Mais de 75% dos brasileiros
não querem que o aborto seja descriminado.
O Congresso Nacional, igualmente, como mandatário do povo, não está minimamente a fim de avançar um projeto desse gênero.
Mas os militantes da causa contrária não se consolam. Eles querem ver o aborto legalizado no Brasil, custe o que custar. Por isso, trabalham dia e noite, dentro e fora das instituições, para encontrar alguma forma alternativa de vencer, já que nem a população nem o Poder Legislativo estão do seu lado.
Aparentemente, eles encontraram uma saída. Tendo como respaldo o voto do ministro Barroso ( proferido durante o julgamento de um habeas corpus, dezembro passado) que questionou a criminalização do aborto no primeiro trimestre de gravidez, o PSOL — que leva no nome a curiosa antítese "Socialismo e Liberdade" — acaba de ingressar no Supremo Tribunal Federal com uma ação solicitando "a legalização ampla do aborto para qualquer gestação com até 12 semanas". O instrumento processual em questão é a ADPF, sigla para "Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental". Trata-se de mais uma ação do complexo controle de constitucionalidade brasileiro, de competência do STF e com efeitos erga omnes, isto é, válidos para todos.
Para quem conhece um pouco a história das últimas tentativas institucionais para facilitar o acesso ao aborto no Brasil, a sigla ADPF não é nova. Foi com uma ação assim — a ADPF de n.º 54 — que o STF despenalizou, em 2012, o abortamento de bebês com anencefalia. Na ocasião, o argumento dos ministros favoráveis à causa era muito parecido com o de hoje: criminalizando o aborto de fetos anencefálicos por meio de seu Código Penal, o Estado estaria a violar "preceitos fundamentais", tais como a "dignidade da pessoa humana", os princípios da "legalidade, liberdade e autonomia da vontade" e o "direito à saúde".
Em meio à pane geral de que foi alvo o Supremo naquela oportunidade (uma constante hoje, para dizer a verdade), duas vozes corajosas se levantaram contra o que estava acontecendo: foram os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (hoje aposentado). Os magistrados foram os únicos a afirmar, honesta e abertamente, o óbvio que se depreende do princípio da separação dos Poderes: o STF simplesmente não tem competência para descriminar o aborto no Brasil.
O voto do ministro Ricardo Lewandowski
Foi nessa afirmação que se sustentou de modo particular
o voto do ministro Lewandowski, com alguns trechos que merecem menção integral:
"Caso o desejasse, o Congresso Nacional, intérprete último da vontade soberana do povo, considerando o instrumental científico que se acha há anos sob o domínio dos obstetras, poderia ter alterado a legislação criminal vigente para incluir o aborto de fetos anencéfalos, dentre as hipóteses de interrupção da gravidez isenta de punição. Mas até o presente momento, os parlamentares, legítimos representantes da soberania popular, houveram por bem manter intacta a lei penal no tocante ao aborto, em particular quanto às duas únicas hipóteses nas quais se admite a interferência externa no curso regular da gestação, sem que a mãe ou um terceiro sejam apenados."
[...]
" Não é lícito ao mais alto órgão judicante do País, a pretexto de empreender interpretação conforme a Constituição, envergar as vestes de legislador positivo, criando normas legais, ex novo, mediante decisão pretoriana. Em outros termos, não é dado aos integrantes do Poder Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem."
Com uma fina ironia, o ministro Lewandowski ainda cita, para fundamentar seu entendimento, uma citação de ninguém menos que… Luís Roberto Barroso, o atual ministro do STF que, à época, era apenas o advogado da causa julgada. "Deveras, foi ao Poder Legislativo, que tem o batismo da representação popular e não o Judiciário, que a Constituição conferiu a função de criar o direito positivo e reger as relações sociais" — lição do livro "Interpretação e aplicação da Constituição", de Barroso, o qual parece não pensar o mesmo que ensina nos momentos em que julga.
O voto contundente do ministro Cezar Peluso
Ficou para o fim do julgamento, no entanto,
o voto magistral do ministro Cezar Peluso — então presidente da casa —, o qual fulminou, de uma só vez, não só os partidários do "ativismo judicial", mas também os promotores da causa do aborto. Todos aqueles que estudam o Direito têm, na verdade, a obrigação de ler esta que é uma verdadeira aula de bioética (ressalvadas algumas considerações iniciais do ministro, relativas às células-tronco embrionárias, todo o resto se aproveita muitíssimo bem).
