Sustentamos cada vez com maior convicção e estamos dispostos a defender energicamente, enquanto Deus nos der forças, a seguinte conclusão:
A plena perfeição cristã, tal como é possível a viadores [N.T.: i.e., a nós que estamos “em via”, “a caminho” da eternidade] e que é requerida para a canonização ou a beatificação de um servo de Deus, implica o exercício dos dons do Espírito Santo e dos sentidos espirituais, e portanto a verdadeira vida mística, e de modo algum pode ser alcançada somente com a ascética.
Com efeito, uma coisa só pode ser chamada perfeita segundo sua natureza quando já está verdadeiramente “acabada”: acabada de fazer, acabada de formar, acabada de se desenvolver; quando já não lhe falta nada do que lhe pertence. Se algo ainda lhe falta, será ainda necessariamente imperfeita. “Perfeito — diz repetidamente Santo Tomás — é somente aquilo ao qual nada falta” (cui nihil deest).
Isto supõe o desenvolvimento completo de todas as faculdades e virtualidades latentes recebidas com o ser, portanto certa consecução real do fim a que está ordenado. Assim, não podemos dizer que uma planta é perfeita quando ainda não se desenvolveu o suficiente para ostentar sua forma adulta e sua beleza peculiar, além de produzir flores e frutos maduros. Do mesmo modo, será perfeito um cristão quando já estiver bem longe de ser neófito, isto é, quando todas as suas faculdades recebidas com a vida espiritual e todas as virtualidades ainda latentes na plantinha recém-enxertada em Cristo já se tiverem desenvolvido e expandido o suficiente para produzir e ostentar certas flores de virtudes heroicas ou divinas, que são as requeridas para a beatificação. E justamente por isso, tais virtudes podem ser admiradas como “frutos de honra e de honestidade”, como os da sabedoria mística (cf. Eclo 24, 23) ou como os da árvore da vida (cf. Ap 22, 2), que está sempre produzindo os doze frutos do Espírito Santo, e de tal modo vive e prospera que todo seu porte exterior edifica e suas folhas servem de “saúde para os povos”. Mas para isso ela precisa estar plantada à margem do “Rio da água da vida” que flui eternamente do trono de Deus e do Cordeiro, isto é, tem de estar totalmente animada e possuída pelo Espírito divino e enriquecida com seus dons. E assim não só produz seus doze frutos dulcíssimos, mas já goza de certa bem-aventurança incoada [i], vivendo unida a Deus e gozando-o como fim último. Deste modo, o exercício próprio dos perfeitos é: Deo adhærere, et frui, “Unir-se a Deus e fruir dele” (STh II-II 24 9c.).
Quem ainda está totalmente informe, ou meio-formado, ou ainda por acabar; quem ainda tem algo a cultivar, desenvolver, exercitar; quem, embora pareça estar vivo, tem ainda seus melhores talentos por desenvolver, e por isso mesmo não pode produzir frutos maduros de santidade e justiça, é essencialmente imperfeito. Pois não só lhe falta algo, e muito, e o que tem de melhor; falta-lhe precisamente algo essencial, já que a essência da perfeição, segundo S. Tomás (In Heb. 5, 14), consiste precisamente em exercitar e ter bem exercitados nossos sentidos espirituais; e o que é essencial a uma coisa, nem por providência extraordinária pode faltar-lhe sem que falte essa mesma coisa. Nem da maneira mais elástica e relativa, nem de modo algum podemos verdadeiramente chamar de homem perfeito um sujeito mentalmente inepto, por bem formado que seja; e diga-se o mesmo de uma criança sem o uso da razão. Quando há o exercício desta pode haver, sim, muitos graus de perfeição relativa; mas sem nenhum exercício e o correspondente desenvolvimento das demais faculdades, é absolutamente impossível a perfeição humana, nem mesmo por milagre.
Segundo o Doutor Angélico [ii], o mesmo se deve dizer, respectivamente e com maior razão, da perfeição cristã do homem. Esta nada mais é que o completo desenvolvimento de sua vida espiritual.
