convivência no Céu. Escreve São Beda, o Venerável: “Se quisermos alcançar a companhia dos santos anjos no Céu, não devemos negligenciar nada para segui-los na terra.”

Referências

  • Extraído, traduzido e adaptado passim de: Lives of the saints: compiled from authentic sources with a practical instruction on the life of each saint, for every day in the year, v. 2. New York: P. O’Shea, 1876, p. 278ss.

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