Recebemos no suporte do site a seguinte pergunta: “Olá, padre Paulo e equipe Christo Nihil Præponere. Escuto muitos boatos e conversinhas sobre os evangelhos apócrifos. Seria muito bom um conteúdo explicando o que é e como tratar esse assunto. Obrigada”.
Resposta: Para a teologia católica, a palavra “apócrifo” tem um sentido técnico definido, estreitamente relacionado com a questão do cânon bíblico e da inspiração dos livros da Sagrada Escritura. Esclareçamos primeiro os termos do problema para considerarmos em seguida a origem e as classes de livros apócrifos e, por último, contrastarmos com a verdade dos fatos o tipo de informação (ou, antes, desinformação) que alguns meios costumam veicular sobre o assunto.
1) Noção. — A palavra “apócrifo” deriva do grego ἀπόκρυϕον e significa, etimologicamente, “coisa oculta”, “recôndita”, “secreta” ou “escondida”. Nesse sentido, os antigos costumavam chamar de apócrifos os escritos que continham doutrinas reservadas aos iniciados de alguma seita ou conhecidas apenas pelos membros de um determinado grupo. Nesta última acepção, um livro apócrifo é sinônimo de esotérico (por oposição a exotérico), ou seja, lido exclusivamente pelos integrantes de uma escola filosófica, em lições fechadas ao público.
Entre os Santos Padres e escritores eclesiásticos dos primeiros séculos, a palavra sofre algumas oscilações de sentido e passa a ser usada para designar três coisas: a) livros de autoria duvidosa ou desconhecida, às vezes atribuídos falsamente a um autor (chamados por isso de pseudepígrafos) [1]; b) livros heréticos ou que ensinavam coisas verdadeiras misturadas com falsas; c) e livros de leitura privada, ou seja, extralitúrgica, em contraposição aos livros que a Igreja costumava ler publicamente na Missa [2].
2) Definição. — E os apócrifos bíblicos? O que são? Trata-se de um conjunto de escritos de autoria incerta que, apesar de sua afinidade com as Sagradas Escrituras (quer por título ou conteúdo) e da grande autoridade que, não raro, se lhes atribuiu no passado, nunca foram reconhecidos pela Igreja como inspirados nem canônicos [3].
3) Origem. — Essa definição se aplica a todos os livros apócrifos, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Os apócrifos veterotestamentários, de acordo com alguns estudiosos, surgiram no período da chamada “literatura intertestamentária”, entre os séculos II a.C. e I d.C. Estes livros, bastante numerosos, podem ser classificados segundo a matéria de que tratam em três séries análogas à distribuição dos livros do Antigo Testamento: históricos, didáticos e proféticos [4]. Quanto à origem, estes apócrifos podem ter surgido em resposta a diferentes necessidades:
[…] em parte, ao propósito de acrescentar à Lei novas tradições, prescrições, explicações ou exortações morais; em parte, ao desejo de completar a história bíblica; em parte, enfim, à intenção de propor […] os vaticínios dos profetas referentes à era messiânica, para que os judeus, de ânimo abatido pelas calamidades, se reconfortassem com a esperança da iminente libertação [5].
Os apócrifos neotestamentários, por sua vez, são de origem mais recente: começam a difundir-se desde pelo menos o século II d.C e continuarão a ser escritos até o já tardio século IV. Também estes apócrifos podem ser agrupados de maneira análoga à distribuição dos livros canônicos do Novo Testamento. Por isso, é comum falar-se de evangelhos apócrifos, Atos apócrifos, epístolas apócrifas e Apocalipses apócrifos. Quanto à origem, é ponto pacífico que
[…] alguns foram escritos por hereges, com o fim de propagar os dogmas e erros da própria seita; outros, por fiéis piedosos, com a intenção de preencher as lacunas da história evangélica, ou para transmitir à memória das futuras gerações os feitos dos Apóstolos e outros varões apostólicos, conservados às vezes na tradição, mas frequentemente deturpados pela inclusão de falsas circunstâncias e portentos [6].
Em razão dessa dupla fonte (em uns casos, hereges; em outros, cristãos ortodoxos), o conjunto da literatura apócrifa não se reduz, sem mais, a livros heterodoxos. Alguns o são, e é por isso que as autoridades eclesiásticas resistiram desde o princípio à sua difusão e inclusão entre as leituras da Liturgia. Destacam-se nesta categoria os evangelhos gnósticos, que começaram a pulular logo nos primeiros séculos da era cristã, e não é improvável que antes da morte do Apóstolo S. João já estivessem circulando certas falsificações gnósticas (se não por escrito, ao menos por ensino oral) da vida de Jesus [7]. Outros, porém, não só estão livres de problemas doutrinais sérios como preservam tradições fidedignas (misturadas às vezes, é verdade, com exageros, imprecisões ou fábulas); daí que tenham gozado de autoridade e estima, chegando inclusive a ser considerados canônicos por autores antigos. “Apócrifo”, portanto, não é sinônimo de “herético”.
Os apócrifos do Novo Testamento são tão numerosos quanto os do Antigo, senão mais. E embora alguns deles, como dissemos, promovam heresias e outros contenham lendas fabulosas acerca de um Jesus demasiado “milagreiro” (lendas, aliás, que a Igreja nunca acolheu como verídicas), nenhum deles foi escrito com a intenção de contar “a história real” de Cristo, como se fosse falsa ou mentirosa a que lemos nos Evangelhos canônicos. Falsa é a afirmação, que parece inspirar certos documentários e matérias de revista, de que nos apócrifos se encontrariam “revelações inesperadas” sobre um Jesus em nada parecido com o que vemos na Bíblia de todos os dias.
