Muitos não sabem, mas por muito tempo se acreditou que o Brasil havia sido descoberto em 3 de maio de 1500, e não em 22 de abril, como hoje se sabe. Foi com a publicação da Carta de Pero Vaz de Caminha, em 1817, que isso mudou [i]. 

E por que 3 de maio? Porque, no calendário litúrgico da época, era celebrada neste dia a festa da Invenção (Inventio) da Santa Cruz [ii]— isto é, o aniversário do dia em que Santa Helena, a mãe do Imperador Constantino, teria encontrado em Jerusalém o verdadeiro madeiro em que foi pregado Nosso Senhor Jesus Cristo, no ano 326.

Também disto veio o primeiro nome com que foi chamado o nosso país: Terra de Vera Cruz, isto é, terra da Cruz verdadeira. “Vera Cruz” porque, quando Santa Helena foi a Jerusalém à procura deste santo lenho, ela se deparou com três cruzes, e foi um milagre o que separou a Cruz verdadeira das falsas:

Provavelmente, ninguém fez mais para promover a veneração das relíquias sagradas do que Santa Helena, mãe do Imperador Constantino. Ele conquistou o Império Romano sob o signo da Cruz e queria que sua mãe encontrasse a Vera Cruz — a maior relíquia da fé cristã —, a fim de que ela pudesse ser cultuada e venerada por toda a Igreja. Em sua busca pela mais preciosa das relíquias, Helena viajou, então, para Jerusalém.

Ela começou perguntando aos moradores de Jerusalém se alguém sabia onde poderia estar a Cruz, mas ninguém tinha informação precisa sobre isso. Finalmente um judeu lhe disse que, segundo a crença local, a Cruz possivelmente estaria debaixo do templo de Vênus. Helena pediu que o templo fosse destruído (sem nenhum diálogo inter-religioso) e começou uma escavação. Três cruzes foram descobertas. 

Mas qual era de fato a Cruz de Nosso Senhor? O bispo de Jerusalém viu um cortejo fúnebre nas redondezas e ordenou que o cadáver fosse levado até ele. O corpo do defunto foi colocado sobre cada uma das cruzes e, quando depositado sobre a Vera Cruz, o homem ressuscitou. Fôra encontrado o instrumento da nossa salvação!

Some-se a isso o sinal da Cruz que havia nas caravelas que aqui chegaram. Era o símbolo da Ordem de Cristo, uma Ordem religiosa e militar que, em Portugal, havia herdado a missão e as posses dos antigos Cavaleiros do Templo de Jerusalém — os famosos Templários. (Em todos os outros territórios europeus, a Ordem dos Templários foi simplesmente abolida; em Portugal, continuou a existir, só que com outro nome.) Pedro Álvares Cabral, o descobridor do Brasil, era membro desta Ordem.

Acrescente-se por fim, no céu dos mares meridionais, a presença de uma constelação nova: o grande Cruzeiro do Sul. Tudo isso se juntou para dar à nossa terra este primeiro nome.

“Elevação da Cruz em Porto Seguro”, de Pedro Peres. Fato acontecido em 1.º de maio.

A ligação entre o dia 3 de maio e o nome com que fomos batizados é atestada pelo Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil de 1627:

O dia em que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz… era 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz, em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra, que havia descoberta, de Santa Cruz, e por este nome foi conhecida muitos anos. Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha nos desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome, e lhe ficasse o de Brasil.

A segunda Missa no Brasil

Veio a célebre Carta de Pero Vaz de Caminha e jogou toda esta simbologia por terra? É o que poderíamos ser tentados a pensar, mas não: este documento de nossa fundação só veio para lançar ainda mais luz sobre os acontecimentos históricos que culminaram no descobrimento de nossas terras. Por isso, todo brasileiro deveria fazer a si mesmo o bem de a ler, na íntegra, ao menos alguma vez na vida. 

Na verdade, se colocarmos nossos filhos e estudantes em contato com esse documento histórico de nossa origem, muitas das trevas em que permaneceram ou estão, por conta de nosso sistema educacional deficitário, não tardarão em se dissipar. Nele fica claro, por exemplo, o grande impulso evangelizador que movia os navegadores portugueses. Não foi por acaso que a luz de Cristo veio brilhar no Brasil, mas porque homens heroicos não pouparam esforços para elevar às alturas o candelabro da fé católica, iluminando povos distantíssimos.

Deixamos registrados abaixo apenas alguns trechos da Carta em questão, cientes de que, longe de desacreditar nosso primeiro batismo como “Terra de Santa Cruz”, ela só confirma ainda mais nossa vocação e identidade sobrenaturais. 

