Em tempos de grande confusão doutrinal como os nossos, em que se multiplicam as ideias religiosas que deformam a fé recebida dos Apóstolos, poucas coisas são tão importantes quanto compreender em que consiste o autêntico “desenvolvimento da doutrina cristã” ao longo dos séculos.

Permitam-nos explicar, em primeiro lugar, do que mais exatamente gostaríamos de falar, partindo da biografia de um egresso do anglicanismo: São John Henry Newman. O que fez esse homem se tornar católico, com muita simplicidade, foi a sua busca incessante da Verdade. Newman, ao perceber que as descobertas advindas de seu estudo — principalmente de seu contato com a história do cristianismo primitivo — contrariavam a fé anglicana da qual ele sempre fora adepto, não hesitou em mudar o caminho que estava trilhando e começar uma rota totalmente diferente.

Uma obra marcante nesse processo de conversão foi o Essay on the Development of the Christian Doctrine (infelizmente, sem tradução para o português), em cuja introdução ele deixa bem claro que “aprofundar-se em história é deixar de ser um protestante”: “O que quer que ensine a história, o que quer que ela omita, o que quer que ela venha a exagerar ou extenuar, dizer ou desdizer, o cristianismo histórico ao menos protestantismo não é”.

Quando começou a escrever essa obra, no entanto — como bem lembrado pelo Cardeal Müller —, Newman ainda pertencia à comunhão anglicana. A religião de Henrique VIII era vista por ele como uma via media entre o catolicismo romano e o protestantismo, uma alternativa que não abraçava a Tradição por inteiro, mas também não a abandonava por completo.

O Cardeal Newman, em pintura de John Everett Millais.

O homem, no entanto, não estava satisfeito com o “caminho mediano” que estava seguindo. Suas decepções com aspectos internos da Igreja Anglicana, que já no século XIX tendia fortemente ao que Newman chamava “liberalismo em matéria religiosa”, deixavam-no permanentemente inquieto. (Mais detalhes a esse respeito podem ser lidos em seu célebre Discurso do “Biglietto”.)

Uma coisa, porém, o impedia de abraçar o catolicismo (e foi justamente esse problema que ele resolveu no ensaio supracitado): como conciliar a pregação cristã dos primeiros séculos com os “acréscimos” posteriores feitos pelos Papas e Concílios? De onde vieram, por exemplo, o dogma da transubstanciação, o batismo de crianças, a Comunhão sob uma só espécie, a supremacia papal e tantas outras doutrinas e práticas que a Igreja Católica foi confirmando e determinando ao longo da história?

Percebam que esta não é uma questão ociosa. Uma das principais acusações que as miríades de seitas protestantes lançam hoje contra a Igreja é justamente a de que ela teria “adulterado” as Sagradas Escrituras, acrescentando e retirando indevidamente mandamentos e proibições da doutrina de Cristo. Como responder a essas acusações?

Reconheçamos, em primeiro lugar, que houve, sim, desde os tempos apostólicos até hoje, um verdadeiro desenvolvimento doutrinal no seio da Igreja Católica. Jesus Cristo não entregou a seus discípulos um Denzinger ou um “Manual de Teologia Dogmática” contendo, tintim por tintim, todos os desdobramentos de sua pregação. Esses detalhes não estão “escritos” na Bíblia como gostariam os adeptos do sola Scriptura, mas estão contidos, sim, nos Livros Sagrados, do mesmo modo como a árvore está na semente [1], mas só aos poucos vai mostrando a sua forma e atingindo a plenitude do seu crescimento (cf. Mc 4, 30-32).

É natural que seja assim porque, explica o Cardeal Newman,

se o cristianismo é uma religião universal, cabível não apenas em um local ou período, mas em todos os tempos e lugares, ele não pode senão variar em suas relações com o mundo à sua volta, o que significa que ele irá se desenvolver. Princípios requerem uma aplicação bem variada à medida que variam as pessoas e as circunstâncias, e devem assumir novas formas de acordo com a forma de sociedade que estão para influenciar. Assim, todas as sociedades cristãs, ortodoxas ou não, desenvolvem as doutrinas da Escritura [2].