Vejamos, primeiro, o que diz Peluso ao adentrar no mérito da questão:
"Mui diversamente do que se aduz na inicial, o aborto provocado de feto anencefálico é conduta vedada, e vedada de modo frontal, pela ordem jurídica. E, a despeito dos esforços retóricos da autora, aparece, por conseguinte, de todo inócuo o apelo para a liberdade e a autonomia pessoais, fundado na pressuposição errônea de inexistência de proibição jurídico-normativa da conduta. Não há como nem por onde cogitar, sem contraste ostensivo com o ordenamento jurídico, de resguardo à autonomia da vontade, quando esta se preordena ao indisfarçável cometimento de um crime. Não se concebe nem entende, em termos técnico-jurídicos, únicos apropriados ao caso, direito subjetivo de escolha, contra legem, de comportamento funestamente danoso à vida ou à incolumidade física alheia e, como tal, tido por criminoso. É coisa abstrusa!"
" A conduta censurada transpõe a esfera da autonomia e da liberdade individuais, enquanto implica, sem nenhum substrato de licitude, imposição de pena capital ao feto anencefálico. E, nisso, atenta ainda contra a própria idéia de 'um mundo diverso e plural', que os partidários da arguente, como Débora Diniz e seu próprio patrono [Barroso], alegam defender."
"É que, nessa postura dogmática, ao feto, reduzido, no fim das contas, à condição de lixo ou de outra coisa imprestável e incômoda, não é dispensada, de nenhum ângulo, a menor consideração ética ou jurídica, nem reconhecido grau algum da dignidade jurídica e ética que lhe vem da incontestável ascendência e natureza humanas. Essa forma odiosa de discriminação, que a tanto equivale, nas suas consequências, a formulação criticada, em nada difere do racismo, do sexismo e do chamado especismo. Todos esses casos retratam a absurda defesa e absolvição do uso injusto da superioridade de alguns (em regra, brancos de estirpe ariana, homens e seres humanos) sobre outros (negros, judeus, mulheres e animais, respectivamente). No caso do extermínio do anencéfalo, encena-se a atuação avassaladora do ser poderoso superior que, detentor de toda a força, inflige a pena de morte ao incapaz de pressentir a agressão e de esboçar-lhe qualquer defesa. Mas o simples e decisivo fato de o anencéfalo ter vida e pertencer à imprevisível espécie humana garante-lhe, em nossa ordem jurídica, apesar da deficiência ou mutilação - apresentada, para induzir horror e atrair adesão irrefletida à proposta de extermínio, sob as vestes de monstruosidade -, que lhe não rouba a inata dignidade humana, nem o transforma em coisa ou objeto material desvalioso ao juízo do Direito e da Constituição da República."
[...]
"A vida intrauterina, ainda quando concebível como projeto de vida, é objeto da tutela jurídico-normativa por várias formas. É-o por normas infraconstitucionais, mas também, e sobretudo, por força da própria lei penal, cujo sentido primário de proibição do comportamento tipificado é expressão da tutela dessa vida intrauterina, a qual guarda, por conseguinte, o significado indiscutível de bem jurídico, que como tal merece a proteção da ordem jurídica. A história da criminalização do aborto mostra que essa tutela se fundamenta na necessidade de preservar a dignidade dessa vida intrauterina, independentemente das eventuais deformidades que o feto possa apresentar, como tem apresentado no curso de história. As deformidades das vidas intrauterinas não são novidade fenomênica. Novidade são hoje os métodos científicos de seu diagnóstico. A consciência jurídica jamais desconheceu a possibilidade de que de uma gravidez possa não resultar sempre nascimento viável. No instante em que o transformássemos [o feto anencéfalo] em objeto do poder de disposição alheia, essa vida se tornaria coisa ( res), porque só coisa, em Direito, é objeto de disponibilidade jurídica das pessoas. Ser humano é sujeito de direito."
[...]
