No Novo Testamento se fala muitas vezes dos irmãos e das irmãs do Senhor (cf. Mt 12, 46s; 13, 55ss; Mc 3, 31s; 6, 3; Lc 8, 19s; Jo 2, 12; 7, 3.5.10; 20, 17; At 1, 14; 1Cor 9, 5; Gl 1, 19). Não sabemos quem eram as irmãs; dos irmãos, quatro são expressamente nomeados: Tiago, José, Judas e Simão.
Sobre esse assunto, um aparente problema para a virgindade de Maria, há três soluções possíveis: uma herética, outra infundada e uma comum e certa. Vejamos primeiro cada uma delas; em seguida, oito razões em prol da doutrina católica; por último, algumas objeções frequentes entre protestantes e as respostas que lhes podemos dar.
I. Irmãos do Senhor?
1.ª solução, heterodoxa. — Alguns antigos hereges (por exemplo, Helvídio, Bonoso Sardenho, Celso, Joviniano etc.) e, mais tarde, os socinianos, muitos protestantes e racionalistas ousaram afirmar que São José e a bem-aventurada Virgem Maria tiveram outros filhos além de Jesus. Essa proposição é dogmaticamente inaceitável em virtude da solene declaração da Igreja e da tradição constante e unânime dos Padres, além de ser historicamente inadmissível pelas razões que daremos abaixo, quando expusermos a doutrina verdadeira.
2.ª solução, infundada. — Alguns Padres e autores antigos (por exemplo, Orígenes, Santo Hilário, São Gregório de Nissa, Santo Ambrósio, Santo Epifânio, São Cirilo de Alexandria, Eusébio, e também Crisóstomo e Santo Agostinho, que depois mudaram de opinião), influenciados talvez por invenções apócrifas [1], pensavam que os irmãos do Senhor eram filhos de São José nascidos de algum matrimônio anterior, antes de ele se casar com a bem-aventurada Virgem Maria. Essa proposição não pode ser sustentada pelos católicos, uma vez que, segundo o sentir comum da Igreja ao longo dos séculos, São José guardou sempre a virgindade nem teve outra esposa além da Virgem Santíssima.
Mas há ainda outra razão para rejeitá-la. A própria Escritura diz expressamente quem era a mãe de dois dos irmãos do Senhor, Tiago e José. Trata-se de Maria, irmã da Mãe do Senhor (cf. Mt 27, 56; Mc 15, 40; 16, 1; Jo 19, 25). Ora, como é possível que São José, chamado justo pelo Espírito Santo (cf. Mt 1, 19), tenha atentado outro matrimônio, enquanto ainda era viva a primeira (e legítima) esposa?
3.ª solução, comum e certa. — No Evangelho, a expressão “irmãos do Senhor” (o mesmo vale para “irmãs”, naturalmente) não significa irmãos germanos, ou uterinos, mas apenas consanguíneos em diferentes graus de parentesco. Assim pensa São Jerônimo e a maioria maciça dos católicos. E há várias razões para isso.
II. A doutrina católica
1) Antes de tudo, é consequência do dogma da virgindade perpétua de Maria [2], doutrina atestada por vários documentos, desde o início do cristianismo (por exemplo, o símbolo apostólico, o símbolo de Epifânio, a profissão de fé de Dâmaso, a carta de Santo Inácio aos efésios, a apologia de Aristides a Adriano, a apologia de São Justino a Antônio, a carta de Sirício Accepi litteras vestras etc.).
2) Está em conformidade com o uso bíblico da palavra “irmão” (hebr. ’ach, gr. ἀδελφός). De fato, vários exemplos tanto do Antigo como do Novo Testamento demonstram que a expressão significa não apenas irmãos germanos, mas quaisquer parentes. Ló, por exemplo, é chamado irmão de Abraão (cf. Gn 13, 8; 14, 12) e Jacó de Labão (cf. Gn 29, 15), embora nenhum dos dois fosse irmão, mas sobrinho. A mulher e a esposa são chamadas irmãs (cf. Ct 4, 9), e também aos amigos e membros da mesma cidade ou tribo se dá o nome de irmãos (cf. Ex 2, 11; 2Rs 2, 26; Mt 25, 40; At 11, 29 etc.) [3].
