Bruno, o célebre fundador da Ordem dos Cartuxos, nasceu em Colônia (Alemanha), às margens do Reno, de pais nobres e virtuosos que o educaram com muita piedade. Em sua juventude, foi enviado a Paris, onde progrediu tanto em todos os ramos do conhecimento que foi nomeado doutor em Divindade e, logo depois, elevado à dignidade de cônego em Reims, na França. 

Um acontecimento horrível se deu em Paris antes de ele deixar a cidade. Morreu um professor da Universidade de Sorbonne, que sempre fora considerado muito erudito e, ao mesmo tempo, muito devoto. Sua morte parecia feliz, pois ocorreu logo após ter recebido os santos sacramentos. Porém, quando o cadáver foi conduzido à igreja, para as cerimônias fúnebres e orações habituais, eis que o morto se levantou durante o Ofício de Defuntos, para grande horror dos presentes, e gritou com uma voz terrível: “A justiça de Deus me acusou!” No segundo dia, quando os clérigos chegaram à mesma leitura do Ofício, o corpo se moveu novamente e vociferou com tons medonhos: “A justiça de Deus me rejeitou!” No terceiro dia, aconteceu o mesmo: o morto, sentado, clamou com uma voz ainda mais assustadora: “A justiça de Deus me condenou!” Pode-se facilmente imaginar os sentimentos de todos os presentes: não houve ninguém que não ficasse pálido e não deixasse a igreja com temor e com tremor.

Juntamente com seis de seus amigos, Bruno presenciou esse triste acontecimento e teve seu coração profundamente tocado pela graça divina. Ficou tão mexido com o terrível julgamento do Todo-Poderoso, que resolveu, a partir daquele momento, retirar-se do mundo e trabalhar com mais perseverança na salvação de sua alma para que, um dia, pudesse justificar-se ante o trono divino. Informou os companheiros de sua decisão e persuadiu-os, pela seriedade de suas palavras, a adotar a mesma resolução. Eles não demoraram a realizar este intento: venderam imediatamente tudo o que possuíam, deram-no aos pobres e, despedindo-se de seus conhecidos, foram de Paris a Grenoble (sudeste da França), vestidos com as modestas roupas de peregrinos.

São Bruno, retratado por Vincenzo Carducci.

Eles contaram a Santo Hugo, o respeitável bispo daquela cidade, tudo o que havia acontecido, informaram-no de seus planos e suplicaram que lhes destinasse um lugar em sua diocese, onde pudessem viver em solidão e, por meio de uma vida piedosa, merecer graças perante o divino Juiz. Hugo sonhara, na noite anterior, com sete estrelas brilhantes caindo a seus pés; e quando viu esses sete homens, tão humildes e cheios de santo zelo, não duvidou: satisfeito com a resolução que tomaram, Deus prenunciara a vinda deles por meio desse sonho.

Por isso, recebeu-os com muita bondade, fortaleceu-lhes a resolução e levou-os a um local chamado Chartreuse, nos Alpes ocidentais franceses. Isolado por altas montanhas, este deserto era tão pedregoso e estéril que não parecia uma habitação adequada sequer para animais selvagens, quanto mais para homens cultos! A São Bruno, no entanto, pareceu o lugar exato para o seu objetivo. Ergueu ali uma pequena igreja em honra de São João Batista e vários casebres, todos separados uns dos outros. Este foi o início da Ordem dos Cartuxos, que desde então se tornou tão célebre e cujos membros nunca diminuíram o fervor que distinguiu os primeiros fundadores. 

São Bruno e os seus companheiros levavam uma vida muito severa. Eis os principais pontos que ele cumpria e desejava que fossem observados pelos demais: apartar-se de toda comunicação com os homens; obedecer a um contínuo silêncio, exceto ao reunir-se na igreja para cantar os louvores do Altíssimo; usar sempre o cilício, abster-se de carne e jejuar diariamente; dedicar tempo à oração, aos louvores de Deus, à leitura devocional e aos trabalhos manuais. O santo fundador escolheu Nossa Senhora como padroeira da Ordem e São João Batista como seu protetor especial, para que sua vida servisse aos eremitas como exemplo da mais alta perfeição. 

