Durante o Advento, a Igreja nos recorda que, além de simplesmente nos prepararmos para a natividade de Cristo no Natal, temos também de nos preparar para a segunda vinda de Cristo no último dia. “Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai” (Mt 24, 36). 

Nós, católicos, cremos que o último dia será precedido por um período de tribulação e sofrimento, do qual ninguém será poupado. Porém, algumas denominações protestantes enxergam as coisas de um modo diferente. Elas esperam ansiosamente pelo “arrebatamento”, que precederá o fim dos tempos, segundo a crença delas.

Vivo numa região do país com uma forte presença evangélica e fundamentalista. Portanto, qualquer discussão sobre o último dia ou sobre o fim dos tempos quase sempre traz à tona o tema do “arrebatamento”. Como católicos, nós não aderimos a essa doutrina. É muito útil ter uma compreensão sobre o “arrebatamento” quando conversamos sobre o fim dos tempos com nossos irmãos e irmãs não-católicos. Realmente, não se trata de uma doutrina bíblica. Portanto, é ainda mais útil saber como refutar essa curiosa ideia através da Sagrada Escritura.

“O Arrebatamento de São Paulo”, por Domenichino. Referência a 2Cor 12, 2.

O que é o “arrebatamento”? — A doutrina do arrebatamento é ensinada principalmente por evangélicos e fundamentalistas. Portanto, nem todos os cristãos não-católicos acreditam na ideia de um “arrebatamento dos fiéis”. Ao mesmo tempo, ela não é de modo algum exclusiva dessas denominações.  

Essa curiosa doutrina é também razoavelmente nova. Um dos seus primeiros defensores foi um pastor chamado John Nelson Darby, que escreveu sobre esse assunto em meados do século XIX. No início do século XX, o arrebatamento ficou ainda mais popular por causa da Bíblia de Estudo Scofield. As notas de rodapé de Scofield promoveram a doutrina de Darby sobre o arrebatamento.   

Mais recentemente, a crença no arrebatamento foi disseminada por livros e filmes como The Late Great Planet Earth [sem tradução portuguesa], e a série Left Behind, [“Deixados para trás”]. Tele-evangelistas famosos como Billy Graham, Jerry Falwell, Bob Jones e outros pregadores inspirados por esses homens também disseminaram a doutrina do arrebatamento.

Embora haja algumas variações, geralmente a doutrina do arrebatamento ensina que, a qualquer momento, Jesus Cristo retornará à terra subitamente e de forma invisível. Nesse momento, todos os fiéis serão levados ao Céu em corpo e alma para se unir a Cristo (serão “arrebatados”). Não haverá sinais de alerta. Ele virá como um ladrão que age à noite e somente serão arrebatados os que forem salvos. Os incrédulos serão abandonados para enfrentar o período da grande tribulação com o reino do Anticristo.        

O arrebatamento tem fundamento bíblico? — Nas discussões que já tive com aqueles que apoiam a ideia do arrebatamento, o trecho usado com mais frequência como evidência bíblica dela é da Primeira Carta aos Tessalonicenses, 4, 15-17. São Paulo diz o seguinte nele:

Dizemo-vos isto, segundo a palavra do Senhor: os que estamos vivos, os sobreviventes, quando da vinda do Senhor, não passaremos adiante daqueles que morreram. Porque o mesmo Senhor, ao sinal dado, à voz do Arcanjo, ao som da trombeta de Deus, descerá do céu: os que morreram em Cristo, ressuscitarão primeiro; depois, nós os que vivemos, os sobreviventes, seremos arrebatados juntamente com eles sobre as nuvens, ao encontro de Cristo, nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor.

Essa passagem não é uma descrição dos fiéis sendo elevados da terra, e São Jerônimo usou a palavra rapiemur (“seremos arrebatados”) quando traduziu o trecho para o latim. A palavra portuguesa “rapto”, que é sinônimo de “arrebatamento”, deriva de rapiemur. Portanto, São Paulo de fato descreve o “arrebatamento” dos fiéis nos ares. Mas quando analisamos o contexto em sua totalidade, vemos que esse evento ocorrerá na segunda vinda de Cristo. Ele não acontecerá antes do último dia, nem longe dele.

Detalhe de “O Último Dia de Pompeia”, por Karl Brullov.

