Vivemos num mundo saturado de imagens superficiais, inundado com “ruído visual”. O problema dessa situação é que a oração, o dever básico do cristão, requer certa tranquilidade e indiferença interior, uma espécie de vazio expectante que busca ser preenchido. Se não encontrarmos maneiras de nos centrarmos em Deus, iremos nos distrair com milhões de coisas vãs e perderemos a conexão vital com a fonte do nosso ser e da nossa salvação.

Sem dúvida, é a graça que faz com que nos voltemos para Deus. Porém, isso é ao mesmo tempo uma função de nosso livre-arbítrio, a aplicação voluntária das potências da nossa alma aos atos de fé, esperança e caridade. E, como somos seres físicos, precisamos de auxílios físicos, não somente ideias rarefeitas e boas intenções.

[É aí que] entra em cena o ícone. Embora em geral as pessoas pensem no ícone como algo específico do cristianismo oriental, trata-se de uma herança comum do primeiro milênio da fé, e que continua fazendo parte da tradição ocidental ou latina, ainda que em formas modificadas. Todos os cristãos podem se beneficiar com a veneração dos ícones, pois eles apresentam aos olhos do nosso corpo e da nossa mente Cristo nosso Deus, sua Santa Mãe e as multidões de santos e anjos que habitam a Jerusalém celeste. Como explica Linette Martin: 

O ícone nos direciona para algo que está além dele; nós reconhecemos isso, e espera-se que respondamos. A resposta pode ser fé, ou descrença, ou louvor, ou admiração, ou oração, ou encorajamento, ou temor do Juízo Final, ou questões sobre a doutrina cristã. O ícone insiste que respondamos tanto com a mente quanto com as emoções. Os ícones não se dirigem apenas ao instinto; são a arte do homem que pensa. É isso o que diferencia o ícone — no que diz respeito à sua motivação e ao seu efeito — de outras imagens religiosas, e é por isso que algumas pessoas não gostam de ícones: preferem que a arte cristã seja decorativa e pouco exigente. A Igreja Ortodoxa ensina que um ícone é uma porta bidirecional de comunicação que não só nos mostra uma pessoa ou um evento, mas torna-o presente. Quando estamos diante de um ícone, estamos em contato com aquela pessoa e participamos daquele evento. O evento histórico do Natal torna-se presente para nós aqui e agora, quando olhamos para um ícone da Natividade. O que chamamos de ‘nosso mundo’ e de ‘mundo espiritual’ abrem-se um para o outro [i].
Pantocrator do Monte Sinai.

Há muito a ser dito sobre os ícones, e por essa razão eu retornarei ao assunto mais de uma vez para explorar suas várias facetas. Hoje, quero simplesmente me concentrar no mais antigo ícone que existe do Cristo Pantocrator (“Juiz de todos”) [imagem ao lado].

Datando do século VI, esse impressionante ícone é um dos poucos existentes até hoje que precedem o concílio ecumênico que proclamou definitivamente a legitimidade e, de fato, a necessidade dos ícones (o Segundo Concílio de Niceia, realizado no ano 787). Ele só foi preservado da destruição iconoclasta graças a sua remota localização no mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai — o qual possui milhares de ícones antigos (muitos deles, como este, pintados com cera colorida).

A face de um homem é o centro visual de seu corpo, não seu tórax, abdômen ou membros. Portanto, a face do Deus-homem domina esse painel, realçada por uma auréola. Michel Quenot diz o seguinte em The Icon: Window of the Kingdom [“O Ícone: Janela para o Reino”, sem edição no Brasil]:

Os antigos gregos chamavam um escravo de aprosopos, isto é, aquele que não tem rosto. Portanto, ao assumir os traços de um rosto humano, Deus restaurou para nós um rosto à sua imagem, já que estávamos acorrentados como escravos sem rosto (aprosopos) por causa do pecado.

