A promessa e a entrega do primado a Pedro não é um fato isolado no Evangelho. Toda a narração histórica do ministério de Cristo conspira em atribuir no colégio dos Doze um lugar de preeminência ao futuro chefe da Igreja. Dir-se-ia que os evangelistas, tão sóbrios em informações sobre os outros Apóstolos, não perdem a oportunidade de falar de Pedro, de referir suas palavras, de registrar os sinais de predileção com que o distinguia o Salvador [1].
Pela primeira vez apresenta-se a Cristo o humilde pescador da Galileia: “Tu és Simão”, diz-lhe Jesus, “tu te chamarás Cefas, isto é, Pedra” (Jo 1, 42). Era a imposição de um nome novo, conforme o costume de Deus [2], rica de significados e de promessas.
Durante sua pregação apostólica, é a barca de Pedro a preferida por Cristo para doutrinar as turbas (cf. Lc 5, 1-4); se se demora em Cafarnaum, na casa de Pedro é que se hospeda (cf. Mt 8, 14; Mc 1, 29; Lc 4, 38); é Pedro quem, quase sempre, fala em nome dos Apóstolos; é a Pedro, como o principal do grupo, que se dirigem os coletores de impostos para saber se o Mestre pagava o tributo do Templo, e Jesus paga a taxa legal por si e por Pedro (cf. Mt 17, 24-27).
Ao escrever suas memórias, em tempos posteriores, são os próprios evangelistas que se empenham em salientar este lugar preponderante de Simão no colégio apostólico. Quatro catálogos dos Apóstolos oferece-nos o Novo Testamento (cf. Mt 10, 2-4; Mc 3, 16-19; Lc 6, 14-16; At 1, 13). A ordem em que se sucedem os outros nomes varia de um para outro; mas em todos eles, assim como Judas, o traidor fecha sempre a enumeração, assim também Pedro, invariavelmente, ocupa o primeiro lugar: o lugar de honra.
Nem é casual coincidência. S. Mateus observa expressamente: “Primeiro, Simão que se chama Pedro”. Primeiro em quê? Em idade? Nenhum indício positivo o insinua, nem a velhice foi certamente o critério adotado pelos historiadores sagrados, que alteram a ordem dos outros nomes e mencionam João antes de outros Apóstolos mais idosos. Prioridade de vocação? Tampouco. A eleição para o apostolado foi simultânea para os Doze (cf. Mt 10, 1; Mc 3, 13-15). A vocação inicial de Pedro para discípulo, se foi anterior à de muitos Apóstolos, não foi absolutamente a primeira. André e outro discípulo seguiram antes os passos do Messias (cf. Jo 1, 35-42). Um segundo chamado de Cristo feito nas bordas do lago Tiberíades e narrado pelos Sinóticos apresenta para os quatro Apóstolos Simão, André, João e Tiago uma simultaneidade moral que não permite estabelecer nenhuma prioridade cronológica.
Voltemos ainda ao ministério de Cristo. Quando, nas circunstâncias mais solenes de sua vida — na ressurreição da filha de Jairo, manifestação de sua onipotência; na Transfiguração do Tabor, irradiação de sua glória; na agonia do jardim das oliveiras, mistério de suas dores —, Jesus escolhe como testemunhas a três dos seus Apóstolos, Pedro é ainda invariavelmente nomeado em primeiro lugar (cf. Mc 5, 37; 9, 12; 14, 33 e lugares paralelos). Às vezes todo o colégio apostólico é compreendido pelo historiador sagrado numa expressão coletiva; só Pedro é singularmente designado: “Pedro e os que o acompanhavam” (Mc 1, 36), nem mais nem menos como dizem de um rei e o seu séquito, de um chefe militar e de sua escolta: “Davi e os que o seguiam” (Mc 2, 25); “O centurião e os que o acompanhavam” (Mt 27, 54) [3].
Não cabe, pois, dúvida alguma. Manifestamente, S. Pedro aparece-nos como o Apóstolo principal: entre os seus companheiros gozava de uma preeminência incontestável. Era este um simples fato ou também um direito? Era uma simples ascendência moral, devida às qualidades do seu caráter e análoga ao “primado moral que exercem espontaneamente os leaders das câmaras deliberativas, ou os deputados que se impõem pelo seu caráter e influência”? Ou era, pelo contrário, uma superioridade querida por Cristo, sancionada por livre vontade, firmada nas suas promessas? Abramos o Evangelho e saibamos ler.