Outro elemento essencial nessa passagem é o seguinte: quando o arrebatamento é descrito, não há segredo nem silêncio algum em relação a ele! Paulo descreve a segunda vinda de Jesus de modo muito visível e óbvio para todos. Jesus é acompanhado pelo som das trombetas e pelas visões dos anjos. Além disso, antes de os fiéis serem elevados aos ares, os mortos serão ressuscitados de seus túmulos! Portanto, o arrebatamento descrito por São Paulo é muito diferente da doutrina do arrebatamento ensinada por alguns cristãos atualmente.

Um será levado, outro será deixado. — Em outra conversa com evangélicos, mencionaram Lucas 17, 26-37 e Mateus 24, 3-44 para sustentar a doutrina do arrebatamento. Eles alegam que essas passagens descrevem o arrebatamento dos fiéis e mostram como os incrédulos serão deixados para trás. Nessas passagens, Jesus profetiza um tempo que chegará quando as pessoas estiverem envolvidas com suas atividades cotidianas e, subitamente, “uma será tomada, a outra deixada” (Lc 17, 34). 

Tomados isoladamente, esses versículos realmente falam de pessoas que subitamente serão separadas. Seria esse o arrebatamento do qual falam alguns protestantes? Por que alguns são deixados para trás? Aqueles que são deixados para trás são os incrédulos que terão de enfrentar a grande tribulação, tal como ensina a doutrina do arrebatamento? Mais uma vez, precisamos analisar todo o contexto para responder a essas perguntas.       

Não há “arrebatamento”.Nessas passagens, Jesus está respondendo a uma pergunta dos discípulos sobre sua segunda vinda. Perguntaram quais “sinais” ocorrerão quando Ele retornar. A resposta mistura profecias sobre o fim do mundo com profecias sobre a destruição do Templo em Jerusalém (que ocorreria décadas mais tarde, no ano 70). Ao longo dos alertas, Jesus enfatiza que seus discípulos precisam estar sempre prontos e preparados, porque ninguém sabe quando tais eventos acontecerão (cf. Mt 24, 44).

Jesus afirma que sua segunda vinda será rápida e inesperada, além de ser acompanhada de vários sinais. Haverá guerras, rumores de guerras, fomes, terremotos, fraudes, falsos profetas, tribulação e ilegalidades. Jesus também diz que sua segunda vinda será acompanhada de raios e do som de trompetes. Portanto, ela será evidente e visível a todos. Ele inclusive descerá do Céu acompanhado por anjos.  

No Evangelho de Lucas, Jesus compara a época da segunda vinda aos dias de Noé. Apesar dos alertas deste, as pessoas continuavam vivendo normalmente. Então, Noé entrou na arca e o dilúvio destruiu todas as pessoas perversas. Como na época de Noé, Jesus diz que no último dia as pessoas serão separadas: de cada duas, uma será levada e outra será deixada para trás. Mas a chave para compreender essa profecia do fim dos tempos é o reconhecimento de que, nos dias de Noé, os perversos é que foram levados da terra, e não os justos [i]!

“O Dilúvio”, por Hans Baldung Grien.

O contexto completo. — Os Evangelhos ampliam ainda mais o contexto sobre o tema. Quando os discípulos escutaram essa analogia, perguntaram a Jesus o destino dos que seriam levados. Ele respondeu assim: “Onde quer que esteja o corpo, juntar-se-ão aí também as águias” (Lc 17, 37; Mt 24, 28). A palavra grega para pássaro nos dois Evangelhos é aetos, que é traduzida por abutre ou águia. Curiosamente, para a palavra “corpo”, Lucas usa o termo grego soma (“corpo”), mas Mateus usa o termo ptoma, que em grego significa literalmente “cadáver” ou “carcaça”. 

Portanto, o contexto nos diz que Jesus está se referindo a uma ave de rapina. Isso é importante porque aqueles sendo levados são chamados de cadáveres. São levados a um lugar onde há aves carnívoras [ii]. Por acaso Jesus parece estar dizendo que os justos serão levados para esse lugar? De modo algum! Isso se relaciona à analogia de Noé. Assim como os perversos foram levados pelo dilúvio, Jesus ensina que em sua segunda vinda os perversos serão levados para o fogo do inferno — e ficarão separados dele por toda a eternidade. 

Segundo a doutrina do arrebatamento, quando Jesus diz que “um será levado e outro deixado para trás”, Ele está afirmando que os fiéis serão arrebatados subitamente. Porém, trata-se claramente de uma interpretação incorreta da passagem inteira. Na verdade, deveríamos desejar ser deixados para trás com Cristo, e não ser levados com os iníquos, como nos dias de Noé! 

