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Padres podem caçar?

Uma foto do Padre Paulo Ricardo exibindo armas de caça tem causado polêmica nas redes sociais. A ocasião é oportuna para conhecer o ensinamento tradicional da Igreja sobre a relação dos seres humanos com os animais. A caça é uma atividade moralmente aceitável? E os padres? Também eles podem caçar?

Texto do episódio
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Uma imagem do Padre Paulo Ricardo exibindo armas de caça causou polêmica nas redes sociais. A foto foi tirada durante a sua recente viagem aos Estados Unidos, a fim de fazer uma visita ao professor e filósofo brasileiro Olavo de Carvalho. Durante a estadia do padre na Virginia, Olavo e elese reuniram para um hangout sobre o método filosófico – tema do seu próximo curso, que já está disponível no site do Seminário de Filosofia. Pouco antes do encontro, Olavo mostrou ao padre a sua coleção de armas de caça e disto surgiu a foto que gerou tanta polêmica desnecessária.

A ocasião, porém, é oportuna para que se exponha o ensinamento tradicional da Igreja sobre a relação dos seres humanos com os animais. Quanto ao tema do desarmamento, o Padre Paulo já gravou um programa Parresía, deixando bem claro qual é o posicionamento da Igreja a esse respeito. O foco desta aula é, especificamente:

  1. a relação do homem com os animais;
  2. a licitude moral da caça; e
  3. se clérigos podem ou não envolver-se em atividades desse tipo.

1. A relação do homem com os animais

A Igreja tem um ensino muito claro a respeito do relacionamento entre os seres humanos e as demais criaturas. Em suas lições, ela preza pelo equilíbrio, fugindo dos dois extremos, seja o que tenta justificar um domínio destruidor do homem sobre a Criação, seja o que propugna uma divinização indevida da natureza, resvalando em “um novo panteísmo com acentos neopagãos” [1]. Diz o Catecismo da Igreja Católica:

“Os animais são criaturas de Deus, que os envolve com sua solicitude providencial. Por sua simples existência, eles o bendizem e lhe dão glória. Também os homens lhes devem carinho. Lembremos com que delicadeza os santos, como São Francisco de Assis ou São Filipe Néri, tratavam os animais.” [2]

Ao recordar o respeito que os santos tinham pelos animais, o Catecismo também assinala como a sua simples existência aponta para a glória de Deus. De fato, era por causa de seu amor por Deus que Francisco e Filipe tratavam com tanto carinho os animais, Suas criaturas. Existe, pois, uma hierarquia: Deus é o soberano de todas as coisas e o ser humano, por sua vez, exerce sua soberania na Criação. O homem moderno, porém, tirando Deus dessa equação – basta olhar, por exemplo, para a Revolução Francesa e o materialismo histórico –, fez com que o ser humano começasse a exercer um domínio tirânico sobre a natureza e, pior, sobre si próprio.

Como resposta a isso, alguns indivíduos pensaram que, talvez, o homem não devesse exercer domínio nenhum sobre criatura nenhuma. Então, ao invés de o ser humano submeter os animais, todos teriam a mesma dignidade – isso quando os próprios animais não fossem divinizados e considerados superiores. Veja-se o exemplo do ditador alemão Adolf Hitler. Seus biógrafos retratam-no como um vegetariano que não suportava ver animais sofrendo. Quando assistia a algum filme e aparecia a cena de um animal sendo maltratado, Hitler virava o rosto e só voltava seus olhos à tela quando a tortura terminasse. Não obstante isso, o führer não tinha nenhum remorso em mandar milhares de pessoas para o extermínio em campos de concentração. O teólogo brasileiro Leonardo Boff questiona abertamente se a espécie humana não seria “uma célula cancerígena a ser extirpada” do planeta – em suas palavras, uma lição amarga que a Mãe Terra poderia aplicar ao homem. Esses são apenas alguns exemplos que ilustram os excessos da ideologia animalista, a ponto de o ser humano valer muito menos que um animal. Não é curioso que os partidos defensores dos animais sejam justamente aqueles que militam pela causa do aborto?

Continua o Catecismo:

“Deus confiou os animais à administração daquele que criou à sua imagem. É, portanto, legítimo servir-se dos animais para a alimentação e a confecção das vestes. Podem ser domesticados, para ajudar o homem em seus trabalhos e lazeres. Os experimentos médicos e científicos em animais são práticas moralmente admissíveis, se permanecerem dentro dos limites razoáveis e contribuírem para curar ou salvar vidas humanas.

É contrário à dignidade humana fazer os animais sofrerem inutilmente e desperdiçar suas vidas. É igualmente indigno gastar com eles o que deveria prioritariamente aliviar a miséria dos homens. Pode-se amar os animais, porém não se deve orientar para eles o afeto devido exclusivamente às pessoas.” [3]

Não se deve, pois, fazer um animal sofrer inutilmente. Isso, porém, não por causa dos “direitos dos animais” – o que é um absurdo, já que eles não têm direitos –, mas por causa da dignidade humana. A crueldade com as criaturas de Deus torna o homem uma pessoa pior. É interessante que esses apontamentos do Magistério estejam na parte da moral católica relacionada ao sétimo mandamento (“Não furtar”), ao invés de estar na parte relacionada ao quinto (“Não matar”): é que este mandamento não se aplica aos animais, que são apenas propriedade dos seres humanos.

2. A caça é uma atividade moralmente lícita?

O Papa Pio XII, em 12 de dezembro de 1957, recebeu os integrantes do Conselho Internacional de Caça e endereçou-lhes um discurso, reconhecendo a importância dessa atividade – “vous préservez en réalité de précieux éléments du patrimoine de l'humanité”, disse o Pontífice, na ocasião [4] – e a necessidade de regularizar a sua prática, a fim de que não se prejudicasse o desenvolvimento da fauna terrestre.