3) Em terceiro lugar, ainda que se fale muitas vezes dos irmãos do Senhor, ninguém além de Jesus é chamado filho de Maria, assim como Maria não é chamada mãe de ninguém a não ser de Jesus.
4) Além disso, se a bem-aventurada Virgem tivesse outros filhos, o Senhor, pouco antes de morrer na cruz, não poderia ter dito: “Mulher, eis aí o teu filho” (ὁ υἱός σου); João, com efeito, não era ὁ υἱός, o filho (com artigo definido), muito menos o primeiro entre os filhos. Além do que, os outros filhos dela, entre os quais estaria o Apóstolo Tiago Menor, irmão do Senhor (cf. Gl 1, 19), veriam o gesto quase como uma afronta, isto é, uma acusação de que tinham pouco cuidado pela mãe, confiada por isso a um dos caçulas…
Tampouco faltam razões para pensar que os chamados irmãos do Senhor eram, na verdade, primos maternos ou paternos dele.
5) De fato, a Maria que é chamada mãe de dois deles, Tiago e José (cf. Mt 27, 56; Mc 15, 40.47; Lc 24, 10), é chamada também irmã de Maria, Mãe de Jesus (cf. Jo 19, 25), como já foi dito antes.
Ora, a palavra “irmã” pode ser entendida aqui de dois modos: a) em sentido estrito, enquanto significa que a primeira Maria era filha dos pais de Nossa Senhora, Joaquim e Ana; b) ou em sentido amplo, na medida em que o marido dela, Cléofas (cf. Jo 19, 26), seria irmão de São José, o que já foi atestado por Hegesipo (cf. Eusébio, HE IV 22), palestino do séc. II. Nada impede, aliás, que admitamos ambas as hipóteses.
6) Ademais, como também afirma Hegesipo, Tiago e Simão eram primos paternos do Senhor, e ao menos Simão era filho de Cléofas. Eis as palavras dele referidas por Eusébio: “Depois que Tiago, chamado o Justo, padeceu o martírio assim como o Senhor, pela mesma razão um outro filho do tio dele [de Cristo ou de Tiago?], Simão de Cléofas, foi constituído bispo, a quem todos indicaram por ser o segundo primo do Senhor”.
7) Some-se a isto que Judas era irmão de Tiago (cf. Lc 6, 16; Jd 1), como atesta ainda Hegesipo (cf. Eusébio, HE iii 20): “Naqueles tempos [a saber: de Domiciano], ainda viviam alguns da família do Senhor, sobrinhos daquele Judas que era chamado irmão dele [de Tiago] segundo a carne. Estes eram acusados de ser da estirpe de Davi” [4].
Tudo isso, no entanto, parece ir de encontro ao fato de o Apóstolo Tiago, que é chamado irmão do Senhor (cf. Gl 1, 19), ser chamado também filho de Alfeu em Mt 10, 3.
8) Mas isso se pode explicar também de dois modos: a) ou consideramos que Cléofas, ou Clopas, é a mesma pessoa que Alfeu, o qual, como era costume, teria dois nomes (por exemplo, João Marcos, Tomás Dídimo, Mateus Levi etc.); de fato, é possível que Alfeu e Cléofas (ou Clopas, Κλωπᾶς) equivalham ao mesmo nome, Chalpai (חֲלפי), pronunciado com maior ou menor suavidade. — b) Ou se trata de duas pessoas distintas, de forma que Alfeu seria casado com Maria, irmã de Cléofas e de São José, da qual nasceram Tiago e José, enquanto Cléofas seria pai de Simão e Judas, todos eles, portanto, primos de Cristo [5].
III. Objeções e respostas
1.ª objeção: No Evangelho (cf. Mt 1, 25; Lc 2, 7), Cristo é chamado primogênito (gr. πρωτότοκος) de Maria. Logo, Maria, depois do parto de Cristo, teve outros filhos.
Resposta: Segundo a Lei (cf. Ex 13, 2ss; 34, 19s; Nm 3, 47ss; 18, 15), considera-se primogênito todo o que primeiro sai da vulva (lt. quidquid primum erumpit e vulva, gr. πᾶν διανοῖγον μήτραν), quer se lhe sigam outros filhos ou não. A razão é que sobre o primeiro filho recaíam alguns preceitos da Lei que os pais estavam obrigados a cumprir, para o que não deviam esperar até o nascimento de outro filho, obviamente [6]. Logo, o vocábulo “primogênito” designa não só o filho depois do qual vieram outros, mas também aquele antes do qual não veio nenhum. Noutras palavras, todo unigênito é primogênito, embora nem todo primogênito seja unigênito [7].
