Publicamos abaixo, aproveitando a proximidade do dia de Finados, um poema de Dom Francisco Aquino Corrêa à memória de sua mãe. A poesia foi escrita em 1905, quando o bispo nem era padre ainda: com apenas vinte anos, estava em Roma estudando para o sacerdócio. A essa altura, porém, dona Maria de Aleluia Guadie Ley já há doze anos partira, ou seja, o menino contava apenas oito aquando de sua morte. 

Ao fim vão algumas notas, com o significado de algumas palavras e uma e outra explicação, como auxílio à leitura.

Caveira idolatrada

À memória de minha mãe [1]

Eu a vi! Do coveiro aos pés jazia,
Onde nem uma flor a coloria,
     Nua, ignorada a vi!
A tarde semimorta o extremo raio
Enviava a beijá-la, de soslaio,
     Desde os céus de rubi.

A música era mesta [2]. O bosque arfava…
O povo que, em silêncio, me cercava,
     Nem notou o meu penar!
Fitei os olhos na caveira branca,
E, em meio à turba, o coração me arranca
     Tristíssimo cismar…

Há doze anos que aí a sepultaram…
Bem me lembro! Era em maio; me acordaram,
     E ela era morta já.
A manhã cor-de-rosa além nascia,
E minha mãe, sem cor, lívida, se ia…
     Morta a vejo inda lá!

Tinha um frio palor… [3] Desfeito o laço,
Os cabelos castanhos, no regaço,
     Vinham caracolar.
O roxo cílio os olhos clausurara,
E na boca o sorriso lhe murchara,
     Para não mais brotar!

De roxo e negro minha mãe vestiram…
E à mesa da varanda a conduziram,
     Deitada no caixão.
Meu pai e meu irmão e irmãs sem fala,
As crioulas, em pranto, iam beijá-la,
     No rosto e na alva mão.

Meu pai me ergueu nas mãos hirtas de gelo;
Os seus prantos molharam-me o cabelo,
     E o que senti nem sei!
Mas me inclinei por sobre a face fria:
Na escumilha [4] violete que a cobria,
     Soluçando, a beijei!

Era o último adeus! Ela partia!
Toda a casa ululava! O meio-dia
     Começava a cair…
Fui ao jardim de grades encarnadas;
No caminho sombrio de ramadas,
     Vi o enterro sumir.

À hora quente ermara-se a campina… [5]
Só as copas em flor, rara bonina
     Jogavam no caixão.
Perfumavam o esquife as mesmas flores,
A cuja sombra, de infantis verdores,
     Passei minha estação [6].

Fugiu-me assim a meninice pura,
Sem beijos, sem carícias, sem doçura,
     Ó minha mãe, sem ti!
A adolescência, como em doidas valsas,
Arrebatou-me! De alegrias falsas
     Fundo cálix sorvi!

Hoje beijo essa lúrida [7] caveira!
E busco, em vão, teu vulto, a cabeleira,
     A face, a boca, o olhar…
Assim ai! A inocência em vão buscaras,
Que em meus olhos e lábios tu beijaras,
     Minha mãe, a cantar [8]!

Lá fora a mocidade baila e grita:
“Rosas, flori! Na abóbada infinita,
     Astros! mundos! parai!
Quero boiar no azul das harmonias,
Rolar, morto, ao tumulto das orgias,
     Onde a sorrir se cai!”

Rajada vespertina traz-me o harpejo,
E eu palpito, deliro, ardo, louquejo,
     Desgarrado de mim!...
Mas nesse crânio a ilusão se esmaga,
Qual sobre escolhos, a irisada vaga,
     No oceano sem fim!

Ah! rasgue-se a cruel filosofia,
Que do órfão triste nessa ossada fria
     A esperança contém!
O crânio é um livro e a pálida caveira
Duma mãe, é qual santa e verdadeira
     Bíblia do eterno além!

Sim, tu, só tu, ó Religião materna,
Dominas nos sepulcros! Firme e eterna,
     Quebras o arcano horror!
Aqui, só tu, com a minha alma casas:
Subo contigo nas cerúleas asas,
     Mostras-me o meu amor.

Vejo-te, ó mãe! Num arrebol celeste,
Aquela, cujo nome em vida houveste [9],
     Rogas, meiga, por mim.
Sim! Pede por teu filho! É mau o mundo,
Simula beijos por morder mais fundo,
     Tem serpes no jardim.

Sou inda moço; minha alma suspira,
Que nem as cordas de encantada lira,
     À menor ilusão!
Que Ela cuide de mim, qual tu cuidavas;
E onde reina o ermo e o amor, sem vozes pravas [10],
     Fale-me ao coração.

Ora descansa! Possa ir um dia,
Em paz com Deus, à tua campa fria,
     Meu cadáver também…
E até que o anjo entoe os seus clangores,
À sombra repousar das mesmas flores,
     E à luz do sumo Bem!

Notas

  1. Dom Francisco de Aquino Corrêa, “Caveira idolatrada”. In: Nova et Vetera, Poética, v. 1, t. III, Edição do Centenário: Brasília, 1985, p. 21ss.
  2. Mesto: Triste. (N.A.)
  3. Palor: O mesmo que palidez.
  4. Escumilha: Tecido de lã ou seda muito fina e transparente. Também fita preta de tecido elástico usada como braçadeira, ou no chapéu, em sinal de luto. (Aulete)
  5. Ermara-se a campina, isto é, a campina havia se tornado erma, vazia, solitária.
  6. Isto é, vieram perfumar o caixão de sua mãe as mesmas flores à sombra das quais o eu-lírico passou a infância. Estação, aqui, refere-se a um período da vida qualquer. Mas os infantis verdores (da sombra ou da estação?) aludem, sem dúvida, à sua meninice e imaturidade.
  7. Lúrido: Pálido.
  8. Aqui, o primeiro uso do pretérito mais-que-perfeito é simplesmente um recurso elegante, empregado no lugar do futuro do pretérito. É como se o eu-lírico dissesse, portanto: “Ó minha mãe, a inocência que em meus olhos e lábios tu, a cantar, havias beijado” quando viva, agora “buscarias em vão” no mesmo lugar.
  9. Aquela, cujo nome em vida houveste: A Virgem Maria. Alusão ao nome de sua mãe, que era também Maria.
  10. Pravo: Mau, perverso.

O que achou desse conteúdo?

Mais recentes
Mais antigos