Cristo, Senhor nosso, disse a seus discípulos que o segredo daquele dia é reservado só ao Padre, e que nem os anjos do céu o sabem, nem ele o sabia em foro que o pudesse revelar: “De die autem illa et hora nemo scit, neque angeli in caelo, neque Filius, nisi Pater — Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, mas só o Pai” (Mt 24, 36). Contudo, eu me não arrependo, nem me desdigo do que prometi. Prometi de vos dizer com certeza quando há de ser o dia do Juízo. E quando cuidais que há de ser? 

Não vos quero ter suspensos. É hoje, foi ontem, há de ser amanhã, e não amanhece nem anoitece dia, que não seja certamente o dia do Juízo. Que coisa é o dia do Juízo? É um dia em que se há de acabar o mundo, é um dia em que Cristo nos há de vir julgar, é um dia em que havemos de dar conta de toda a nossa vida, e em que os bons hão de ir para o céu e os maus para o inferno. Não é esta a essência e substância do dia do Juízo? Sim. Pois isto é o que se faz hoje, o que se fez ontem, o que se há de fazer amanhã e todos os dias. Acaba-se o mundo todos os dias, porque para quem morreu acabou-se o mundo. Vem Cristo a julgar todos os dias, porque no ponto em que cada um expira, logo o vem julgar, e julga, não outrem, senão o mesmo Cristo. Toma-se conta, e estreitíssima conta de toda a vida, todos os dias, porque no dia da morte, e no mesmo instante dela, se toma e se dá esta conta. Finalmente, vão os bons para o céu e os maus para o inferno todos os dias, porque todos os dias os que morrem, ou são absoltos e vão para o céu, ou condenados, e vão para o inferno. Vamos agora ao Evangelho, e vejamos como este mesmo Juízo, e na mesma forma em que o tenho declarado, é o que hoje nos prega Cristo.

Tinha Cristo, Senhor nosso, pregado o mesmo Evangelho que ouvistes, tinha anunciado a seus discípulos os sinais tremendos que hão de preceder ao Juízo, e o poder e majestade com que o mesmo Senhor há de vir em pessoa a julgar o mundo, e conclui com as palavras que tomei por tema: “Amen dico vobis, quia non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant — De verdade vos prometo e afirmo que não há de passar a presente geração, sem que tudo o que vos tenha dito se cumpra”. Este é um dos dificultosos lugares de toda a história evangélica. Uma geração, em frase da Escritura, quer dizer uma idade ou um século, porque o mais que chega a durar a vida humana são cem anos [...]. 

Aqui está a dificuldade. Daquele tempo para cá, tem passado mais de mil e seiscentos anos, e já temos contado dezesseis séculos, e estamos no século dezessete, e o dia do Juízo ainda não chegou. Além desta demonstração, segundo as opiniões que acima referimos, o mundo provavelmente ainda há de durar, ou muitos ou alguns séculos, antes do dia do Juízo, pois, como diz o Senhor, e com tão particular asseveração, que tudo se havia de cumprir dentro do mesmo século que então corria, e que se não havia de acabar aquele século sem que viesse o dia do Juízo: Non praeteribit generatio haec donec omnia fiant

Assim o disse e afirmou a verdade eterna, e assim se cumpriu naquele século, e cumprirá nos seguintes, porque nenhum homem houve naquele século, que dentro do mesmo século não tivesse o seu dia do Juízo. Como as vidas e as idades geralmente não passam de cem anos, nenhum homem há que não acabe a vida dentro do mesmo século a que pertence, e nenhum há que não seja julgado no tribunal de Cristo, e tenha o seu dia do Juízo no mesmo século. Os que morrem hoje têm o seu dia do Juízo hoje; os que morreram ontem, tiveram o seu dia do Juízo ontem; os que morrerem amanhã, e daqui a vinte anos, amanhã e daqui a vinte anos terão o seu dia do Juízo, mas sempre dentro do mesmo século e da mesma idade ou geração: Non praeteribit generation haec, donec, omnia fiant [...].

Aqui vereis qual é o tudo do dia do Juízo, e que é o que Cristo chama tudo. O tudo do dia do Juízo é a conta da vida que o mesmo Cristo há de tomar; é a sentença que há de dar, segundo os merecimentos dela; é o céu ou inferno para sempre, a que cada um há de ser julgado; o demais são acidentes e aparatos do Juízo universal, e não a substância do mesmo Juízo, a qual se não distingue dos juízos particulares. Desta substância e deste tudo do Juízo universal é que falou o Senhor na sua conclusão, e porque esta substância e este tudo se não distingue dos juízos particulares que se fazem na morte, por isso disse que tudo se havia de cumprir dentro daquele século, como verdadeiramente se cumpriu. 