Ora, se a perfeição nada mais é que isso, sem isso jamais poderá existir. Se algo falta a esse desenvolvimento (e se o que falta por desenvolver é precisamente o melhor e mais precioso que temos nesta vida), todo tipo de perfeição que nos queiramos atribuir é fictícia e ilusória; e tal seria a puramente ascética. Porque, para que essa definição, que é muito verdadeira e exata, possa ser aplicada sem mentira; para que possamos merecer de algum modo o nome de cristãos perfeitos, ainda que em sentido muito relativo, é absolutamente necessário ter suficientemente cultivadas e desenvolvidas todas as faculdades sobrenaturais que recebemos com a vida da graça no Batismo, e que nos foram corroboradas na Confirmação para que as exercitássemos no devido tempo e com elas glorificássemos a Deus, de modo que suas graças não permaneçam estéreis em nós; caso contrário, mereceremos apenas ser castigados como o servo preguiçoso, longe de ser vistos como perfeitos.
Pois bem. Entre essas faculdades figuram as virtudes infusas (que nos fazem proceder conforme à reta razão cristã mas somente ao modo humano, que é próprio da ascética) e os dons do Espírito Santo, mediante os quais tornamo-nos capazes de seguir as moções e inspirações divinas [iii] e proceder, portanto, de um modo passivo mas sobre-humano e divino, próprio dos fiéis filhos de Deus, ou seja, das almas verdadeiramente espirituais e perfeitas, que procedem não segundo a carne nem secundum hominem, mas segundo o espírito ou secundum Deum [iv]; e tal é o modo característico da vida mística.
Portanto, dizer que sem esta podemos ser perfeitos cristãos, é tão absurdo quanto considerar homem perfeito a uma criança sem o uso da razão.
É como crianças de peito, pequeninos, carnais (por contraposição à espirituais), que o Apóstolo São Paulo sempre trata os cristãos que ainda procedem em quase tudo ao modo humano ou como homens, os quais, por ainda não terem seus sentidos despertos e exercitados, permanecem incapazes de entender a linguagem da mística sabedoria, própria dos adultos ou espirituais e perfeitos.
Assim, diz que usa com estes [espirituais] essa linguagem por ser a que lhes convém (cf. 1Cor 2, 6-13). Como são almas possuídas pelo divino Espírito, que as dirige e governa, iluminando suas inteligências e inflamando seus corações com luzes e amor infusos, pode falar-lhes não ao modo humano e sobre coisas vulgares ou ordinárias, mas em verdadeiro espírito e sobre coisas altíssimas, dando-lhes a conhecer os maravilhosos dons que Deus nos comunicou: “As quais também anunciamos, não com palavras doutas de sabedoria humana, mas com a doutrina do Espírito, comunicando as coisas espirituais [em termos] espirituais”.
Explicando estas palavras, Santo Tomás diz assim:
Chama aqui espirituais aos mesmos que antes chamou de perfeitos, porque pelo Espírito Santo os homens são aperfeiçoados na virtude… Ora, de dois modos o homem é dito espiritual. De um modo por parte do intelecto, à medida que o Espírito Santo o ilumina: e neste sentido a Glosa diz que “homem espiritual é o que, submetendo-se ao Espírito de Deus, conhece fiel e certissimamente as coisas espirituais”. De outro modo por parte da vontade, à medida que o Espírito de Deus o inflama: e neste sentido diz-se na Glosa que “vida espiritual é a que, tendo o Espírito de Deus por condutor, rege a alma” (In 1Cor., c. 2, l. 3).
Assim o espiritual está verdadeiramente possuído pelo Espírito, com cujos dons se aperfeiçoa na virtude, conhece com segurança as coisas e julga acertadamente sobre tudo, o que supõe um alto estado místico onde abundem as luzes e graças infusas; e onde estas faltarem, faltará ainda muito para a perfeição cristã e para a verdadeira “espiritualidade”.
Prossegue [o Aquinate]:
O Apóstolo aqui diz que o espiritual julga todas as coisas porque, tendo o intelecto ilustrado e o afeto ordenado pelo Espírito Santo, o homem possui um reto juízo sobre cada coisa que pertence à salvação. Porém, quem não é espiritual tem o intelecto obscurecido e o afeto desordenado acerca dos bens espirituais: por isso, o homem espiritual não pode ser julgado pelo não-espiritual, assim como um homem acordado não pode ser julgado pelo que está dormindo.
Essa verdadeira espiritualidade é dada pelo dom de sabedoria, em que vão incluídos os sentidos espirituais. E assim, acrescenta: “Nós, porém (ou seja, os homens espirituais) possuímos o sentido de Cristo, isto é, recebemos em nós a sabedoria de Cristo para julgar”.