A pergunta que precisa ser feita, portanto — e é este o trabalho da teologia e da investigação histórica —, é se os desenvolvimentos deste ou daquele ramo do cristianismo estão de acordo com o “tronco” original fixado pelo próprio Cristo, isto é, se são “desenvolvimentos” de verdade ou se não passam de “corrupções” da doutrina ensinada pelo Salvador. O desafio está em discernir o verdadeiro do falso, o trigo do joio, por assim dizer.

Para este processo de discernimento, Newman estabeleceu a partir da história da Igreja sete regras, bastante úteis como resposta não só aos protestantes, mas também aos “católicos” de nossa época que, ou desconhecem a verdadeira doutrina da Igreja, ou procuram de todos os modos subvertê-la.

Segundo Newman, uma autêntica “evolução” da doutrina cristã deveria levar em conta, por exemplo, aspectos como a identidade de tipo e a continuidade de princípios.

Para fazer de um livro inteiro um breve parágrafo, digamos simplesmente que, assim como um grão de mostarda não pode se tornar uma laranjeira, ou assim como o que é hoje não pode não ser amanhã, o corpo doutrinal dos cristãos deve permanecer em essência e nos princípios o mesmo, desde a sua origem até a consumação dos tempos. Afinal, “o céu e a terra passarão”, palavras de Nosso Senhor [3], “mas minhas palavras não passarão” (Mc 13, 31).

Por exemplo: se Cristo disse que sua carne era verdadeira comida e seu sangue, verdadeira bebida (cf. Jo 6, 55); se desde o princípio os cristãos acreditavam que no pão e no vinho consagrados na Missa estavam realmente presentes o Corpo e o Sangue de Cristo; se o fomento da piedade eucarística fez um Santo Tomás de Aquino, no século XIII, compor hinos belíssimos a este sacramento, como um Pange lingua e um Adoro te devote, não pode ser que, do século XVI em diante, a Eucaristia de repente se transforme para os cristãos em uma mera ceia “simbolizando” a presença de Cristo… Uma “evolução” desse tipo não é desenvolvimento algum, mas corrupção.

Ainda outro exemplo. Se Jesus ensinou que “quem repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira” (Mc 10, 11); se São João Batista, enquanto Cristo ainda vivia neste mundo, perdeu a própria vida por causa desta verdade e, com ele, no século XVI, São João Fischer e São Thomas More derramaram o próprio sangue para não aceitar os sucessivos casamentos de Henrique VIII, não é possível que nós simplesmente decretemos — sejam quais forem os subterfúgios de que queiramos nos servir — que “agora mudou”, porque “os tempos são outros” e nós “somos Igreja do novo milênio”... Ora, que sejamos deste ou daquele milênio pouco importa; a verdade é que nós só seremos Igreja se continuarmos a crer no que creram os católicos de todos os tempos e lugares (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est, na fórmula já consagrada de São Vicente de Lérins).

Que risco corremos se nos esquecermos disso? O risco de transmitir às pessoas uma doutrina em que mexemos tanto, que “adaptamos” tanto, que ela acabou se tornando mais nossa que de Cristo; o risco de afastar as pessoas do único caminho da salvação, que não somos nós, mas Cristo; o risco, enfim, de nos tornarmos mais uma entre as tantas seitas protestantes que hoje pululam no mundo inteiro.

Lembremo-nos sempre, portanto, que um só é o nosso mestre: Cristo Jesus (cf. Mt 23, 10); que ninguém pode pôr um fundamento diferente deste (cf. 1Cor 3, 11); e que, mesmo se alguém nos anunciasse um evangelho diferente do que nos anunciaram os Apóstolos e a fé da Igreja de dois mil anos, “que ele seja anátema” (Gl 1, 8).

São John Henry Newman compreendeu bem essas verdades. E por isso mesmo cruzou o Tibre.

Referências

  1. Essa comparação nós a tomamos emprestada do Cardeal Newman, Development (I, 2, 16), London, New York, and Calcutta: Longmans, Green, and Co., 1909, p. 73.
  2. Development (I, 2, 3), London, New York, and Calcutta: Longmans, Green, and Co., 1909, p. 58.
  3. Uma explicação sistemática do tema da “evolução do dogma” pode ser encontrada em: Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática, 7.ª ed., Barcelona: Herder, 1969, pp. 32-35.

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