São Jerônimo, o grande Doutor da Igreja, nasceu em Estridão, na Dalmácia, durante o reinado do Imperador Constantino. Não menos célebre por sua vida santa que por seu eminente conhecimento e pela grande erudição com que explicou os Livros Sagrados, São Jerônimo foi também um heroico e vitorioso combatente da heresia, e um incansável defensor da veracidade da fé católica. 

Recebeu em Roma as primeiras lições de ciência. Um desejo insaciável de estudar a fundo todos os ramos do conhecimento levou-o a diferentes lugares, para tornar-se discípulo dos mais renomados professores. Desta forma, progrediu tanto na ciência, que os mais eruditos, inclusive os Papas, pediam-lhe conselhos sobre diversos assuntos, principalmente quando tinham dificuldade em explicar a Sagrada Escritura.

Tendo voltado da Grécia, para onde fora em busca de conhecimento, viajou até a Síria para se aprofundar nos estudos e visitar os lugares santos. Lá, conhecendo muitos monges, familiarizou-se com a vida santa que levavam e também tomou a decisão de deixar o mundo e viver na solidão, para servir a Deus com mais fidelidade e não ser perturbado na leitura de obras eruditas e piedosas. Permaneceu lá durante quatro anos, em profunda solidão e com muita piedade.

“A Tentação de São Jerônimo”, por Giorgio Vasari.

Suas únicas vestes eram feitas de tecido grosseiro, usado para fazer sacos; dormia direto no chão e seu travesseiro era uma pedra. Seus jejuns foram tão severos que, segundo ele mesmo conta, seu corpo inteiro ficou esquálido, e seus ossos ficaram cobertos apenas por pele. Apesar dessas austeridades, Deus permitiu que ele fosse, por algum tempo, intensamente atormentado por terríveis tentações. Tudo o que tinha visto em Roma, nos teatros e noutros lugares, apareceu-lhe diante dos olhos. Lançando-se diante do crucifixo, banhou os pés de Cristo com lágrimas amargas, ficou vários dias sem comer nada, batia no peito com pedras e só parou de rezar quando o Céu lhe restituiu a paz e a calma ao coração. Para perseverar nesse estado de espírito, procurava ocupar-se com outros pensamentos e evitar a ociosidade, a fim de que o Maligno não achasse ocasião de tentá-lo ainda mais. 

Lia a Sagrada Escritura com a máxima atenção e, para melhor compreendê-la, aprendeu o hebraico, que, como ele mesmo confessou, achava extremamente difícil. Depois de quatro anos, foi a Jerusalém visitar os lugares santos e aprender mais perfeitamente a língua. 

Satanás tentou causar-lhe repulsa pela Sagrada Escritura, alegando que o seu estilo não era tão bem acabado como o de Cícero, o escritor pagão, a quem ele estimava muito, e que muitas vezes lia com grande atenção. Deus, porém, castigou-o severamente por isso. Ele mesmo conta que, um dia, muito doente, teve a impressão de estar diante do tribunal de Cristo, que lhe perguntou: “Quem és tu?” Respondeu ele: “Sou cristão.” Ao que rebateu o Juiz, com severidade: “Mentira. Não és cristão, mas ciceroniano, pois onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração.” Pouco depois, o Juiz ordenou que o açoitassem. Enquanto era castigado, Jerônimo clamava: “Ó Senhor, tende piedade de mim, tende piedade de mim!” 

Os açoites cessaram, mas as marcas no corpo do santo eram um sinal: a visão tinha sido muito mais que um sonho. O santo concluiu que se equivocara gastando tanto tempo com um orador pagão. Deixou de lado todos os livros mundanos e voltou a estudar com muita diligência as Sagradas Escrituras. Também traduziu muitos dos livros bíblicos do hebraico para o latim, corrigiu outros conforme a versão grega e acrescentou a todos eles comentários muito eruditos. Aos trinta anos de idade, foi ordenado sacerdote por Paulino, bispo de Antioquia, mas não aceitava ficar a cargo de uma paróquia, pois pretendia dedicar todo o seu tempo à exposição da Palavra. 

Durante o pontificado de São Dâmaso, foi com vários bispos a Roma, onde o Papa o encarregou de assuntos muito importantes. A pedido do Santo Padre, instruiu vários nobres, conduzindo-os a uma vida de grande santidade. Entre elas, as mais conhecidas foram Santa Paula e sua filha Paulina, Santa Marcela, Eustóquio, Rufina, Blesila e Albina. Também pregava frequentemente em Roma, e censurava, com liberdade cristã, os vícios e abusos dos romanos. Mas esse ensino, bem como seus sermões, causou-lhe muito sofrimento, particularmente após a morte de São Dâmaso. Mesmo defendendo sua honra, duramente atacada por algumas pessoas perversas, para não ser perturbado no trabalho com o Evangelho, o santo voltou para a Palestina, levando consigo algumas pessoas que haviam decidido morar lá.