Evidentemente, não se deve falar aqui de uma supremacia de jurisdição efetivamente exercida por Pedro durante a vida mortal do divino Mestre. Jesus, vivo e presente entre os discípulos, era o seu único e natural superior. O que importa determinar é se Cristo havia prometido um verdadeiro primado de jurisdição a algum dos Doze e se as expressões registradas pelos evangelistas não são mais do que os reflexos dos raios desta futura primazia.
“Impossível”, dizem os adversários do Papado que, sem perder tempo, já o querem impugnar no primeiro dos papas. “Uma ascendência jurídica prometida pelo Mestre”, continuam, “não se concilia com as brigas dos discípulos sobre qual deles era o maior, menos ainda se harmoniza com os ensinamentos explícitos do Salvador, que condena qualquer prelazia no colégio apostólico”.
Um fato e uma doutrina — eis o que nos opõem. Analisemos o fato e expliquemos a doutrina.
O fato: a disputa pelos primeiros lugares
Como harmonizar a disputa dos discípulos com a promessa de uma primazia feita por Cristo a Pedro? Uma questão resolvida pelo Salvador podia ainda ser objeto de controvérsia entre os Doze? Seria necessário não conhecer a rudeza dos Apóstolos para ver aí uma séria dificuldade. Quantos ensinamentos ouviram eles, claros, repetidos uma e muitas vezes, sem compreender! Quantas vezes não insistiu o Messias no caráter espiritual do seu reino! E poucos momentos antes da Ascensão não se sai um dos discípulos com a pergunta impertinente: “É agora, Senhor, que ides restituir o reino de Israel?” (At 1, 6).
Haverá no Evangelho profecia menos equívoca, mais compreensível, mais repetida pelo Salvador, que a de sua Paixão e Morte? “É necessário que o Filho do Homem sofra, que seja reprovado pelos anciãos, príncipes dos sacerdotes e escribas, que seja morto e ao terceiro dia ressuscite” (Lc 9, 22.44; 18, 31-33). A predição foi renovada insistentemente em outras ocasiões, iluminada em mil lugares diversos. Mas aquelas almas rudes, que sonhavam com os triunfos temporais do messianismo popular, eram resistentes ao escândalo da cruz. Quando se realizaram os prenúncios do Mestre, perturbadas e abatidas, no que deveria ser um reforço de prova da divindade do Messias viram só o naufrágio de todas as suas esperanças. A mensagem pascal da Ressurreição encontrou-os ainda humilhados e incrédulos: “Stulti et tardi corde ad credendum” — “Ó estultos e lentos do coração para crer” (Lc 24, 25).
No nosso caso, a explicação é ainda mais simples. As palavras de Cristo a Pedro (cf. Mt 16, 18s) continham apenas, como veremos, uma promessa. Seguiu-as, logo em seguida, uma grave repreensão do Senhor ao mesmo Apóstolo, que, voltando a pensamentos humanos, tentava dissuadi-lo das humilhações da cruz. O que seria mais natural, portanto, do que pensarem os outros que se tratava apenas de uma promessa condicionada, revogada logo pela severa repreensão de Cristo? A sucessão do primado achava-se, assim, novamente aberta às suas ambiciosas esperanças.
Oh! Como transparece aqui a psicologia da nossa frágil natureza humana! Somos espontaneamente inclinados a crer em tudo quanto agrada e lisonjeia as nossas ambições secretas. A mesma evidência, quando contraria os sonhos dos nossos íntimos desejos, não consegue entrar-nos na alma. Imbuídos de preconceitos judaicos sobre a temporalidade do reino messiânico, os discípulos alimentavam com amor a esperança das honras e do poderio terreno. Preferidos aos demais pelo Messias, nenhum, talvez, havia entre eles que, de si para si, não tivesse sonhado com alguma dignidade futura, com alguma “pasta ministerial” do reino restaurado de Davi. E um dia, quando a mãe de João e Tiago, na simplicidade indelicada do seu afeto materno, ousou abertamente pedir ao Senhor que reservasse para os filhos os dois primeiros lugares ao lado do seu trono, levantou-se entre os companheiros um rumor geral de indignação e protesto (cf. Mt 20, 24). A petição imprudente ferira vivamente as ambições rivais que mais de um nutria com secreta complacência.
Não surpreende, pois, que as promessas do primado, encontrando naquelas almas ainda não visitadas pelo divino Espírito tão resistente barreira psicológica, fossem pouco a pouco negligenciadas e esquecidas a ponto de, ainda na Última Ceia, se acenderem novamente entre os discípulos discussões sobre o primado. Descerá mais tarde sobre eles o Espírito Santo, Espírito de verdade e de amor, de luz e de caridade, prometido por Cristo aos seus Apóstolos para sugerir-lhes tudo quanto “lhes havia ensinado”. Depois da vinda do Paráclito já não haverá entre os Doze rivalidades nem brigas sobre “qual deles será o maior”. Apóstolos e fiéis serão um só coração e uma só alma sob o poder supremo de Pedro.
