Pelágio foi um monge católico, oriundo da Bretanha e contemporâneo de Santo Agostinho, que defendia a autossuficiência da natureza humana em relação à luta contra o pecado. Segundo ele, o homem não precisaria do auxílio da graça para ser santo, mas apenas de uma força de vontade e fidelidade ao exemplo de Cristo na Cruz. Isso, por si só, bastaria para que qualquer cristão alcançasse as mais altas moradas do
Castelo Interior.
Apesar de condenada pelo XV Sínodo de Cartago, em 418, essa heresia, chamada posteriormente de pelagianismo, suscitou ainda outros defensores nos anos seguintes. Um deles, João Cassiano, desenvolveu uma espécie de "semipelagianismo", defendendo a primazia da ação humana sobre a intervenção divina, isto é, a graça pode auxiliar o gênero humano no cultivo das virtudes, mas a iniciativa é sempre do homem. O Magistério da Igreja precisou intervir outra vez, e, em 526, as doutrinas de Cassiano também foram condenadas e consideradas heréticas pelo colégio episcopal.
Passados tantos anos desde a condenação do pelagianismo e do semipelagianismo, a doutrina da Igreja tem consciência bem sólida da necessidade da graça para o bom desempenho humano não só em assuntos espirituais como em qualquer outro campo em que o homem possa intervir. De fato, não há nada que o ser humano faça de bom que não tenha como origem e termo a Providência divina. Mutatis mutandis, um político precisa tanto da graça sobrenatural para tomar decisões corretas quanto um sacerdote para administrar sua paróquia. Não é preciso muita teologia para perceber como a classe política brasileira está, no sentido exato da palavra, desgraçada.
Não restam dúvidas, portanto, de que o pelagianismo é um erro. Existe, por outro lado — e é para isso que se deve chamar atenção, pois, em parte, disto depende a vitória dos que desejam a santidade —, um perigo de ordem psicológica puramente natural para o cristianismo, como explica o padre Royo Marín, que é a falta de energia de caráter, ou seja, o desejo insuficiente e moroso de busca pela união de amor com Deus [1]. O sujeito quer ser santo, mas não coopera efetivamente com Deus nesse processo, impedindo-O de atuar livremente em sua natureza. Trata-se, portanto, de uma falta de disposição para corresponder às inúmeras iniciativas e inspirações divinas do Senhor.
Notem que esse comportamento é, por assim dizer, quase a antítese do pelagianismo: neste se rejeita a graça por conta de uma soberba, isto é, querer conquistar o Céu pelas próprias forças; naquele se rejeita a graça porque não se tem entusiasmo nem determinação para empreender uma empresa tão grande quanto a perfeição cristã. Em suma, esses pobres covardes acham que a santidade é para apenas alguns eleitos de Deus que nasceram imaculados e que, se acaso Deus os quiser santos, Ele os fará sem qualquer cooperação humana.
Ora, Pelágio estava mesmo errado quando defendeu a autossuficiência para a perfeição cristã. Mas a condenação da Igreja às suas doutrinas não inclui, de maneira alguma, aquela vibração interior do cristão que se deixa generosamente mover por Deus. "Onde falta vontade enérgica", diz o padre Royo Marín, "não há homem perfeito" [2]. A graça, portanto, ainda supõe a natureza, elevando-a, aperfeiçoando-a e colocando-a a seu serviço. Vale lembrar que o mesmo São Paulo que se regozija em suas fraquezas porque lhe basta a graça de Deus, é o São Paulo que compara a vida cristã a uma corrida, na qual se corre por uma coroa incorruptível ( 1Cor 9, 24). Como nos esportes, atividade que exige garra, disciplina e determinação, também a vida de oração necessita dessa disposição interior do homem.
Em uma radiomensagem de 1942, com um tom bastante enfático e varonil, como costumam ser as exortações de um bom pai de família, o então Sumo Pontífice Pio XII convocou o orbe católico a uma nova cruzada pela restauração da sociedade que, já naquela época, definhava sob os erros políticos e filosóficos da moda:
O preceito da hora presente não é lamento, mas ação; não lamento sobre o que foi ou o que é, mas reconstrução do que surgirá e deve surgir para o bem da sociedade. Pertence aos membros melhores e mais escolhidos da cristandade, penetrados por um entusiasmo de cruzados, reunirem-se em espírito de verdade, de justiça e de amor, ao grito de "Deus o quer", prontos a servir, a sacrificar-se, como os antigos cruzados. Se então se tratava da libertação da terra santificada pela vida do Verbo de Deus encarnado, hoje trata-se, se assim podemos falar, de uma nova travessia, superando o mar dos erros do dia e do tempo, para libertar a terra santa espiritual, destinada a ser a base e o fundamento das normas e leis imutáveis para as construções sociais de interna e sólida consistência.
Atenção para estas palavras: a nova cruzada " pertence aos membros melhores e mais escolhidos da cristandade". O atleta que deseja ser membro da seleção principal de seu time, deve, como manda o treinador, submeter-se a uma pesada e constante série de exercícios e dieta rigorosa, a fim de que seu corpo esteja melhor preparado para a disputa. Também no combate espiritual só resistem os mais bem preparados, os melhores e mais empenhados da milícia de Deus. Daí a ênfase de Pio XII. Seu discurso, mais do que retórica apaixonada, é um apelo à vivacidade, um puxão de orelhas nos católicos sonolentos que esperam sentados a vinda da Terra Prometida.
Não é pelagianismo levar uma vida regrada segundo as tradicionais práticas de mortificação e ascese. "Com uma vontade enérgica pode-se chegar à plena possessão de si mesmo, ao domínio e emancipação das paixões, à plena liberação das malsãs influências exteriores" [3]. Se a primeira condição para a santidade é o acolhimento humilde das iniciativas de Deus, a segunda é essa resposta generosa que remove todos os obstáculos de ordem natural à graça santificante. Para ser inteiramente santo, é preciso ser homem por inteiro.
A exortação de Pio XII é atualíssima e precisa, mais que em tempos passados, ser correspondida pelos católicos. Contra a armadilha de uma falsa misericórdia, que amolece o caráter e suga a energia dos bons combatentes de Cristo, deve-se levantar uma nova Igreja Militante, de cujo exemplo de santidade e amor ao Evangelho emanem raios de luz sobre as trevas deste século. Que o Ano Santo de Nossa Senhora apresse logo o surgimento e triunfo dessa nova cristandade.
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