No Brasil, assim como na maior parte do globo, não há um Thanksgiving Day (“Dia de Ação de Graças”) como o que é celebrado pelos norte-americanos. Mas o dia 31 de dezembro, que marca o fim do ano civil, é o dia de ação de graças por excelência — e neste dia os católicos do mundo inteiro entoam, em suas igrejas, o Te Deum. Há até uma indulgência plenária vinculada ao costume, lucrada sempre que o hino é rezado “na igreja ou no oratório”, por quem quer que participe “devotamente do canto ou recitação solene” (Enchiridion Indulgentiarum, conc. 26, § 1).

Para os padres e religiosos, bem como os fiéis habituados a rezar a Liturgia das Horas, o Te Deum não é exatamente uma novidade. A Igreja prescreve que ele seja rezado (ou cantado) no Ofício das Leituras, “nos domingos fora da Quaresma, nos dias das oitavas da Páscoa e do Natal” e “nas solenidades e festas” (Instrução Geral da Liturgia das Horas, 68).

Um hino com história

O “Te Deum” em um Saltério do século XVI. Na letra capitular, os dois bispos são Ambrósio e Agostinho.

Antes das reformas do Papa Paulo VI, porém, o hino era rezado em qualquer festa litúrgica de III classe (o equivalente às nossas memórias de santos). Na prática, devido à numerosa quantidade de santos no calendário do usus antiquior, isso significava que o Te Deum só se omitia na Quaresma. Além disso, sua hora canônica própria eram as Matinas (que só se podiam rezar à noite), razão pela qual o hino também era chamado matutinalis, isto é, “matutino”. Foi essa hora que passou a ser chamada de Ofício das Leituras, a qual pode ser recitada, agora, em qualquer momento do dia.

Mas não é só isso. Por ser um louvor dirigido a todas as Pessoas da Trindade e repassar vários mistérios da nossa salvação — como o Glória, na Missa —, o Te Deum foi se transformando com o tempo em um verdadeiro hino de ação de graças, dentro e fora da liturgia. Assim, sempre que uma ocasião solene se apresentasse, era costume cantá-lo: na eleição de um Papa, na sagração de um bispo, na canonização de um santo, na profissão de votos de um religioso, numa coroação real etc. Hoje, é “para render graças a Deus pelos benefícios concedidos no decurso de todo o ano” que se reza o te-déum no dia 31 de dezembro [1].

Sim, “te-déum”. O termo ficou tão popular que aportuguesou-se. (Com direito a verbete no dicionário.) Chama-se assim por conta das duas palavras latinas com que inicia: Te Deum; literalmente, “A ti, Deus”. Nos países lusófonos, porém, já está consagrado o uso da segunda pessoa do plural para se referir a Deus, à Virgem Maria e aos santos. Por isso, a tradução litúrgica oficial traz “A vós, ó Deus, louvamos” — e em Portugal “Nós Vos louvamos, ó Deus”. 

Abaixo deixamos o texto completo do hino (numa das traduções mais literais que encontramos), seguido de um vídeo do grupo espanhol Verbum Gloriae, ensinando como cantá-lo, em tom simples, na língua latina: 

Nós Vos louvamos, Senhor: nós Vos glorificamos.
A Vós, eterno Pai, adora toda a terra.
A Vós todos os Anjos, os Céus e Potestades.
A Vós os Querubins e Serafins, sem cessar proclamam:
Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos exércitos.
Cheios estão os Céus e a terra da majestade de vossa glória.
O glorioso coro dos Apóstolos,
A venerável assembleia dos profetas,
O exército brilhante dos mártires,
E a Santa Igreja por toda a redondeza da terra Vos louvam:
Pai de imensa majestade,
E vosso adorável, verdadeiro e único Filho,
E também o vosso Espírito Santo Consolador.

Vós sois Rei da glória, ó Cristo.
Vós, sempiterno Filho do Pai,
Vós, tomando a peito libertar o homem, não tivestes asco do seio da Virgem.
Vós, vencendo a morte, abristes aos crentes o Reino dos Céus.
Vós, estais sentado à dextra de Deus, na glória do Pai.
Cremos que haveis de vir como juiz.

Dignai-vos, pois, assistir a vossos servos, que haveis remido com vosso precioso sangue.
Fazei que sejam do número dos vossos santos na glória.
Salvai o vosso povo, Senhor, e abençoai a vossa herança.
Governai-os e exaltai-os para sempre.
Nós Vos bendizemos todos os dias.
E louvamos o vosso nome para todo o sempre.
Dignai-Vos, Senhor, neste dia conservar-nos sem pecado.
Compadecei-Vos de nós, Senhor! Compadecei-Vos de nós.
Desça sobre nós a vossa misericórdia, segundo a esperança que em Vós pusemos.
Em Vós, Senhor, esperei; jamais serei confundido [2].

Até pouco tempo, o hino também era conhecido simplesmente como “ambrosiano”, por sua atribuição a Santo Ambrósio. Acreditava-se inclusive que o santo milanês o teria composto junto com Santo Agostinho, na noite em que este foi batizado. A tradição, registrada na Patrologia Latina [3] por Incmaro de Reims († 882), hoje é tida pelos estudiosos do assunto como improvável. Entre outras razões, porque o te-déum é uma prosa rítmica e não segue as métricas clássicas dos hinos que conhecemos destes Santos Padres.

