A resposta que dei a respeito da abstinência de carne na noite de 24 de dezembro gerou perplexidade em algumas pessoas. Antes de tudo, quero esclarecer que se tratava de uma resposta “popular”. Por isso não procurei estabelecer princípios de interpretação das leis canônicas, como farei agora, porque pensei que isso ultrapassaria a natureza daquela comunicação. Sem querer acender mais a polêmica, creio não obstante que algumas reações parecem querer alcançar o summum ius, e acabam incorrendo em summa iniuria.
1. Um preâmbulo: o dia 25 de dezembro e a ceia de Natal
É evidente que o dia 25 de dezembro, tanto na atual norma como na antiga, não é dia de jejum nem de abstinência, mesmo que coincida com uma sexta-feira. Essa disciplina é atestada ao menos desde Inocêncio III (1198-1216). No entanto, é interessante explicitar a mudança disciplinar que deu origem a um novo costume sobre a ceia de Natal.
a) Antes da reforma litúrgica e do Código de 1983. — Na norma canônica do Código de 1917, 24 de dezembro era dia especial de jejum e abstinência. Já o Natal propriamente dito, 25 de dezembro, suplantava a abstinência de sexta-feira, se com ela coincidisse. A distinção entre os dois dias vinha claramente marcada pela liturgia. A Missa da vigília, no dia 24, era celebrada com paramentos roxos e tinha caráter penitencial. A passagem se dava à meia-noite, na chamada “Missa do Galo”, com paramentos brancos e canto do Glória.
Havia ainda proibição expressa de que a “Missa da Noite” de Natal fosse celebrada antes da meia-noite. Neste contexto, era proibida a ceia de Natal antes da meia-noite. Daí o antigo costume de esperar até meia-noite para dar início à ceia de Natal.
b) Depois da reforma litúrgica e do Código de 1983. — O Código atual não contempla mais o dia 24 de dezembro entre os dias de jejum e abstinência, e o Natal continua a suplantar a abstinência de carne de sexta-feira. Com a reforma litúrgica, prevê-se para o Natal, a partir da hora de vésperas, uma Missa de vigília com paramentos brancos e canto do Glória. A abolição do jejum e da abstinência no dia 24, além da antecipação litúrgica do Natal, permitiu a instalação de um novo costume, razão pela qual não é mais necessário esperar até meia-noite para a ceia de Natal.
2. A questão em si: abstinência em 24 de dezembro, sexta-feira
a) Isenção das solenidades. — Embora a necessidade da penitência seja de lei divina, foi preciso que a Igreja interviesse ao longo da história para especificar, na forma de uma norma comum, como os fiéis deveriam colocá-la em prática. Por isso, trata-se aqui de lei eclesiástica positiva. Logo, o que está em questão é a interpretação do texto de um legislador humano e a aplicação de suas exceções. Eis o texto:
Cân. 1251. — Guarde-se a abstinência de carne ou de outro alimento, segundo as determinações da Conferência episcopal, todas as sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com algum dia enumerado entre as solenidades.
Como se depreende do texto, se o Código de 1917 isentava os fiéis da abstinência de carne nos dias de preceito, o atual, de 1983, isenta-os em qualquer solenidade, mesmo que não seja de preceito.
A Igreja, com efeito, sempre reconheceu exceções (chegando inclusive a conceder indultos) para a obrigação de abstinência de carne, as quais podiam aplicar-se ao dia todo ou a uma parte apenas dele. Exemplo de dispensa de “parte do dia” de jejum e abstinência era o Sábado Santo durante a vigência do Código de 1917. O cânon 1252, §4, previa que o jejum e a abstinência do Sábado Santo cessavam post meridiem, ou seja, após o meio-dia.
Ora, é evidente que a razão dessas exceções era, no mais das vezes, o próprio calendário litúrgico.
b) A novidade da vigília de Natal. — Tradicionalmente, as vigílias das grandes festas eram consideradas penitenciais. Na liturgia, os paramentos eram roxos e, na vida, os fiéis deviam praticar o jejum e a abstinência. Com o movimento litúrgico, porém, instalou-se no calendário da Igreja uma novidade: a vigília festiva, ou não penitencial.