São Jerônimo e alguns discípulos, por Jan Hovaert.

A santa viúva Paula também deixou Roma, foi com outras mulheres para a Terra Santa e construiu em Belém, perto da manjedoura do Salvador, um mosteiro onde Jerônimo levava uma vida religiosa com as pessoas que se submetiam à sua regra. Foi esta a origem da célebre Ordem religiosa que até hoje carrega o nome de São Jerônimo. Ele mesmo deu a seus irmãos o mais brilhante exemplo em todas as virtudes, mas, para além disso, trabalhou com zelo pelo bem da Santa Igreja. 

Naquela época, vários novos hereges atacaram a fé católica com grande fúria; entre eles estavam Vigilâncio, Helvídio, Pelágio e Joviniano. São Jerônimo confrontou a todos, refutou suas heresias e defendeu a fé católica com muitos trabalhos escritos. Não houve inimigo da Igreja que este santo homem não desafiasse e derrotasse de imediato. Por isso ele é justamente chamado de “martelo dos hereges” e “protetor da verdade católica”. 

Nenhum perigo, nenhuma ameaça dos hereges, nenhuma perseguição, nem mesmo a própria morte poderia detê-lo. “O cão late para proteger o dono”, dizia ele, “e não hei de falar para defender o meu Deus? Posso morrer, mas não me calar.” Todos os hereges o temiam, mas todos os verdadeiros católicos o amavam e estimavam, não só na Palestina, mas em todas as regiões do mundo cristão. Muitos viajavam de terras distantes até Belém para ver um homem tão célebre. 

Embora São Jerônimo fosse tão importante aos olhos do mundo, era profundamente humilde, a ponto de fugir de toda glória vã. Diz ele numa carta que, desde a infância, nada evitava mais do que o orgulho e a soberba, que atraem o ódio de Deus. Segundo suas próprias palavras, ele tinha constantemente diante dos olhos o versículo: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). Ao explicar o Evangelho, nunca seguia apenas o seu próprio julgamento, mas rezava fervorosamente primeiro, rogando a Deus que o iluminasse, e depois pedia a opinião de outros homens instruídos.

“São Jerônimo e o Anjo”, por José de Ribera.

Para preservar a humildade, lembrava-se com frequência de seus pecados, como ele mesmo confessou, e exclamava com o salmista, de joelhos e lágrimas nos olhos: “Ó Senhor, não te recordes dos pecados da minha juventude e da minha ignorância” (Sl 24, 7). Apesar de ter levado uma vida tão austera e santa, tinha um enorme pavor do Juízo Final e do Inferno. “Sempre que penso nesse dia terrível, meu corpo inteiro treme”, dizia ele. “Posso estar comendo ou bebendo, ou ocupado com outra coisa, mas pareço sempre ouvir o som terrível da trombeta do último dia: ‘Levantai-vos, mortos, e vinde a juízo!’”; e ainda: “Nem a fama nem a honra podem perturbar-me, pois o medo do terrível julgamento de Deus está constantemente presente em mim.”

Em relação ao medo do Inferno, confessou que a principal razão pela qual se escondeu em uma caverna escura, jejuou tão rigorosamente e praticou outras penitências, foi justamente o temor da condenação. “Por medo do Inferno”, escreve ele, “condenei-me a tal masmorra”. Esse duplo temor conservava humilde o santo homem, tão célebre em todo o mundo cristão, e conduzia-o pelo caminho seguro do Céu.

São Jerônimo chegou a uma idade muito avançada, com o corpo tão enfraquecido pelos muitos trabalhos, que muito antes de sua morte já não conseguia levantar-se, nem sequer virar-se de um lado para o outro. Mesmo assim, continuava a instruir os outros e, não sendo capaz de escrever com a própria mão, ditou vários livros em defesa da fé católica. Quando, finalmente, uma febre veio somar-se à sua fraqueza, ele soube que a morte estava próxima e preparou-se para sua última hora, recebendo devotamente os santos sacramentos. 

Manifestava grande alegria ao contemplar a felicidade eterna da qual se aproximava a cada hora. Aos que estavam com ele, especialmente seus filhos espirituais, exortou com grande zelo ao amor a Deus e ao próximo, e depois entregou calmamente sua alma à guarda daquele por cuja honra trabalhara e sofrera. Seu santo corpo foi sepultado com grande solenidade em Belém, não muito longe da manjedoura do Senhor, mas depois ambos foram transladados para a Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Os paramentos e o cálice que Jerônimo usou durante muito tempo para celebrar Missa ainda estão preservados, e são justamente estimados como relíquias preciosas de tão grande santo. 