Exagerando o fato bem conhecido de que nenhum rosto humano é plenamente simétrico, o ícone nos apresenta a verdade plena de Cristo em sua justiça e em sua misericórdia. No lado onde Cristo segura o Evangelho, seus traços são duros e severos, representando o Juiz que tudo vê e pune os perversos. A expressão no lado que mostra a mão a abençoar é calma e serena, representando o Cristo em seu papel de salvador misericordioso. A evidente tridimensionalidade do Evangelho representa a humanidade do Senhor e sua entrada no espaço e no tempo, enquanto a bidimensionalidade do lado que abençoa representa sua divindade, que está fora do espaço e do tempo. 

Mais uma vez, Linette Martin nos ajuda a entender por que o iconógrafo adota essa abordagem surpreendente:

Medo e amor parecem extremidades opostas de uma linha, mas na oração essa linha se transforma num círculo [...]. Amar o que é maior do que nós deveria ser uma experiência amedrontadora, se tivéssemos um senso de proporções adequado. Houve quem zombasse dos artistas medievais do Ocidente por retratar a Deus como um velho homem de barba, mas acaso somos melhores [que eles], imaginando o Criador do universo como um papai benévolo inteiramente ao nosso dispor? Os profetas, Apóstolos e iconógrafos iriam chorar e gemer ante uma tal presunção. Ocupados como estamos em ser “amiguinhos” de Deus, podemos esquecer quem Ele é — e isso seria perigoso [...]. Basta um olhar em direção ao Cristo Pantocrator para cairmos de joelhos em adoração, uma palavra que transmite a ideia de um amor temeroso. Os maiores ícones de Cristo reúnem duas qualidades aparentemente opostas: a justiça e a misericórdia. Eles nunca são duramente formidáveis, mas tampouco são sempre sentimentais [ii]. 

Em vez de afastar-se de nós numa perspectiva “naturalista”, o livro dos Evangelhos se projeta para frente, como se estivesse se precipitando em nossa direção. Essa perspectiva “inversa” cruza o vão entre o espectador e a imagem, fazendo com que sejamos tomados por seu significado e “forçados” a nos envolver. Cristo está entrando no mundo, não se afastando dele; vem ao mundo para ensinar, abençoar, ordenar, salvar e julgar. Nossa resposta deve ser o silêncio do ouvinte para acolher sua bênção, obedecer a suas ordens, implorar sua misericórdia e adorar a sua santa Presença.

Como os ícones são um testemunho da realidade da Encarnação, é muito conveniente e vantajoso para a oração ter um ícone de madeira maciça, um objeto real e permanente que possamos segurar, perante o qual possamos nos curvar e beijar, em vez de impressões em papel ou imagens numa tela (como esta) [iii].

O mundo moderno, com suas imagens tremeluzentes — TV, filmes, comerciais, programas de computador —, compete com o dos ícones sagrados por nossa atenção. [Mas] a atenção que você tem a dar é limitada; a quem você a dará? Em que você está se concentrando?

O hiper-realismo da tecnologia de vídeo levou à irrealidade e à neutralização do campo visual. Tudo é “projetado” para ser consumido. Os ícones sagrados não são projetados e não podem ser consumidos. São escritos para a nossa purificação, iluminação e união com Deus. São riquezas inesgotáveis que não podemos “possuir”. Eles escancaram uma janela para uma realidade celestial que é maior do que o nosso mundo. São capazes de restaurar nossa humanidade, que sempre corremos o risco de perder, como os escravos sem rosto. Além dessa função curativa, os ícones sagrados, juntos com a divina liturgia e os santos sacramentos, nos divinizam.

Se quisermos que os nossos olhos e ouvidos se habituem à luz e à voz de Deus, precisamos “jejuar” do alimento espiritual de má qualidade (como os filmes e a música pop) e deleitar os nossos sentidos com imagens e sons verdadeiramente nutritivos e agradáveis à alma — objetos que sejam mais adequados à dignidade e superioridade de nossa alma imortal e de nosso destino eterno.

Notas

  1. Sacred Doorways: A Beginner’s Guide to Icons. Brewster: Paraclete Press, 2002, p. 2.
  2. Ibid., p. 220.
  3. Aqui, o autor recomenda reproduções laminadas de ícones em mosteiros bizantinos americanos (aqui e aqui), para “aqueles que ainda não podem investir num ícone escrito à mão”. O leitor brasileiro é convidado a fazer uma pesquisa e consultar as opções à disposição em seu próprio país. (N.T.)

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