" A vida humana, imantada de dignidade intrínseca, anterior ao próprio ordenamento jurídico, não pode ser relativizada fora das específicas hipóteses legais, nem podem classificados seus portadores segundo uma escala cruel que defina, com base em critérios subjetivos e sempre arbitrários, quem tem, ou não, direito a ela. Havendo vida, e vida humana – atributo de que é dotado o feto ou o bebê anencéfalo –, está-se diante de valor jurídico fundante e inegociável, que não comporta, nessa estima, margem alguma para transigência. Cuida-se, como já afirmei, 'do valor mais importante do ordenamento jurídico'."
"A curta potencialidade ou perspectiva de vida em plenitude, com desenvolvimento perfeito segundo os padrões da experiência ordinária, não figura, sob nenhum aspecto, razão válida para obstar-lhe à continuidade. A ausência dessa perfeição ou potência, embora tenda a acarretar a morte nas primeiras semanas, meses ou anos de vida, não é empecilho ético nem jurídico ao curso natural da gestação, pois a dignidade imanente à condição de ser humano não se degrada nem decompõe só porque seu cérebro apresenta formação incompleta. Faz muito, a civilização sepultou a prática ominosa de sacrificar, segregar ou abandonar crianças recém-nascidas deficientes ou de aspecto repulsivo, como as disformes, aleijadas, surdas, albinas ou leprosas, só porque eram consideradas ineptas para a vida e improdutivas do ponto de vista econômico e social!"
[...]
"A dignidade fundamental da vida humana, como suposto e condição transcendental de todos os valores, não tolera, em suma, barateamento de sua respeitabilidade e tutela jurídico-constitucional, sobretudo debaixo do pretexto de que deformidade orgânica severa, irremissibilidade de moléstia letal ou grave disfunção psíquica possam causar sofrimento ou embaraço a outro ser humano. Independentemente das características que assuma na concreta e singular organização de sua unidade psicossomática, a vida vale por si mesma, mais do que bem humano supremo, como suporte e pressuposição de todos os demais bens materiais e imateriais, e nisto está toda a racionalidade de sua universal proteção jurídica. Tem dignidade, e dignidade plena, qualquer ser humano que esteja vivo (ainda que sofrendo, como o doente terminal, ou potencialmente causando sofrimento a outrem, como o anencéfalo). O feto anencéfalo tem vida, e, posto que breve, sua vida é constitucionalmente protegida."
Mencione-se, por fim, o " non possumus" do magistrado, dado já ao final de seu voto, quando ele declara expressamente a "competência exclusiva do Congresso Nacional para normatizar" o tema em debate e a "impropriedade da atuação do STF como 'legislador positivo'":
"Essa tarefa é própria de outra instância, não desta Corte, que já as tem outras e gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no Congresso Nacional que se deve debater se a chamada 'antecipação do parto', neste caso, deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude."
[...]
"A ADPF não pode ser transformada em remédio absoluto que franqueie ao STF a prerrogativa de resolver todas as questões cruciais da vida nacional, responsabilizando-se por inovação normativa que a arguente e os adeptos de sua tese sabem muito bem que, na via própria da produção de lei, talvez não fosse adotada pelo Congresso Nacional, como intérprete autorizado dos interesses e das aspirações da maioria silenciosa do povo, que representa!"
Essas últimas palavras, em particular, nunca foram tão apropriadas como agora, quando grupos progressistas querem, mais uma vez, impor judicialmente a sua agenda de morte a uma nação inteira, desconsiderando, para tanto, instituições caríssimas de nossa democracia, tais como o princípio da separação dos Poderes e o direito fundamental à vida desde a concepção — este consagrado por pactos internacionais (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 4), pela Constituição brasileira (art. 5.º, caput) e pelo próprio Código Civil (art. 2.º).
Nas condições normais de uma democracia, os juízes respeitam as leis e são responsabilizados se falham nesse mister. Mas, no Brasil, como já disse um ministro do STF!, eles não devem satisfação "depois da investidura a absolutamente mais ninguém".
A impressão é que vivemos em uma terra sem lei, governada tão-somente pelo arbítrio dos homens de toga. Irrefreáveis. Onipotentes. E, segundo eles mesmos, irresponsáveis. É como se a "morada dos deuses" tivesse mudado: do Monte Olimpo… para o Planalto Central.
Que Deus tenha misericórdia de nossa nação.
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