Quando o Papa São João Paulo II peregrinou à cidade da Padroeira do Brasil, em 1980, a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida fazia dois anos que tinha sofrido um atentado, partindo-se em mil pedacinhos e tendo de passar por um árduo e doloroso processo de restauração.

Dirigindo-se aos brasileiros na ocasião, Sua Santidade fez uma menção daquele triste acontecimento, extraindo daí um cativante ensinamento espiritual:

Sei que, há pouco tempo, em lamentável incidente, despedaçou-se a pequenina imagem de Nossa Senhora Aparecida. Contaram-me que entre os mil fragmentos foram encontradas intactas as duas mãos da Virgem unidas em oração. O fato vale como um símbolo: as mãos postas de Maria no meio das ruínas são um convite a seus filhos a darem espaço em suas vidas à oração, ao absoluto de Deus, sem o qual tudo o mais perde sentido, valor e eficácia. O verdadeiro filho de Maria é um cristão que reza. [1]

Quem conhece um pouco da história de Aparecida não pode deixar de ver, nesta leitura do Papa Wojtyla, uma referência (proposital ou não) às próprias origens dessa devoção. Pois foi justamente através da oração, este instrumento tão simples quanto poderoso, que o afeto à imagem milagrosa cresceu nos arredores do rio Paraíba do Sul, logo depois de 1717, até atingir, com o passar do tempo, todo o território brasileiro.

O jornalista Rodrigo Alvarez recorda por exemplo que, dos pescadores que encontraram a imagem milagrosa, “o único que seguramente seguia a religião católica era Felipe Pedroso”: sem ele “não haveria Aparecida” e a imagem jamais se transformaria “no maior símbolo da fé católica brasileira” [2], como é hoje.

Mas o que fez este humilde pescador, afinal, de tão extraordinário, para ser considerado o pioneiro da devoção a Nossa Senhora Aparecida?

A resposta é muito objetiva: ele simplesmente rezou.

De fato, depois de ter achado a imagem no rio, Felipe “a levou para casa, colou a cabeça no corpo” — pois, como sabemos (evento insólito!) as duas partes foram pescadas separadamente — “e passou aproximadamente quinze anos cultuando a escultura ‘aparecida’ num pequeno altar doméstico, sem que muita gente a visse” [3].

Depois disso, Felipe passou a imagem ao filho, Atanásio, a partir de quem a devoção começou efetivamente a crescer: “Aos sábados, não se sabe exatamente em que horário, os vizinhos de Atanásio iam até a casa dele para rezar o terço e cantar em homenagem à Nossa Senhora” [4].

Este constitui, portanto, o grande “segredo” de Aparecida, por assim dizer: a devoção à Padroeira do Brasil nasceu no escondimento de uma alma que tinha fé e amava, com simplicidade, a Mãe de Deus. Foi passada de pai para filho, na intimidade de um lar católico — no seio da “Igreja doméstica” que é a família [5] — e então foi crescendo, timidamente… Não por estratégias de marketing, não por imposição de ninguém, mas “por atração — palavras de um outro Pontífice, também em Aparecida —, como Cristo ‘atrai todos a si’ com a força do seu amor” [6].

Nesta época, evidentemente, não havia grandes romarias à região, nem novenas solenes transmitidas pela televisão. Havia somente a católica de algumas pessoas, e nada mais. Se com aparentemente tão pouco Deus fez de Aparecida a maior devoção mariana do Brasil — e de seu santuário, hoje, o segundo maior do mundo —, o que não poderá fazer com nossas vidas, com nossos lares e com nossos grupos de amigos, se nos deixarmos realmente transformar pela força da oração e pela realidade transformadora da fé?

A identidade e a história de Aparecida são, por isso, também um apelo. A imagem encontrada há 300 anos nas águas ainda tem muito a dizer a nós, homens e mulheres do século XXI. E não são necessárias grandes elucubrações para descobrir o núcleo dessa mensagem. O próprio Papa São João Paulo II fez questão de decifrá-la de maneira bem prática: “Quem dera renascesse o belo costume — outrora tão difundido, hoje ainda presente em algumas famílias brasileiras — da reza do terço em família.” [7]

Com essas palavras, ditas imediatamente antes da interpretação bonita de que falamos no início desta matéria, é como se o Papa dissesse: Quem dera os devotos de Aparecida continuassem a ser do modo como começaram…! Quem dera os filhos dessa Mãe bendita se esforçassem por ser filhos de verdade desta Mãe: filhos que peregrinam e fazem romaria, sim; filhos que beijam com amor a imagem da Virgem, também; filhos que defendem com unhas e dentes sua Mãe contra os ataques de seus inimigos, tanto melhor; mas, principalmente, em primeiríssimo lugar, filhos que se dedicam à vida de oração — e procuram ensinar o mesmo a seus filhos, a seus familiares, a seus amigos.

Porque “o verdadeiro filho de Maria — ouçamos bem o que nos diz São João Paulo II — é um cristão que reza”. Sem isto, sem um relacionamento de amizade íntima com o Senhor e com sua Mãe santíssima, toda e qualquer devoção se converte em um afeto puramente estético, superficial, exterior… E nada pode ser mais avesso à religião de Cristo do que um corpo sem alma.

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