Sem esta divina sabedoria, nossos juízos serão muito enganosos; nossos pensamentos e afetos, muito baixos; e nossos esforços, muito débeis para subir o cume da perfeição. Diz São Lourenço Justiniano:
É árduo o caminho da virtude e elevado o cume de sua perfeição. Nele, facilmente a alma desfalece e volta atrás, a menos que seja irrigada pela doçura da virtude, nutrida pela devoção, atraída pelo amor e refeita pelo gosto da sabedoria. Porque a sabedoria é um gosto divino concedido à alma a fim de aperfeiçoar a fé, robustecer a esperança, infundir vigor, aproximar de Deus, louvar a Deus e, se for necessário, morrer intrepidamente por Deus. Pois quando a sabedoria adentra o coração, afastam-se as trevas, desaparece a tristeza, purifica-se o amor, santifica-se o temor, o espírito exulta, a alma se fortalece, o coração é inflamado, as entranhas ficam repletas, a razão é iluminada, a mente é erguida, e é totalmente reformado o aspecto do homem interior. De fato, na luz da sabedoria, o aspecto da alma é reformado segundo o esplendor do Verbo e conformado a ele (De Casto Connubio, c. 12).
Por isso nos adverte o mesmo Apóstolo que, se vivemos do Espírito Santo (como vivem todos os que estão em sua graça), devemos procurar viver segundo Ele, ou seja, misticamente: “Se vivemos pelo Espírito, caminhemos também no Espírito” (Gl 5, 25). Do contrário, permaneceremos sempre imperfeitíssimos, sujeitos a milhares de misérias humanas que se infiltram com o modo humano [de agir], tais como os pensamentos de vanglória e inveja, contra os quais o Apóstolo continuamente nos previne (cf. Gl 5, 26).
Os adultos em Cristo, os perfeitos, os espirituais — diz S. Tomás (In Ioan. 3) — participam das propriedades do mesmo Espírito Santo, e é deste modo que já são santos de verdade: pois já não são movidos segundo seu próprio arbítrio humano, senão segundo a moção e inspiração divina (In Rom. 8, 14). Assim procedem e são tratados como filhos de Deus: e levam felizmente tal nome por serem homens pacíficos que encontraram já seu desejado repouso e gozam da doçura dos doze frutos do divino Espírito e da incoada felicidade das bem-aventuranças.
Seremos então perfeitos quando formos homens de Deus, isto é: quando, instruídos e habilitados pelo próprio Espírito Santo, amando-o com toda a alma e ao próximo como a nós mesmos, tivermos já prosperado e florescido em toda sorte de boas obras [v], podendo então gozar mais ou menos das oito bem-aventuranças nas quais está realmente a perfeição das virtudes (cf. STh II-II 19 12 ad 1), mostrando assim já ter alcançado de algum modo nosso fim último, e portanto a felicidade e perfeição cabíveis nesta vida. Estas consistem realmente em participar mais e mais na terra, daquilo mesmo que haveremos de possuir e gozar em sua pleníssima expansão no Céu [vi].
Por isso são felizes os pobres de espírito, porque merecem que o Espírito do Senhor venha reinar neles, com que começam já a gozar do Reino prometido. E os que têm bem purificados os olhos do coração começam a ver Deus de uma maneira portentosa, elevados em sublime contemplação; e esta vista é uma antecipação ou iniciação do mesmo prêmio eterno, merecido de condigno [vii].
Nessa vista ininterrupta, associada à fruição que dela resulta, consiste a vida e felicidade eternas (cf. Jo 17, 3). E em participar delas atualmente e ao máximo — contemplando a Deus como se estivesse face a face, pelo dom de inteligência, saboreando e vendo quão suave Ele é, pelo dom de sabedoria, e amando-o com toda a alma e com todas as forças com uma caridade já bem ordenada, que não repara em sacrifícios — está, pois, indiscutivelmente, a maior felicidade e maior santidade, bem como a maior perfeição relativa que se pode ter neste mundo e à qual devemos aspirar [viii].