O excerto que selecionamos não é da primeira Missa no Brasil, que data de 26 de abril de 1500, mas da segunda, rezada a 1.º de maio (na época, festa dos Apóstolos São Filipe e São Tiago, transferida no calendário atual, curiosamente, para o dia 3 de maio). 

“A Primeira Missa no Brasil”, de Victor Meirelles.

Repare o leitor que a famosa pintura de Victor Meirelles, intitulada “A Primeira Missa no Brasil”, parece corresponder em um e outro aspecto mais ao relato abaixo, da segunda Missa, que ao da primeira. Seja como for, são belos tanto o quadro do pintor brasileiro quanto a descrição feita pelo escrivão lusitano (os grifos são nossos):

Quinta-feira, derradeiro [dia] de abril, [...] disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto, se os degredados que aqui hão de ficar, aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente, esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer, creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!

[...]

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar rio acima, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio [onde] haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta [distante] do rio. Andando-se ali nisto, viram bem cento e cinquenta, ou mais. Plantada a cruz com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, [assistindo] a ela, perto de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, e estando assim até chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles que tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!

Acabada a missa, tirou o Padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos [São Filipe e São Tiago] cujo é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso procedimento tão santo e virtuoso [de sorte] que nos causou mais devoção.

Esses que estiveram sempre à pregação, estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um [a] sua ao pescoço. Por essa causa (ou por essa coisa) se assentou o Padre Frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos — um a um — ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta. E isto acabado — era já bem uma hora depois do meio-dia — viemos às naus a comer, [para] onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu (e um seu irmão com ele). Àquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.

E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior — com respeito ao pudor.

Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive, se se converterá, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.

Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.

Creio, Senhor, que com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos nossa partida daqui.

Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o Sul vimos, até a outra ponta que contra o Norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia… Muito chã e formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos — terra que nos parecia muito extensa.

Até agora não podemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares, frescos e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo dagora assim os achávamos como os de lá. [As] águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! 

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calecute, [isso] bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber acrescentamento da nossa santa fé [iii]! 

Esta comovente narração também pode ser muito útil para nossa época, tão dada a uma falsa inculturação e tão temerosa em anunciar a verdade de Cristo e da Santa Igreja. Nas palavras do Prof. Peter Kwasniewski, analisando justamente esse relato

Podemos olhar para esses missionários como um retrato lúcido do que parece e como funciona a evangelização cristã. Eles não começam construindo hospitais, escolas ou estradas, nem cavando poços ou distribuindo comida e mantimentos, muito menos tentando interferir em estruturas políticas e econômicas. Eles nem sequer começam pregando (o que teria sido difícil, de todo modo, até que eles aprendessem o suficiente do idioma local). Tampouco começam tentando espiar o que faz o pajé a fim de descobrir meios rápidos de adaptar o culto cristão ao espírito do lugar.

Não. Eles começam construindo um santuário improvisado, com cruz e altar, e cantando em latim o Santo Sacrifício da Missa, na forma que receberam da tradição. Isso, é claro, atrai de imediato a curiosidade e o respeito dos nativos: todos se dão conta de que algo importante está a acontecer e alguns logo percebem o caráter transcendente e religioso do ato. Após a Missa, dá-se um pouco de pregação (a Missa em si não é perturbada por esse elemento meramente humano), e então o padre começa a distribuir cruzes aos espectadores bem dispostos. Não há hesitar nem gaguejar, nenhum medo de “atropelar” os direitos dos nativos nem ninguém “cheio de dedos” com a cultura indígena. A necessidade fundamental de todo ser humano decaído é encontrar a Cruz, vir a conhecer o próprio Salvador — e é a ela que se dá satisfação em primeiro lugar e sobre todas as coisas.

Notas

  1. A Carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1.º de maio de 1500 e endereçada desde o Porto Seguro de Vera Cruz ao Rei D. Manuel de Portugal, só se tornou pública depois da vinda de D. João VI para nossas terras, no século XIX.
  2. Inventio, do verbo latino invenire, significa “encontrar”, “descobrir”. Daí, na linguagem jurídica, denominar-se inventor “aquele que acha coisa alheia perdida e tem a obrigação de devolvê-la”.
  3. Esta versão da Carta de Pero Vaz de Caminha encontra-se na História da Colonização Portuguesa do Brasil (v. 2, Porto, 1923, pp. 86-99) e na História do Brasil do Prof. Pedro Calmon (v. 1, 3. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, pp. 65-84). Teve sua linguagem atualizada em 1923 por Carolina Michaelis de Vasconcelos, Professora de Filologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Para esta publicação, teve os trechos escolhidos levemente adaptados.

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