4) Os “apócrifos” da mídia. — Naturalmente, a palavra “apócrifo” faz despertar um não se sabe quê de curiosidade e suspeita, mas que, graças à TV e à internet, logo se desfaz para transformar-se em certeza, como um raciocínio que salta convicto para a conclusão sem antes examinar as premissas. “Se existem evangelhos apócrifos”, pensa-se, “é porque a Igreja Católica, por razões escusas, os terá escondido dos fiéis. Ora, que outra razão teria levado a Igreja a mantê-los longe do povo crédulo senão o fato de conterem a verdade sobre Jesus?”
Daí surgem as difundidíssimas “especulações” sobre o suposto conteúdo de tais escritos. O que diriam eles de tão grave para pôr a Igreja em maus lençóis, a ponto de obrigá-la a dar um “chá de sumiço” em desmentidos tão vergonhosos de sua doutrina, inventada para servir os “poderosos”?
As versões variam segundo os gostos, sempre porém com uma suposição comum de fundo: Cristo não pode ter nada a ver com o que sempre creram os cristãos e ensinou a Igreja. Por isso, nos apócrifos Jesus nunca teria afirmado ser Deus nem querido fundar uma Igreja: Ele seria um hippie avant la lettre; jamais teria proibido o divórcio nem exortado à virgindade pelo Reino: Ele seria um defensor do “amor livre”; não viveu exclusivamente para cumprir a vontade do Pai e redimir a humanidade: Ele teria achado tempo para envolver-se com Maria Madalena e, quem sabe, ter filhos…
5) Os apócrifos de verdade. — No entanto, quem se dispuser a ir às fontes e ler os apócrifos que, de fato, sobreviveram ao naufrágio do tempo, incluindo vários heterodoxos, não achará nada disso. Na verdade, achará justamente o contrário: um Jesus muito mais “ostensivo” em seus milagres, muito mais “duro” em sua doutrina, muito mais “esquisito” em seu modo de falar e agir. O que faz pôr em dúvida, desde logo, a estranha lógica pela qual a Igreja teria escondido testemunhos escritos que, mais do que contradizer, serviriam para reforçar sua pregação sobre a divindade de Cristo. Se, com efeito, a intenção das autoridades era manter o povo num estado de ignorância forçada, quase narcotizado por doutrinas absurdas, por que o teria impedido de consumir aquela “literatura fantástica”?
Além disso — como dissemos antes —, muitos apócrifos não heterodoxos, sobretudo os evangelhos lendários, apesar de não serem reconhecidos pela Igreja, contêm pequenos detalhes narrativos que ela, sim, acolheu e de alguma maneira oficializou por meio de sua Liturgia [8]. É o caso, por exemplo, dos nomes dos pais de Nossa Senhora, Joaquim e Ana (celebrados anualmente em 26 de julho), que só conhecemos graças ao chamado Protoevangelho de Tiago, também conhecido como Natividade de Maria. O texto parece ser da lavra de algum judeu converso e deve ter sido escrito, segundo algumas estimativas, em meados dos século II, no Egito ou na Ásia Menor [9].
A obra foi reelaborada mais tarde no Ocidente, entre os séculos IV e V, com base em elementos de um Evangelho de Tomé. Em versão latina, ela será conhecida como Livro do nascimento da bem-aventurada Maria e da infância do Salvador (ou Evangelho do Pseudo-Mateus). Nela encontramos episódios bastante curiosos, como o que se lê nos capítulos 20 e 21, sobre a fuga da Sagrada Família para o Egito. Como estivessem todos cansados da jornada, empreendida havia já três dias, a Santíssima Virgem sentou-se à sombra de uma palmeira para recobrar as forças:
Então, o menino Jesus, sentado de rosto alegre no colo de sua Mãe, disse à palmeira: “Dobra-te, árvore, e de teus frutos alimenta minha Mãe!” E logo em seguida, obediente a estas palavras, a palmeira inclinou-se até os pés de Maria, e eles colheram frutos, com o quais todos se alimentaram [10].
Depois disso, por ordem de Jesus, “a palmeira se ergueu, e começaram a sair pelas raízes dela fontes de água limpíssimas, fresquissimas e dulcíssimas” [11], para matar a sede do Família fugida de Belém. No dia seguinte, antes de retomar a viagem, Jesus concedeu à palmeira, em recompensa pela sua obediência, que um de seus ramos fosse levado ao Paraíso, e que a todos aqueles que, dali em diante, superassem algum desafio ou dificuldade se dissesse: “Alcançastes a palma da vitória” [12]. (Como se vê, alguns apócrifos também são fonte de “etimologias” populares!)
Não deixa de chamar a atenção que, por via de regra, as mesmas pessoas que aceitam a autoridade histórica de apócrifos heréticos, quando estes contrariam qualquer ponto da fé e doutrina cristãs, tendem a negar qualquer valor a outros, quando atestam e confirmam (em que pesem certos exageros e invenções piedosas) essa mesma fé e doutrina, como o que lemos acima. Seria mais um caso de “dois pesos, duas medidas”?...
6) Conclusão. — Se é verdade que, nos primeiros séculos, a Igreja teve de lutar com força para que os apócrifos (e, antes de tudo, os heterodoxos) não envenenassem a fé do povo cristão com doutrinas estranhas, tomadas de empréstimo a todo tipo de corrente filosófica, num sincretismo que só não perde para as religiosidades difusas da Nova Era, daí não se segue que a Igreja tenha agido assim para “ocultar” a verdade. Antes, pelo contrário, as proibições e condenações eclesiásticas contra estes escritos visavam preservar a verdade histórica sobre Cristo de erros, deturpações e acréscimos indevidos, mesmo que tivessem surgido da imaginação de almas de boa-fé.
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