São Jerônimo, retratado por Caravaggio.

Não menos preciosas para a Igreja de Cristo são as muitas obras que o santo mestre escreveu, pois contêm não somente as mais poderosas armas contra os hereges, como também muitas instruções úteis aos verdadeiros católicos. Deus o glorificou com muitos milagres, mas talvez o maior deles seja o fato de um homem, tão viajado e perseguido, e de compleição tão fraca e débil, ter conseguido escrever tantas e tão eruditas obras, derrotar tantas heresias e conduzir tantas almas a Deus; numa palavra, como foi capaz de fazer tudo o que fez em benefício da Igreja e de inúmeras almas. Verdadeiramente, foi a mão do Senhor que agiu por meio dele!

Considerações práticas

I. Enquanto esteve no deserto, São Jerônimo foi muitas vezes perturbado pela recordação de cenas que tinha visto no teatro em Roma. 

Veja os frutos de tais divertimentos. Muitos, talvez, não tenham maus pensamentos quando estão nesses lugares, pois o Maligno deseja que continuemos a frequentá-los. Mas chegará o momento em que esse espírito traiçoeiro nos fará recordar tudo o que vimos e ouvimos nessas peças pouco castas, e assim, talvez, nos leve a cometer um grande pecado. 

Se quiser escapar desse perigo, evite tudo o que possa ocasioná-lo. “No santo Batismo — diz São Salviano — renunciaste ao demônio e a todas as suas obras. As peças frívolas e os divertimentos indecentes são obras do demônio.” Portanto, ao frequentar esses lugares, você como que revoga sua primeira renúncia e volta novamente para Satanás. Acaso é possível fazer isso sem ter de prestar contas a Deus? 

Muito mais severo será o seu julgamento, se levar outros, talvez até crianças, a tais lugares. Quintiliano escreve que, em certa época, não era permitido em Roma que os jovens frequentassem o teatro, para que não aprendessem o que era melhor não conhecerem. Como os pagãos eram solícitos para com seus filhos! E como agem alguns pais cristãos? Oh, pais! Seriam pais cristãos só de nome? Como haverão de envergonhá-los os pagãos perante o tribunal de Deus! Como vocês se justificarão? 

II. São Jerônimo rezava e fazia penitência quando era tentado. Também se esforçava por ocupar a mente com outros pensamentos. Que vocês também procedam assim nas horas de tentação. Procurem pensar em outras coisas e evitem a ociosidade. 

III. São Jerônimo foi açoitado porque sentia grande prazer em ler um livro, embora nele não aprendesse nem procurasse nada de impuro ou pecaminoso. Oh, como serão flagelados, quão profundas serão as feridas que terão de suportar aqueles que leem todo tipo de livros sensacionalistas, escandalosos, supersticiosos e heréticos! Se quiserem escapar de tal castigo, livrem-se dos livros desse gênero. “Quando lês um bom livro, Deus conversa contigo”, diz São Jerônimo. Logo, quando lê um mau livro, é Satanás que lhe fala.

São Jerônimo, retratado por Giovanni Battista Merano.

IV. São Jerônimo viveu muitos anos em grande austeridade. Por quê? Porque temia o Juízo Final e o Inferno, nos quais pensava incessantemente. Ele acreditava que, sem essa severidade, não poderia justificar-se ante o divino Juiz e não escaparia do Inferno. Você evita o jejum e todo tipo de severidade, leva uma vida sensual e confortável, mas ainda assim espera se sair bem no dia do julgamento e escapar do Inferno. Quem está errado: você ou Jerônimo? Receio que você não pense com tanta seriedade, tal como São Jerônimo, no horror do Juízo Final e do Inferno. Como não pensa nisso com tanta frequência, não se esforça com mais afinco por alcançar um julgamento misericordioso e não ser banido para o Inferno. 

Este é o meu conselho: pense com mais frequência e seriedade no último dia e no Inferno. Estou certo de que, assim, você fará tudo o que for necessário para justificar-se perante o tribunal de Deus. “Medite com frequência e seriedade no dia do juízo que se aproxima e no fogo eterno do Inferno”, diz Santo Ambrósio. Tertuliano escreve: “A contemplação do Inferno é o início da nossa salvação. Ela põe fim ao pecado e prepara o caminho para a graça e o perdão.”

Referências

  • Extraído, traduzido e adaptado passim de: Lives of the saints: compiled from authentic sources with a practical instruction on the life of each saint, for every day in the year, v. 2. New York: P. O’Shea, 1876, p. 407ss.

O que achou desse conteúdo?

7
44
Mais recentes
Mais antigos