A doutrina: Jesus condena a prelazia no colégio apostólico?
Mais simples ainda é a explicação da doutrina de Cristo. “Entre os gentios, os reis exercem dominação sobre os súditos. Entre vós não há de ser assim; antes, o que é maior entre vós faça-se como o mais pequeno e o que manda [logo, há de haver quem manda!] como o que serve” (Lc 22, 25-26) [4]. Por acaso quis Cristo, com estas palavras, excluir qualquer jurisdição entre os Apóstolos? De modo nenhum. O que elas contêm, sim, é um ensinamento novo, um ensinamento profundo sobre a noção de autoridade.
Para os pagãos, a soberania era uma ostentação honorífica, uma distinção mundana, uma dominação férrea sobre os súditos escravizados. Nada disso há de ser o poder em mãos cristãs. A autoridade é um ministério, um serviço público: é, antes de tudo, um dever, o dever de consagrar-se como servo ao bem comum dos governados. Longe, pois, a ostentação; longe as honrarias vãs que só lisonjeiam a vaidade e o orgulho de quem as recebe. O autoritarismo pagão, isto é, a pretensão de impor a todo custo o próprio capricho, deve ceder o lugar à verdadeira autoridade, que só tem razão de ser nas necessidades e exigências do bem público [5]. Eis o novo e profundo conceito ensinado pelo divino Mestre.
Equivalem estas palavras a eliminar o poder de jurisdição numa sociedade legitimamente constituída? Já o dissemos: de modo nenhum. Quereis a prova? Lede alguns versículos abaixo e vereis que Cristo promete aos Doze uma situação privilegiada entre os fiéis: os Doze se assentarão um dia em doze tronos para julgar as tribos de Israel (cf. Lc 22, 30). Continuai a ler algumas linhas e ouvireis o mesmo Cristo conferir a um só a missão de confirmar os seus irmãos na fé (Cf. Lc 22, 32). É uma autoridade no sentido cristão da palavra: um ministério para o bem público dos fiéis. E, no entanto, é uma prerrogativa concedida a um só. O discípulo privilegiado é Pedro.
Duvidais ainda? No mesmo trecho de S. Lucas, a fim de exemplificar a lição que acabara de dar, Jesus aplica a si mesmo a regra da humildade: “Qual é maior, o que está à mesa ou o que serve? Não é porventura o que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve” (Lc 22, 27). O Jesus que assim fala é o mesmo que afirmou categoricamente: “Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem: porque o sou” (Jo 13, 13). Dirá agora o nosso protestante que no Filho de Deus não havia verdadeira autoridade, mas só “a superioridade moral do mais humilde”?
A supremacia de Pedro no colégio apostólico é, portanto, uma realidade evidente. Só uma investidura assegurada pela promessa de Cristo pode explicar como, no seio das ambições rivais dos discípulos, Pedro gozasse daquela preeminência atestada unanimemente por toda a história da vida de Jesus. Reconhece-o a própria crítica liberal de Alfred Loisy:
Entre os Doze, havia um que era o primeiro, não apenas por conta da prioridade de sua conversão ou do ardor de seu zelo, mas devido a uma espécie de nomeação do Mestre, que foi aceita e cujas consequências se fazem ainda sentir na história da comunidade apostólica. Esta foi uma situação, de fato, criada aparentemente pelos agitados momentos do ministério galileu, mas que, pouco antes da Paixão, se figura como aceita e ratificada por Jesus [6].
Ainda que não houvesse outros motivos, já nos seria lícito supor com grande probabilidade uma designação de Pedro para futuro chefe da Igreja, feita pessoalmente pelo próprio Salvador. Mas temos textos formais e explícitos que excluem toda a dúvida.
O que até aqui dissemos tem por finalidade ilustrar a verossimilhança desta promessa, deduzida de toda a narração evangélica e, ao mesmo tempo, mostrar como a perícope de S. Mateus que passaremos logo a estudar (cf. Mt 16, 16-19), longe de se achar “em manifesto antagonismo com todo o Novo Testamento” ou “bloqueada pelo silêncio universal das Escrituras Sagradas”, enquadra-se muito naturalmente contexto geral dos evangelhos, formando um todo harmônico, homogêneo e coerente.
O que achou desse conteúdo?