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“Se alguém te dá um tapa na face…”

No Evangelho colhemos lições de mansidão como esta: “Se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda”. Mas o que é que Jesus realmente quis nos ensinar com estas palavras, considerando que Ele próprio, esbofeteado, não só não ofertou a outra face, como reagiu à injustiça que sofrera?

Texto do episódio
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O Evangelho de hoje (Mt 5, 38-42) é uma parte do belíssimo Sermão da Montanha, que Jesus faz nos capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho de São Mateus. Mas as palavras que Nosso Senhor nos diz nessa passagem devem ser muito bem interpretadas. É necessário uma análise mais profunda do que simplesmente levar ao “pé da letra” a metáfora que está presente no texto.

Nosso Senhor nos diz: “se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!” (Mt 5, 39b). Ora, por que esse trecho é uma metáfora, por que não está no sentido literal? Se não por outra razão, há pelo menos o fato de que, quando durante a sua Paixão, diante do Sinédrio, Jesus foi golpeado pelo soldado na corte de Caifás e não “deu a outra face”. Ao invés disso, Nosso Senhor perguntou-lhe: “Se falei mal, prova em que falei mal; mas se falei bem, por que me bates?” (Jo 18, 23). Vemos então, claramente, que neste trecho quando fala da “outra face”, Jesus não está dando uma regra que deve ser seguida ao pé da letra. Ele está nos inspirando. Para descobrirmos o que Nosso Senhor quer nos dizer, analisemos o que há de objetivo.

Jesus quer pôr um limite à nossa vontade de fazer justiça com as próprias mãos: o velho princípio do “Olho por olho, dente por dente”. O sujeito furou meu olho? Eu vou lá e furo o olho dele em retribuição, e pronto: estamos quites. Quebrou meus dentes? Eu tenho o direito de quebrar os dentes dele, e assim sinto que houve uma justiça. Eu pude me vingar do meu inimigo, do meu malfeitor. Ora, considerando esses exemplos apenas de forma abstrata, pode parecer uma coisa razoável e adequada, apenas o justo, numa lógica similar a “dois mais dois é igual a quatro” ou “pague-me o que deve e está resolvido”.

Quando, porém, acrescentamos a essa “lei matemática” o fato de que fomos mordidos pela serpente no pecado original, então começamos a enxergar que a nossa capacidade de julgar está um pouco embotada — principalmente quando somos nós os prejudicados. Nos casos em que o injustiçado é o outro, de prontidão damos conselhos de paciência: “Por que você não releva isso?”, “É melhor você perdoar”. Mas quando o prejudicado somos nós, a reação é diferente: “Você acha que pode me enganar? Pensa que as coisas vão ficar assim? Ora, venha aqui para acertarmos as contas!”

Em nossas atitudes cotidianas, podemos enxergar o quanto o pecado, o egoísmo e a desordem estão embaçando a nossa capacidade de julgamento. Nós não somos juízes imparciais quando julgamos em causa própria. Para sermos bons juízes de nós mesmos, precisaríamos ser grandes santos e sábios. Sendo assim, é urgente que desçamos do trono da soberba para enxergar esta verdade: nosso autojulgamento traz consigo uma espécie de distorção da realidade, de tal forma que se o que exigimos para nós mesmos fosse aplicado para todos, o mundo se tornaria um inferno. O inverso também é verdadeiro: se os mesmos critérios que exigimos de nossos adversários fosse aplicado para aqueles aos quais somos devedores, também estaríamos perdidos.

É evidente: nesta vida não somos somente injustiçados, mas também cometemos inúmeras injustiças. Desse modo, num mundo marcado pela existência do pecado original, o justicialismo não é verdadeira justiça. O “olho por olho” torna-se uma espiral crescente de violência, em que um abismo atrai outro abismo. “Porque são violentos comigo, eu tenho o ‘direito’ de ser violento com os outros”; “Porque são maus e vingativos, isso me dá o ‘direito’ de ser mau e vingativo”. É um tipo de pensamento que não resolve os problemas do nosso convívio social e muito menos os problemas espirituais.

Foi para combater essa espiral de violência que, nas sociedades cristãs, criou-se uma distinção entre crime e pecado. Nas sociedades mais primitivas, só havia uma categoria: o crime. Se alguém fazia algo errado, aquilo era publicamente punido. Mas nós, cristãos, considerando as situações com mais detalhes e delicadezas, percebemos que existem coisas que são erradas — ou seja, são pecados —, mas não são crimes, e não devem ser perseguidas judicialmente. Nós enxergamos que todos nós temos falhas, misérias, e que vivemos da misericórdia de Deus.

Para nós, cristãos, todo pecado é pecado. Alguns são graves e outros menos graves, mas para o pecado só há uma solução: o arrependimento, o propósito de emenda e o perdão. Nosso Senhor Jesus Cristo veio a este mundo para nos perdoar — esta é a solução dada por Deus para o pecado. Mas o perdão supõe arrependimento, ou seja, o reconhecimento de que fizemos algo errado, e algo que detestamos ter feito, por enxergarmos que aquilo foi ruim. Deste modo, fazemos então um propósito de emenda, dizendo a Deus: “Senhor, prometo nunca mais fazer isso. Quero ser diferente!”, e assim recebemos o perdão.