Ora, desde o princípio, o ser humano exerce o domínio natural sobre as demais criaturas. Santo Tomás ensina, com a sua costumeira lucidez, que “Adão, no estado de inocência, dominava os animais” [5]. Tome-se como exemplo São Francisco de Assis, que recebeu de Deus esse dom sobrenatural: o santo não só fazia as andorinhas se calarem para que ele pudesse pregar [6], como ele próprio amansou um ferocíssimo lobo que aterrorizava a cidade de Gúbio e “converteu”, por assim dizer, o animal [7]. Santo António de Lisboa, por sua vez, fez uma mula prostrar-se diante da Sagrada Eucaristia e ainda ficou famoso por seu sermão pregado aos peixes.

Esse domínio do ser humano sobre os animais é natural porque, explica ainda o Doutor Angélico, “as criaturas racionais são ordenadas em vista delas mesmas, mas as demais criaturas [são ordenadas] em vista das racionais” [8]. A partir disso, o Aquinate tira a conclusão lógica: é perfeitamente lícito matar os animais para o uso do homem [9]. Explica Santo Agostinho que,

“Quando ouvimos o preceito: Não matarás, não entendemos que se aplique às plantas, pois são desprovidas de sentimento, nem aos animais irracionais, pois não têm a razão em comum conosco. É, portanto, ao homem que havemos de aplicar esta palavra: Não matarás” [10].

De fato, os nossos ancestrais, antes que possuíssem rebanhos a abater, sobreviviam da caça e da coleta. Mesmo hoje, porém, seria impossível alimentar toda a humanidade sem recorrer à carne dos animais. A caça não é, pois, uma atividade ilícita em si mesma. Certas circunstâncias, alheias à sua execução, podem torná-la ilícita – como é o caso de caçar animais que se encontram em extinção –, mas tratá-la como algo intrinsecamente imoral é inverter totalmente a ordem da Criação. Se, por um lado, o homem moderno deva preocupar-se com a ecologia, precisa tomar cuidado com a histeria ecologista, que, pouco a pouco, vai substituindo o verdadeiro Deus pela deusa Gaia e sacrificando os seus próprios filhos no altar dessa nova religião.

3. Clérigos podem caçar?

A caça é moralmente lícita, mas pode ser praticada por clérigos? O antigo Código de Direito Canônico, de 1917, diz:

“Evitem os clérigos tudo quanto não convenha à dignidade do seu estado de vida: não exerçam artes indecorosas, nem se entreguem a jogos de azar; não levem consigo armas, a não ser que haja uma justa causa de temor; não se devotem à caça, mas jamais a pratiquem de modo clamoroso [venationi ne indulgeant, clamorosant antem nunquam exerceant]; não entrem em tabernas ou lugares semelhantes sem necessidade ou justa causa, segundo o parecer do Ordinário do local.” [11]

O Código antigo previa que os clérigos se abstivessem de tudo quanto fosse indigno de seu estado, como por exemplo, que não “perdessem tempo” com a atividade da caça e que nunca exercessem as chamadas “caças clamorosas” – que eram as caças empreendidas pelos nobres, quase sempre acompanhadas de bebidas e imoralidades. Em resumo, os padres podiam caçar, desde que fosse uma “caça tranquila”, mas não se deveria gastar muito tempo com isso, dados os múltiplos e gravíssimos deveres do estado sacerdotal. Os religiosos, porém, estavam proibidos de qualquer espécie de caça, a menos que fosse para a sobrevivência do próprio mosteiro.

Essas advertências são importantes por causa da imagem pacífica que devem passar os sacerdotes. O padre não é um soldado. Faz parte de uma tradição que até mesmo os capelães militares não portem armas: eles são treinados a agirem com um escolta, um soldado armado que o proteja, ao invés de eles mesmos se armarem. Santo Tomás de Aquino, respondendo se é permitido aos clérigos matar os malfeitores, ensina que:

“Aos clérigos não é lícito matar, por dupla razão. Primeiro, porque são escolhidos para o serviço do altar, no qual se representa a paixão de Cristo imolado, ‘que ao ser espancado, não espancava’ (1 Pd 2, 23). Portanto, não compete aos clérigos espancar e matar. Pois os servos hão de imitar o seu senhor, como se diz em Eclo 10, 2: ‘Qual é o juiz do povo, tais serão os seus ministros’.

A outra razão é que aos clérigos se confia o ministério da Nova Lei, que não comporta pena de morte ou mutilação corporal. Assim, para serem ‘ministros autênticos da Nova Aliança’, devem abster-se de tais práticas.” [12]

A própria veste talar usada pelo sacerdote é uma veste pacífica, diferentemente, por exemplo, do hábito dos Templários, que ia até os joelhos, a fim de que eles pudessem lutar. 

Referências

  1. Papa Bento XVI, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz, 8 de dezembro de 2009, n. 13.
  2. Catecismo da Igreja Católica, n. 2416.
  3. Ibidem, n. 2417-2418.
  4. Papa Pio XII, Discurso aos participantes do Conselho Internacional de Caça, 12 de dezembro de 1957.
  5. Suma Teológica, I, q. 96, a. 1.
  6. Vida de São Francisco de Assis (Legenda Maior), XII, 4.
  7. Os Fioretti de São Francisco, XXI.
  8. Suma contra os Gentios, III, 112.
  9. Suma Teológica, II-II, q. 64, a. 1.
  10. De Civitate Dei, I, 20: ML 41, 35.
  11. Codex Iuris Canonici (1917), cân. 138.
  12. Suma Teológica, II-II, q. 64, a. 4.
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