Outros manuscritos indicam como verdadeiro autor do Te Deum o bispo São Nicetas de Remesiana († 414), que viveu no território hoje correspondente à Sérvia — e muitos acham bastante plausível a hipótese, que tem o respaldo de um bispo e santo da mesma época, Paulino de Nola († 431).

O epílogo da obra de São Cipriano de Cartago († 258) sobre a mortalidade parece-se muito com alguns versos da primeira parte do te-déum: Illic apostolorum gloriosus chorus, diz o santo; illic prophetarum exsultantium numerus; illic martyrum innumerabilis populus [4]. (O hino: Te gloriosus apostolorum chorus; te prophetarum laudabilis numerus; te martyrum candidatus laudat exercitus.) As frases são tão semelhantes que se chegou a aventar a hipótese de que fosse ele, Cipriano, o autor de pelo menos parte do hino…

Ou o Te Deum já existia na época? Há quem diga que ele remonta ao Papa São Aniceto — martirizado ainda em 168! 

Incertezas de autoria à parte, de uma coisa não há dúvidas: o hino em questão é antiquíssimo. Segundo o Dicionário elementar de liturgia de José Aldazábal, “no século VI já tinha entrado na oração monástica e já se considerava um hino tradicional da Igreja”. Ao recitar ou cantar essa composição, podemos estar certos de unir-nos a uma multidão incontável de fiéis católicos que nos antecederam.

O último “Te Deum” de um santo homem

Um destes fiéis foi o bem-aventurado Carlos da Áustria († 1922), último monarca do Império Austro-Húngaro. O te-déum que ele cantou no fim de sua vida merece um destaque especial — e chega a parecer um despropósito que tenhamos feito uma introdução histórica tão longa do hino em questão, deixando para as linhas finais este fato tão belo e emocionante da vida do beato. 

Era importante mostrar, porém, como a seguinte história deste digno filho da Igreja se liga a um verdadeiro exército de adoradores antes dele, atravessando os séculos e chegando quase aos próprios Apóstolos. Não pertencemos a uma religião que nasceu ontem, no terreno baldio de uma esquina qualquer. Não somos órfãos neste vale de lágrimas que Deus nos confiou como morada provisória. Somos católicos apostólicos romanos — e só por essa graça, mais valiosa que qualquer título de nobreza mundano, devemos entoar te-déuns solenes por toda a nossa existência.

Vale lembrar também que o acontecimento que transcrevemos a seguir — testemunhado por Maria Lackner — se deu há exatos 100 anos, no dia 31 de dezembro de 1921, o último réveillon passado pelo Beato Carlos, quando ele e sua esposa já se encontravam na Ilha da Madeira, exilados de sua terra natal (e dos próprios filhos!). O rei morreria dentro de três meses:

À tarde, como devoção de encerramento do ano, houve na capela da casa uma solene Bênção Eucarística. Estávamos apenas o Imperador, a Imperatriz e nós. Também foi rezado o Te Deum. Atrás de nós, ficava um ano que tinha sido o mais duro da vida do Servo de Deus. Ele encontrava-se longe da pátria, no exílio; na mais drástica necessidade material; estava separado de seus filhos e não sabia o que o dia seguinte haveria de lhe trazer de mal. Durante o Te Deum, nós, um após o outro, fomos nos silenciando, porque a dor nos fazia fugir a voz. Somente o Servo de Deus manteve-se firme e entoou forte e claramente o cântico ambrosiano até o fim, acentuando cada palavra [...].

Olhei-o com admiração. Percebia-se com toda evidência que para ele, naquele momento, existia apenas Deus — ninguém mais — e que aquele Te Deum era um íntimo diálogo entre Deus e o seu mais fiel servidor. Na época, ele não sabia se tornaria a ver seus filhos, não sabia o que o dia seguinte haveria de lhe trazer, e contudo, rezou com muito fervor aquela oração de ação de graças [5].

No dia de hoje, seja no aconchego de nossos lares, seja diante do altar de Deus, ao rezar esta mesma oração (tão simples) de agradecimento pelo ano que passou, não nos esqueçamos do último Te Deum cantado pelo Beato Carlos da Áustria. A exemplo dele, talvez, muitos de nós também não vejamos, humanamente, tantos motivos para agradecer: talvez este ano tenha sido difícil e carregado de cruzes; talvez não tenha sido tão bom, por melhor que tenhamos passado... Seja como for, não deixe que a voz lhe fuja. Cante, como quem sabe que “tudo”, absolutamente tudo, “concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8, 28).

Notas

  1. Grande parte das informações recolhidas nesta matéria foi extraída de Hugh Henry, “The Te Deum”, in: The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Company, 1912.
  2. Presente no Missal Romano Quotidiano (Latim-Português), de D. Gaspar Lefebvre e os Monges Beneditinos de S. André. Bruges: Biblica, 1963, p. 1589ss.
  3. A Patrologia Latina é uma grande coleção de escritos dos Santos Padres e outros escritores eclesiásticos publicada pelo Jacques-Paul Migne no século XIX. O texto em questão, do bispo Incmaro, encontra-se no v. 125, c. 290.
  4. Trata-se do opúsculo De mortalitate. O trecho supracitado está em PL 4, 602.
  5. Giovanna Brizi, A vida religiosa do Beato Carlos da Áustria, 2. ed., Rio de Janeiro, Edições Lumen Christi, 2014, pp. 11-12.

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