Deus quer nos perdoar. Foi para isso que Ele se encarnou e veio a este mundo. Este perdão é válido para todos os tipos de pecado, dos mais leves aos gravíssimos. É claro que os graves nos tiram da comunhão, e precisamos ir ao confessionário para receber a nossa absolvição e assim restaurar o nosso estado de graça. Quanto aos mais leves, também precisamos pedir perdão por eles. Ainda que não sejam absolvidos apenas pela Confissão, devemos nos esforçar para nos purificar de todos eles. Esta é a realidade da religião cristã.

Mas como organizar uma sociedade baseada nesse reconhecimento de que existem pecados graves e gravíssimos, leves e levíssimos? Precisamos, sobretudo, analisar que existem alguns pecados que perturbam o convívio social, e por isso são classificados como crimes, pois o seu combate é essencial para a manutenção da ordem na sociedade. Deste modo, podemos perceber que existem duas esferas distintas numa típica sociedade cristã: a da moralidade, em que temos todos os tipos de pecados, e a jurídica, na qual estão elencados os crimes.

Podemos identificar a paganização da sociedade quando notamos a tendência atual de se pensar que aquilo que não é crime, também não é pecado. A maior parte das pessoas, que não têm catequese ou formação cristã, identificam pecado com crime. É comum ouvirmos alguém dizer: “Para que devo me confessar? Eu nunca matei ou roubei alguém!” Miseravelmente, as pessoas estão identificando aquilo que se faz no confessionário com o Código Penal! São indivíduos que, mesmo sem perceber, se paganizaram, perdendo a noção de pecado — como se isso fosse algo decidido pelo Congresso Nacional quando edita ou altera alguma lei.

Ora, para nós cristãos o grande e único legislador que nos aponta o que é pecado ou não é Deus! Mas para resolver a questão dos pecados, Ele nos propõe uma solução: arrependimento, propósito e perdão. A verdadeira solução para o pecado, em todas as suas formas e graus, não é a cadeia ou a vingança, mas o pedido sincero a Deus. Devemos rezar pelos nossos adversários, pelas pessoas que nos fazem injustiças, para que elas verdadeiramente se arrependam e mudem de vida.

Quando, porém, um pecado está perturbando especialmente o convívio social, então pode e deve ser punido pela autoridade competente. E realmente deveríamos ter um sistema de leis que pune os responsáveis pelos crimes, em vez de dizer que os criminosos são “vítimas da sociedade capitalista”. Ao mesmo tempo, devemos saber que, embora isso seja a organização necessária para a sociedade civil — na qual a Igreja e a nossa família também se incluem —, é necessário que se saiba administrar o convívio social, distinguindo as categorias com prudência, compreendendo, sobretudo, que o mais importante de todo esse processo é levarmos as pessoas ao arrependimento, ao propósito e ao perdão. É este o caminho proposto por Cristo, e é assim que viveremos uma vida mais harmônica.

Nós somos o objeto desse perdão derramado no sangue de Cristo na Cruz, aqueles que foram redimidos por recebê-lo. Ora, se vivemos do perdão de Deus, por que não rezamos para que o outro também viva? Oremos para que nosso próximo, seja quem for, viva a graça do arrependimento, receba o perdão de Deus e encontre seu verdadeiro propósito.

Neste mundo ferido pelo pecado original, não teremos mais o paraíso terrestre de Adão e Eva, em que ainda não havia pecado. Mordidos pelo veneno traiçoeiro do egoísmo da serpente, nós, orgulhosos e soberbos, não somos bons juízes em própria causa; queremos sempre ser rigorosos e justiceiros com os outros, mas clementes e pacientes com nós mesmos. E essa leniência com que nos tratamos é aquilo que nos acusa diante de Deus, porque desejamos misericórdia para nossos pecados e justiça para o pecado dos outros.

Em suma, o que Nosso Senhor está propondo neste Evangelho não é uma fórmula mágica. Ele está simplesmente chamando a atenção para a rapidez com que nós julgamos e condenamos os outros, quando, na verdade, somos muito lentos e laxos em condenar nossas próprias faltas. 

Deixemos nas mãos de Jesus, que é bom e justo juiz, o verdadeiro e definitivo julgamento. Como menciona o capítulo 12 da Carta de São Paulo aos Romanos: “‘A mim compete fazer justiça, eu retribuirei’, diz o Senhor” (Rm 12, 19c). Nós devemos vencer o mal com o bem, e assim estaremos juntando “brasas sobre a cabeça” das pessoas que esperavam de nós irritação, vingança e maldade. E quando olharmos com sinceridade para Deus, diremos assim: “Senhor, eu fui objeto de tanta paciência e bondade vossa, de tanta clemência e de tanto perdão, de modo que não tenho como não retribuir a tudo isso senão sendo bondoso, paciente e capaz de perdoar”.

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