Tenho sido nos últimos dias um comentador infrequente e um tanto indesejado de uma página de internet chamada The Imperial Academy, gerenciada por acadêmicos de esquerda. A ideia era que o sítio servisse para compartilhar conhecimentos, mas a única coisa a que ele se dedica, na verdade, são as tensões políticas do dia-a-dia. Não fosse obra de um jovem conservador muito simpático, amigo de outro amigo meu, Robert P. George, eu não teria me envolvido nisso. Chamemos um “ministério menor” a essas minhas tentativas de falar modestas porções de verdade a uma congregação que, em sua maioria, é atéia e secularista.

Gostaria de analisar aqui uma coisa que percebi nesse ambiente. Não me surpreendi ao descobrir que os membros daquele grupo tinham pouco respeito pela fé religiosa. O que me surpreendeu foi a hostilidade e o desprezo escancarados, acompanhados por uma má vontade em entender o que e por que acreditamos, e de que modo devemos agir para estarmos de acordo com nossa fé ou, pelo menos, evitarmos o que nos faz ir contra ela.

Outro dia, o assunto ali em pauta era aborto, e os membros da página se manifestaram dizendo que, se você não quer realizar um, então não ingresse em uma área que exija a prática. Em outras palavras, se você não quer realizar um aborto, fique fora da medicina. Católicos romanos, irlandeses ou não, nem pensem em tornar-se médicos.

Ao fim e ao cabo, em discussões desse tipo, alguém sempre põe na mesa a carta que acredita ser a jogada final: os testemunhas de Jeová. “Então eu suponho”, dizia a pessoa, “que você concordaria em ter como cirurgião ou hematologista um testemunha de Jeová” — profissão que, obviamente, nenhum testemunha de Jeová escolheria, por envolver transfusões de sangue como parte regular e necessária do trabalho.  — “Responda a esta!”

O argumento não chega a ser bem um “curinga”. Para falar a verdade, está mais para um rei, em trajes antiquados, exibindo-se orgulhosamente na mesa, prestes a perder o jogo. Eis o porquê.

Nós católicos não apelamos à Escritura para determinar os detalhes da prática médica. Recorremos, em um sentido geral, à natureza mesma das coisas e à reta razão. A medicina, por definição, remedeia alguma coisa. Se você tem uma febre, o médico restitui o seu corpo à temperatura normal; se tem uma infecção, ele descobre a causa e lhe devolve a saúde; se está com um membro quebrado, ele o conserta; se é vulnerável a uma doença altamente contagiosa, o médico lhe dá proteção; se um órgão não está funcionando devidamente, ele o cura; se o corpo só pode ser salvo com a remoção de um órgão ou de um membro doente, a medicina faz, com uma cirurgia, justamente o que o próprio corpo faz em suas reações autoimunes.

Notem que eu não recorri a nada que fosse extrínseco à medicina ou ao corpo humano. O testemunha de Jeová, porém, serve-se desse expediente, porque não há nada na natureza do sangue que sugira que a hemoglobina de um homem não possa ou não deva ser usada por outro, assim como não há nada de mais em usar o fôlego de outra pessoa para realizar uma respiração boca a boca.

“Saturno devorando o próprio filho”, por Francisco Goya.

Mas o “testemunha de Belial”, em questões como aborto, esterilização e mutilação sexual, faz, sim, um recurso extrínseco. Não a uma leitura distorcida da Escritura, é claro, mas a uma visão distorcida do papel da vontade individual, ou à conveniência política, ou à demografia mundial. Em outras palavras, o testemunha de Belial vira as costas para o reino da medicina.

Sim, porque não há nada de errado com a criança no ventre de uma mulher. Trata-se de um fato puro e simples. Nem há, evidentemente, nada de errado com os sistemas reprodutores dos pais da criança. Eles estão, como se pode ver, em pleno funcionamento. O aborto não restaura a saúde de um membro ou de um órgão doente, não protege contra uma doença contagiosa, não cura, não salva ninguém que esteja correndo risco de morte.

O aborto não remedeia nada. Portanto, não é medicina, ainda que envolva trabalho sobre e em um corpo, assim como tampouco é medicina amputar um membro saudável.

O liberal irá contra-atacar dizendo que o problema são os testemunhas de Jeová que tentam impedir o próprio filho de receber uma transfusão de sangue. No entanto, também isso é um ponto de desvantagem para liberal, e por duas razões.

Em primeiro lugar, uma coisa é, para salvar uma vida, realizar uma ação que um terceiro acredite ser moralmente inadmissível; outra, bem diferente, é obrigá-lo em consciência. Os liberais não desejam somente permitir o aborto, mas compelir todos os profissionais médicos a realizarem a prática. Seria como obrigar um quaker a portar armas em tempos de guerra. Qual a razão disso? Que tipo de pessoas teria vontade de impor algo dessa natureza aos outros?

Mas o liberal se esquece de outro terrível ponto em comum entre ele e um testemunha de Jeová. Trata-se do seguinte: em ambos os casos, temos uma criança morta. Tanto o testemunha de Belial quanto o testemunha de Jeová definem a medicina a partir de algo fora da medicina, e ambos acabam com a morte de uma criança inocente.

Se há alguma distinção a ser feita entre os dois, esta é completamente a favor do testemunha de Jeová. Afinal de contas, ele está sujeito a uma teologia infeliz, mas ele não quer que o seu filho morra. O testemunha de Belial, sim. O testemunha de Jeová limitaria a medicina de modo desnecessário. O testemunha de Belial excederia a medicina ao ponto de arruiná-la. O testemunha de Jeová tem receio de fazer algo que poderia salvar uma vida. O testemunha de Belial não tem receio algum de matar. O testemunha de Jeová só quer viver a própria vida em paz. O testemunha de Belial não deixará você em paz. O testemunha de Jeová só não quer violar a própria consciência, ainda que ela seja confusa. O testemunha de Belial quer forçar você a violar a sua.

O testemunha de Jeová está pensando em Deus — de maneira errada. O testemunha de Belial está pensando em ambição, carreira, dinheiro e sexo. Porque é disso que se trata, no fim das contas: liberação sexual, compulsão estatal e crianças mortas.

Uma última coisa. Há um nome para a forma de governo do século XX que forçaria quakers a portarem armas. Ela se chama “fascismo”.

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