O próprio Missal de 1962 é exemplo da transição. A vigília de Pentecostes já tem o novo formato, com paramentos vermelhos e Glória, enquanto a de Natal ainda guarda a antiga tradição penitencial, com paramentos roxos e sem Glória. No Missal de Paulo VI, por sua vez, prevê-se para o Natal, a partir da hora de vésperas, uma Missa de vigília festiva, com paramentos brancos e Glória.
c) Interpretação e aplicação. — Em se tratando de interpretação de uma lei eclesiástica positiva, é imperioso levar em conta a “mente do legislador” (cf. Cân. 17), sob pena de extrapolar o espírito da lei. Pois bem, do que foi dito até aqui se pode depreender que:
- Primeiro, historicamente há exceções para os dias de jejum e/ou abstinência;
- Segundo, essas exceções nascem, não raro, do próprio calendário litúrgico;
- Terceiro, o jejum e a abstinência podem ser parcialmente dispensados, isto é, cessar de obrigar a partir de certa hora do dia (cf. Cânon 1252, §4, do Código de 1917).
Além disso, um paralelo entre a legislação de 1917 e a de 1983 deixa patente a mudança de vontade do legislador no Código atual. Hoje, o desejo é de simplificar a observância da lei da abstinência e facilitar com isso sua comutação. É o próprio legislador, aliás, quem sugere às Conferências episcopais a adaptação benévola das normas (cf. Cân. 1253).
Sendo assim, não creio que corresponda à equidade jurídica (æquitas canonica) insistir na abstinência de carne na noite de sexta-feira 24 de dezembro, já que:
- Primeiro, do ponto de vista litúrgico, a Vigília de Natal, no atual calendário litúrgico, está revestida de caráter festivo e já faz parte da celebração da solenidade, caráter este que não se deve ao simples fato de serem I Vésperas;
- Segundo, do ponto de vista dos costumes, o dia 24 de dezembro perdeu o antigo caráter penitencial;
- Terceiro, do ponto de vista legal, o próprio legislador de 1983 sugere o abrandamento da lei de abstinência da sexta-feira.
A legislação de 1917, bem mais rigorosa, admitia a cessação do jejum e da abstinência na metade do dia, como dito acima (cf. Cân. 1252 §4), justamente para se adaptar ao tempo litúrgico. Ora, como não considerar que esse é o mesmo espírito do legislador de 1983, mais brando que o anterior? Não creio trair a mente do legislador ao recordar aqui a conhecida regula iuris: Odiosa sunt restringenda, favorabilia vero amplianda.
3. Um corolário: a antecipação da “Missa da Noite”
No antigo direito litúrgico, era expressamente proibido celebrar a “Missa da Noite” de Natal antes da meia-noite (cf. Decreta Authentica Congregationis Rituum, 1645; 3448, 15; 3576, 10). A mesma proibição foi reafirmada após a reforma litúrgica, mas com uma novidade. Apresenta-se agora a “Missa na vigília” como Missa própria do Natal:
Se a Missa “na Noite de Natal” pode ser celebrada na véspera da vigília desta solenidade.
R.: A Missa “na noite de Natal” deve ser celebrada por volta da meia-noite, para que seja observada a verdade do tempo. Para satisfazer o preceito antecipado na véspera da vigília, deve-se utilizar o formulário da Missa na vigília, como se indica nas rubricas do Missal (p. 153: “Para a tarde do dia 24, antes ou depois das I Vésperas”) (Notitiæ 10 (1974): 80, n. 1).
A partir de Bento XVI, os Papas começaram a não observar mais a estrita proibição de se antecipar a “Missa da Noite”. As razões alegadas vão desde motivos de saúde até as atuais limitações impostas pela pandemia.
Apesar da resposta autêntica citada acima, em várias dioceses já é costume consolidado antecipar a “Missa da Noite” para horários mais “vespertinos”, sem que isso seja reprovado por qualquer autoridade eclesiástica. E como já se passaram mais de 30 anos desde a resposta citada, o comportamento e o silêncio de Papas e bispos indicam que o costume foi aceito com força de lei (cf. Cân. 26).
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