E se quisermos reparar na propriedade das palavras donec omnia fiant, ainda acharemos nelas mais particular energia, porque no dia do Juízo final, não se há de fazer coisa alguma de novo, senão declarar-se somente o que já está feito. Os juízos particulares, que se fizeram na morte, esses mesmos são os que se hão de publicar no Juízo universal, e o juízo não se faz quando se publica a sentença, senão quando se dá: logo no dia da morte é que propriamente se faz o Juízo, e tudo isto, que faz agora, e não depois, é o que o Senhor disse que se havia de fazer dentro daquele século: Non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant

Para tirar toda a dúvida, ouçamos ao mesmo Cristo em caso muito mais apertado, e que a podia fazer maior. No capítulo quinto de S. João, fala o Senhor do dia do Juízo final com maiores e mais intrínsecas circunstâncias, porque faz menção da ressurreição universal dos mortos, e da sentença, também universal, dos bons e dos maus, segundo o merecimento de suas obras: “Omnes qui in monumentis sunt, audient vocem Filii Dei: et procedent qui bona fecerunt, in resurrectionem vitae; qui vero mala egerunt, in resurrectionem judicii — Todos os que repousam nos sepulcros ouvirão a voz do Filho de Deus e sairão: os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de julgamento” (Jo 5, 29-30). E declarando o mesmo Senhor quando há de ser este tempo, diz que há de vir, e que agora é: Venit hora, et nunc est (Jo 5, 25). 

Pode haver proposição mais encontrada? Há de vir o dia do Juízo, e já agora é? Se o dia do Juízo estava tão longe, se há mil e seiscentos anos que ainda não veio, e se ainda não sabemos quando há de ser aquele dia ou aquela hora, como diz o oráculo de Cristo que já é: Venit hora, et nunc est? Admirável e literalmente S. Jerônimo, e se eu lhe pedira o comento, não o pudera escrever com mais ajustadas palavras: “Quia quod in die judicii futurum est omnibus, singulis in die mortis completur — Aquilo que a todos acontecerá no dia do juízo cumpre-se em cada um no dia da sua morte”.

Diz o Senhor que o dia do Juízo há de vir, e que já é, porque, ainda que o dia do Juízo há de ser depois, e muito depois, o dia da morte é já agora; e o que se há de cumprir em todos no dia do Juízo, cumpre-se em cada um no dia da morte: Singulis in die mortis completur. Notai o completur. As outras profecias cumprem-se a seu tempo, esta do dia do Juízo tem o seu cumprimento antes de tempo, porque aquilo mesmo que se faz agora, é o que se diz que há de ser então. Então hão-se de examinar as obras, então há-se de pronunciar a sentença, então hão de sair uns absoltos, outros condenados, e tudo isto que então se há de fazer no dia do Juízo é o que se faz ou está já feito agora no dia da morte. Por isso diz o Senhor que aquele dia está por vir e já é: Venit hora, et nunc est. Nunc: agora. Estes dois advérbios de tempo, então e agora, sempre são opostos; mas no dia do Juízo, comparado com o da morte, ainda que a morte seja dois mil anos antes que o Juízo, não tem oposição. O agora é então, e o então é agora. No nosso Evangelho diz o mesmo Senhor: Tunc videbunt: então verão, e aquele então é agora, aquele tunc é nunc: Tunc videbut, et nunc est [...]. 

De maneira, senhores, que o conceito que ordinariamente fazemos do dia do Juízo é muito enganoso e muito errado. Consideramos o dia do Juízo como uma coisa medonha e espantosa, mas que está lá muito longe, como as serpes nas areias da Líbia, ou os crocodilos no Nilo, e por isso nos não faz medo. Não é assim; o dia do Juízo não está longe; está tão perto como o dia de amanhã, e como o dia de hoje, e como esta mesma hora em que estamos: Venit hora, et nunc est. O vale de Josafá não está só em Jerusalém, nem entre o Monte Sião e o Olivete; está em Lisboa, está neste mesmo lugar, e em todos os do mundo. Se vos tomar a morte no mar, ou na campanha, ou na vossa cama, o mar, a campanha, a vossa cama é o vale de Josafá, e esse dia, qualquer que for, é o vosso dia do Juízo, ou mais cedo, ou mais tarde, mas dentro deste mesmo século em que nascemos: Non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant.

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