Sem isto, sem qualquer participação nas bem-aventuranças, seremos sempre desventurados, miseráveis, cegos, imperfeitíssimos, por mais que nos julguemos ricos e adiantados com nossas práticas puramente ascéticas, sem necessidade de luzes e ardores infusos. E não sairemos de nossa miséria senão comprando, à força de abnegações e sacrifícios, o ouro ardente da perfeita caridade, que é a bem ordenada; nem conseguiremos ver a luz verdadeira sem ungir nossos olhos com o colírio da mística sabedoria (cf. Ap 3, 17-18), a qual nos ensinará a desprezar o terreno e viver uma vida celestial. Afirma São Gregório Magno:
O homem santo, quando despreza as coisas terrenas, ergue-se como a águia ao que é mais elevado: então, levantado pelo espírito de contemplação, espreita a glória perene dos anjos; e apetecendo as realidades que contempla, firma-se já no que é mais sublime, por ser estrangeiro neste mundo… Por isso, erguem-se os homens santos pela sublime contemplação (Moral. XXXI 35).
O mesmo vem a dizer em substância repetidas vezes São João Clímaco, acrescentando ambos [os autores] que não alcançaremos o triunfo sobre todas as nossas concupiscências enquanto não chegarmos a saborear a doçura das coisas espirituais.
“Não descanseis — enfatiza sobre isso o Beato Henrique Suso (Unión II) — até chegardes, quanto o permite a fraqueza humana, a essa união eterna dos santos, que é sempre presente, atual e divina”. Aí está, pois, a perfeição verdadeira do cristão.
“Vida perfeita — ensina o Venerável Granada (Amor de Dios, Prólogo) — é estar na terra e com o espírito habitar no Céu; viver entre os homens e conversar com os anjos”. “A condição do perfeito amor — acrescenta (Ibid., c. 1, §1) — é ter todos os sentidos na coisa amada e estar totalmente unido e transformado nela”. “O principal empenho do servo de Deus deve ser trabalhar, tanto quanto possível, para que a alma esteja sempre unida com Deus pela oração, contemplação e amor atual [ix]” (Ibid., c. 2).
Portanto, “a contemplação sobre-essencial [sobrenatural] — como diz Ruysbroeck (Adorno de las bodas, l. 3, c. 1) — é o fundo e o fim de toda a santidade e de toda a vida perfeita que pode ser exercitada neste tempo”.
Nela está, de fato, assegura Dionísio Cartusiano (De Contempl., l. 1, aa. 1.7), a essência mesma da perfeição cristã, que consiste em estar atualmente unidos a Deus pela contemplação e pelo amor, à semelhança dos bem-aventurados.
Repete, por sua vez, Frei João dos Anjos (In Cant. I 1), juntamente com São Boaventura e o autor do livro De Adhærendo Deo:
A mais alta perfeição a que se pode chegar nesta vida consiste em unir-se de tal maneira o homem a Deus que toda sua alma, com suas potências e forças espirituais recolhidas nele, tornem-se um espírito com Ele, de sorte que já não se lembre senão de Deus, nem entenda nem sinta senão a Deus, e todos os seus afetos, unidos no gozo do amor, descansem somente na fruição do Criador… De modo algum pode-se chamar a alma deiforme… senão quando a inteligência é perfeitamente iluminada segundo sua capacidade para o conhecimento de Deus, que é a suma verdade; a vontade é perfeitamente cativada e enamorada para amar a suma bondade; e a memória é plenamente absorvida para olhar, reter e gozar da suma felicidade. E porque na consecução perfeita destas coisas consiste a glória da bem-aventurança que se aperfeiçoa na pátria, fica claro que na perfeita incoação ou princípio delas estará a perfeição dos viadores.
E embora qualquer empenho e esforço das virtudes pareça caminhar e nos levar a isto, o que mais contribui para esse fim é a dedicação contínua e perseverante à oração; e a perfeição da oração se dá quando a alma alcança aquilo em vista do qual caminha orando, e, totalmente desapegada das coisas temporais e inferiores, une-se somente às divinas, de maneira que não pode nem quer sentir mais que a Deus, onde verdadeiramente descansa e se deleita, encontra satisfação e fartura. É isto que pede quando diz: “Beija-me com um beijo de sua boca” (Ct 1, 1).
Tal é a verdadeira doutrina tradicional; o resto é rebaixar o ideal de nossa perfeição desde a altura infinita em que o divino Mestre nos colocou ao dizer “Sede perfeitos como vosso Pai celestial” (Mt 5, 48), ao nível de uma pobre apreciação humana…
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