Vale ainda recordar uma inscrição funerária judaica descoberta no início do século passado e publicada por C. C. Edgar nos Annales des Antiquités de l’Egypte (cf. vol. 22, 1922, pp. 7–16). Nessa inscrição, pertencente à época de Augusto (provavelmente ao séc. V a.C., ou seja, pouco antes do nascimento de Cristo), lê-se que certa jovem morreu em meio às dores do parto de seu primogênito. Logo, para ela o primogênito foi também o unigênito [8].
2.ª objeção: No Evangelho, diz-se explicitamente de José e Maria: “Estando Maria, sua mãe, desposada com José, achou-se ter concebido por obra do Espírito Santo, antes de coabitarem” (Mt 1, 18). Logo, depois de coabitar e consumar o casamento, tiveram outros filhos. E de José se diz igualmente: “E não a conhecia até que ela pariu o seu filho primogênito” (Mt 1, 25). Logo, depois do parto a conheceu carnalmente.
Resposta: a) O verbo “coabitar” (lt. convenire, gr. συνελθεῖν) não significa “consumar matrimônio”, mas apenas que Maria e José, no tempo da Encarnação, não viviam juntos na mesma casa, o que fizeram só mais tarde (cf. Mt 1, 20.25). Com efeito, as mulheres desposadas, entre os hebreus, não eram levadas de imediato para a casa do esposo e, por esse motivo, não costumavam viver com ele sob o mesmo teto antes de celebrar solenemente as núpcias.
b) Além disso, a locução “até que” (lt. donec, gr. ἔως), assim como “antes que” e outras similares, é utilizada na Escritura para exprimir muitas vezes o que não aconteceu até um determinado tempo, sem que se possa inferir daí que tenha acontecido depois [9]. Assim, por exemplo, lê-se em 2Sm 6, 23: “E Micol, filha de Saul, não teve mais filhos até o dia da sua morte”, o que não significa que os teve depois de morta, e em Sl 109, 2: “Senta-te à minha direita, até que ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés”, o que não significa que, feito isso, não se sentará mais à direita de Deus etc. (cf. Gn 8, 7; 49, 10.26; Sl 122, 2 e muitos outros lugares).
Ora, a finalidade do evangelista era mostrar que Cristo não foi concebido de José (= o que não aconteceu), mas virginalmente, conforme o vaticínio de Isaías a que explicitamente se refere, e não a de narrar o restante da vida de Maria, sobre a qual não pretende afirmar ou negar nada. Por isso, ainda que se interprete “coabitar” como “consumar matrimônio”, das palavras do evangelista não se segue de modo algum que Maria e José tenham-se unido depois, só porque não o tinham feito até então.
3.ª objeção: Embora nas línguas hebraica e aramaica, de fato, não haja um termo técnico e específico para designar os primos (tinham de dizer, com algum incômodo, filho do irmão do pai…), daí não se segue que os irmãos do Senhor fossem primos dele. A razão é que o grego do Novo Testamento, sim, possui um termo técnico e específico para designar os primos (ἀνεψιοί), que os hagiógrafos deveriam ter utilizado no lugar de ἀδελφοί, para não induzir o leitor em erro. Logo, se falam de ἀδελφοί, é porque se trata realmente de irmãos de sangue, não de primos ou parentes em outro grau.
Resposta: A tradução dos LXX sempre verte o vocábulo hebraico ’ach como ἀδελφοί, e não como ἀνεψιοί, mesmo quando é evidente que ele está sendo usado em sentido lato para significar “primos”. A expressão οἱ ἀδελφοὶ τοῦ Κυρίου surgiu no contexto da catequese grega à imitação da versão grega dos LXX e por isso tornou-se como um “termo técnico”, sem perigo algum de erro, já que todos sabiam por tradição o que ela queria dizer. Além do mais, até o final do séc. II não houve qualquer discussão acerca do sentido das palavras “irmãos do Senhor”; esse modo de dizer, por conseguinte, não era visto como contrário ao dogma da virgindade perpétua de Nossa Senhora [10].
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