Outros desafios à doutrina do arrebatamento. — A doutrina do arrebatamento também afirma que, quando Cristo vier secretamente, levará todos fiéis em corpo e alma para o Céu — uma ressurreição dos fiéis. Mas a Sagrada Escritura é clara ao afirmar que somente no último dia fiéis e incrédulos serão ressuscitados em corpo e alma.

No trecho da Primeira Carta aos Tessalonicenses (4, 16-18) citado anteriormente, São Paulo diz que antes de os fiéis serem levados, aqueles que morreram em Cristo serão ressuscitados. Somente depois disso os fiéis que estiverem vivos serão elevados aos ares. Portanto, o que a Sagrada Escritura descreve aqui se opõe a qualquer ideia de que os fiéis serão levados ao Céu em corpo e alma antes de os mortos serem ressuscitados no último dia.

Outro detalhe de “O Último Dia de Pompeia”, por Karl Brullov.

O Evangelho de João também é explícito ao afirmar que a ressurreição ocorrerá com fiéis e incrédulos ao mesmo tempo — no último dia. João 5, 28-29 diz: “Não vos admireis disso, porque virá tempo em que todos os que se encontram nos sepulcros ouvirão a sua voz, e os que tiverem feito obras boas sairão para a ressurreição da vida, mas os que tiverem feito obras más, sairão ressuscitados para a condenação”.

João é também muito claro ao dizer que a ressurreição corpórea dos fiéis só ocorrerá no último dia. João 6, 40 diz: “A vontade de meu Pai, que me enviou, é que todo o que vê o Filho e crê nele tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia”. E João 6, 54 diz mais adiante: “O que come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia”.

Tribulação e sofrimento. — Já ouvi pessoas celebrando a ideia do “arrebatamento” porque a crença comum é de que ele ocorrerá antes da grande tribulação — o evento que se dará antes do fim dos tempos. Segundo essa crença, os fiéis não terão de enfrentar sofrimentos intensos. Mas, ao observarmos a Sagrada Escritura, fica claro que não é isso que está sendo ensinado.

Em Mateus 23, 3-14, Jesus é explícito ao afirmar que os fiéis serão entregues à tribulação e serão mortos. Apesar disso, Ele exorta os discípulos a perseverar até o fim para serem salvos.

Além disso, os cristãos recebem o alerta de que serão perseguidos tal como Nosso Senhor foi perseguido (cf. Jo 15, 20; Mt 5, 10) e recebem a ordem de tomar sua cruz e seguir Jesus diariamente (cf. Lc 14, 27). Em Romanos 8, 17, São Paulo também nos diz que seremos “coerdeiros de Cristo; mas isto, se sofrermos com ele, para ser com ele glorificados”. E São Pedro escreveu: “Mas alegrai-vos de serdes participantes dos sofrimentos de Cristo, para que vos alegreis também e exulteis, quando se manifestar a sua glória”.

A Sagrada Escritura nos diz aquilo que sabemos a partir das nossas experiências terrenas: o sofrimento nesta vida é inevitável. Deus não revela que a fé em Cristo nos permitirá escapar do sofrimento, tal como o propõe o arrebatamento. No entanto, mesmo sabendo disso, não precisamos ter medo nem aderir a uma falsa ideia como a do arrebatamento. Ao invés disso, se estivermos em Cristo e unirmos nossos sofrimentos aos dele, o sofrimento se tornará redentor e transformador. E nessa verdade podemos nos alegrar verdadeiramente!

Notas

  1. Esta mesma observação é feita por Scott Hahn e Curtis Mitch, em comentário a Mt 24, 40: “Essa história dá sequência ao exemplo do dilúvio dado por Jesus (24, 37). Os justos serão deixados, assim como Noé e sua família foram poupados (Eclo 44, 17), e os perversos serão levados, assim como a geração toda de Noé foi varrida pelo dilúvio (Mt 24, 39; 2Pd 2, 4-10)” (O evangelho de São Mateus: Cadernos de estudo bíblico. Trad. de Thomaz Perroni. Campinas: Ecclesiae, 2014, p. 122). (N.T.)
  2. Este provérbio de sentido obscuro é tomado do Antigo Testamento (cf. 39, 30) e admite várias interpretações. Só para que se tenha uma ideia: o consenso dos Santos Padres, a excelente Bíblia de Navarra e os Cadernos de Estudo Bíblico (do Scott Hahn) oferecem, cada um, uma  posição diferente a respeito dela. (N.T.)

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