Apesar de o Maligno suscitar inimigos para perseguir este santo homem e seus companheiros, São Bruno permaneceu inabalável na prática do que começara por amor a Deus e pela salvação de sua alma. Tendo vivido nesse deserto com grande austeridade por seis anos, foi solicitado pelo Papa Urbano II, antigo conhecido seu, para tratar de assuntos importantes em Roma. O santo só não ficou menos triste do que os seus discípulos com esta notícia, mas foi obrigado a obedecer ao Pontífice. 

“São Bruno rejeita o arcebispado de Régio da Calábria”, por Vincenzo Carducci.

São Bruno permaneceu seis anos em Roma, pois o Papa precisava dos seus conselhos e conhecimentos para o bem da Santa Igreja. O Santo Padre pretendia, como recompensa por seus fiéis serviços, elevá-lo à dignidade de arcebispo da cidade italiana de Régio da Calábria, sé que estava vacante na ocasião. O humilde servo de Deus recusou-se, com muitas lágrimas, a aceitar a proposta, dizendo que já tinha contas suficientes a prestar pela própria alma e que não podia tornar-se responsável por aquelas que um posto tão elevado colocaria sob seu encargo. 

O Papa ficou tão comovido que não só desistiu de sua intenção, como também permitiu que São Bruno deixasse a corte papal — como ele desejava — e residisse em um lugar ermo na Calábria, onde, assim como em Chartreuse, ele poderia servir a Deus em paz e tranquilidade. O santo, na companhia de alguns que partilhavam com ele do mesmo espírito, percorreu a Calábria até encontrar, na diocese de Squillace, um deserto que se adequasse a suas intenções. Em pouco tempo, conseguiu organizar tudo como em Chartreuse, instituindo as mesmas regras quanto à vida e à ocupação dos eremitas. Foi nesse local que São Bruno passou o resto de seus dias em grande santidade.

Um certo conde da Calábria, chamado Rogério, deparou-se um dia com as cabanas dos monges enquanto caçava na floresta. Ficou tão admirado e impressionado com a austeridade de suas vidas que ofereceu a São Bruno algumas terras que possuía nas redondezas. Mandou também construir uma igreja para estes santos homens, a qual foi dedicada à Santíssima Virgem. O Todo-Poderoso não tardou a recompensar abundantemente a benevolência do conde, pois, quando este sitiou Cápua (cidade italiana da região da Campânia), e um de seus súditos conspirava entregá-lo nas mãos do inimigo, São Bruno, longe em sua solidão, apareceu ao conde durante a noite e avisou-o do perigo em que se encontrava.

“A morte de São Bruno”, por Vincenzo Carducci.

Pouco tempo depois, o Altíssimo enviou ao santo uma grave enfermidade como prenúncio da morte que se aproximava. Antes de receber os santos sacramentos com grande devoção, realizou uma confissão pública de sua fé, contra a heresia que então fazia incursões na Santa Igreja, e admoestou os presentes a permanecer constantes no serviço de Deus. Finalmente, vestido de roupas penitenciais, tomou o crucifixo e, enquanto o beijava devotamente, o Senhor Deus libertou sua alma dos grilhões terrenos, no ano 1101. Uma fonte milagrosa jorrou perto de seu túmulo, cuja água curou cegos, coxos, surdos e vários que sofriam de outras enfermidades.

Considerações práticas

I. Um grande e célebre doutor, que na aparência vivera piedosamente, que morrera depois de receber os santos sacramentos… condenado! Fato verdadeiramente terrível! Ou ele tinha recebido de forma indigna os santos sacramentos ou, após recebê-los, cometera um pecado mortal e nele morrera. 

Nem sempre morrem felizes os que receberam os sacramentos. Nem todos que se confessam e participam da Santa Eucaristia antes do fim salvam suas almas. Muitos se confessam e recebem a Sagrada Comunhão no leito de morte e, ainda assim, são condenados.

“A conversão de São Bruno ante o corpo de Diocrés”, por Vincenzo Carducci.

Entre eles estão, em primeiro lugar, aqueles que, quando saudáveis, muitas vezes recebem indignamente os santos sacramentos — seja ocultando um pecado mortal de propósito na confissão; seja não se arrependendo das próprias faltas; seja não manifestando o firme propósito de evitar não só todo pecado, mas também toda ocasião de pecado — e neste estado ousam receber a Sagrada Comunhão. A vergonha, que impede muitos de confessar corretamente os seus pecados na saúde, é ainda maior na hora da morte. O Maligno os faz acreditar que sua doença não é perigosa e que eles serão mais capazes de confessar-se quando estiverem bem novamente; ou, ainda, que é impossível repetir todas as suas confissões inválidas anteriores. Acontece então que, assim como na saúde se confessavam mal e comungavam indignamente, na doença fazem o mesmo. 

Em segundo lugar, há aqueles que viveram com grande ódio por longo tempo, não perdoando aos seus inimigos. Em terceiro lugar, há os adictos ao vício da impureza, que não se esforçaram por emendar-se quanto tinham saúde. Estes têm todos os motivos do mundo para temer que, mesmo recebendo dignamente os santos sacramentos no leito de morte, virão a cair novamente no velho pecado, morrer nele e ir assim para a perdição eterna. Isso porque o Maligno volta ao ataque depois que as pessoas recebem os sacramentos, representando-lhes mais intensamente o mal que fizeram, de modo a renovar neles o ódio ou prazer sensual a que anteriormente se entregavam e fazê-los pecar por complacência e desejo. Como se acostumaram a ceder às tentações do demônio, eles serão facilmente vencidos pelo pecado de novo; e, caso morram sem outra confissão, ou se esta lhes for impossível, sem contrição perfeita, certamente eles serão condenados.

Oh! Que as três classes de homens acima mencionadas considerem devidamente o terrível perigo de sua situação. Para evitá-la, confesse-se e comungue com retidão. Não alimente nenhum ódio em seu coração, e não seja escravo do pecado de impureza, ou, se infelizmente ele se apoderou de você, aparte-se dele. Acostume-se a lutar sempre com coragem contra as tentações de Satanás.

II. Com o fim miserável do célebre doutor, São Bruno encheu-se de um temor salutar e resolveu viver em grande austeridade, de modo a justificar-se perante o tribunal do Altíssimo e escapar do Inferno. 

Lemos e ouvimos tantos exemplos terríveis de pessoas que morrem sem tempo para arrepender-se. Por que, então, você não se decide a fazer penitência e reformar-se a si mesmo? Receio que não considere tão seriamente, como fez São Bruno, o que seja comparecer ao tribunal de um Juiz justíssimo e onisciente, e perder-se por toda a eternidade.

Para a sua própria salvação, exorto e suplico a você que, de agora em diante, reflita constantemente acerca do julgamento de Deus. Medite com frequência sobre o Inferno. “Pensa no juízo divino”, diz São Cirilo de Jerusalém, “e nem a impureza nem qualquer outro vício terá poder sobre ti. Assim que te esqueceres de Deus e de seu juízo, hás de cogitar o pecado e cometê-lo.” “Imploro-vos”, diz São João Crisóstomo, “pensai no Inferno. O Maligno faz de tudo para que vos esqueçais da danação eterna. É pensando seriamente a respeito do Inferno que havemos de evitá-lo.”

Referências

  • Extraído, traduzido e adaptado passim de: Lives of the saints: compiled from authentic sources with a practical instruction on the life of each saint, for every day in the year, v. 2. New York: P. O’Shea, 1876, p. 432ss.

Notas

  1. Vários autores modernos rejeitam como infundada a história deste infeliz professor. Contudo, o erudito bolandista Daniel Papebroch, que escreveu a vida de São Bruno, cita o testemunho de vários autores respeitáveis confirmando a veracidade da história. Os próprios cartuxos, que conhecem melhor a origem de sua Ordem, não a questionam e citam-na como a causa que levou à conversão seu santo fundador, como se pode ver nos anais da Ordem, impressos em 1687. Fazemos questão de inteirar o leitor desses fatos para que não se confunda ao ouvir opiniões contrárias a esse respeito. (N.A.)

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