A passagem bíblica a seguir, extraída dos Atos dos Apóstolos, apresenta um retrato de coragem e santa ousadia bem pouco evidentes em muitos católicos. 

Analisemos o episódio, que acontece logo após a cura do homem paralítico diante do portão chamado Belo. Em seguida, reflitamos sobre quatro qualidades manifestadas pelos Apóstolos Pedro e Paulo. 

Vendo eles [os sinedritas] a coragem de Pedro e de João, e considerando que eram homens sem estudo e sem instrução, admiravam-se. Reconheciam-nos como companheiros de Jesus. Mas, vendo com eles o homem que tinha sido curado, não puderam replicar. Mandaram que se retirassem da sala do conselho, e confe­renciaram entre si: “Que faremos destes homens? Porquanto o milagre por eles feito se tornou conhecido de todos os habitantes de Jerusalém, e não o podemos negar. Todavia, para que esta notícia não se divulgue mais entre o povo, proibamos, com ameaças, que no futuro falem a alguém nesse nome”. Chamaram-nos e ordenaram-lhes que absolutamente não falassem nem ensinassem em nome de Jesus. Responderam-lhes Pedro e João: “Julgai-o vós mesmos se é justo diante de Deus obedecermos a vós mais do que a Deus. Não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido”. Eles, então, ameaçando-os de novo, soltaram-nos, não achando pretexto para os castigar por causa do povo, porque todos glorificavam a Deus pelo que tinha acontecido (At 4, 13-21).

1. Autoridade. — O texto começa com uma referência à “coragem” de Pedro e João, relacionando-a com o fato de as autoridades religiosas estarem “admiradas”. Como homens comuns e sem estudo conseguiam falar e agir daquela maneira?

A palavra grega traduzida como “coragem” é παρρησία (parresía ou parrhēsía), que vem de pás (“tudo”) + rhēsis, “um provérbio ou afirmação citada com determinação”. Em outras palavras, parresía significa falar com confiança e manifestar uma forte determinação; significa falar de modo claro, público ou eficaz. O termo “retórica” vem da raiz rhēsis. Retórica é a arte do discurso eficaz ou persuasivo e, em seu sentido mais técnico, geralmente requer treinamento em lógica e postura.

Portanto, a coragem descrita nessa passagem mostra a transformação operada pela Ressurreição e por Pentecostes. Antes de Pentecostes, os Apóstolos, embora muitas vezes fossem zelosos e estivessem dispostos a fazer sacrifícios para seguir Jesus, também demoraram para entender o que viam e muitas vezes ficavam confusos. A partir do domingo de Páscoa (cf. Lc 24, 32.45) e, muito provavelmente, ao longo dos quarenta dias antes da Ascensão, o Senhor instruiu e formou os Apóstolos no Evangelho. No entanto, somente em Pentecostes suas mentes foram plenamente despertadas e seus corações, confirmados. Jesus havia dito: “Muitas coisas ainda tenho a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, ele vos ensinará toda a verdade, porque não falará por si mesmo, mas dirá o que ouvir, e vos anunciará as coisas que virão” (Jo 16, 12-13). Em outra passagem, Ele acrescentou: “Disse-vos essas coisas enquanto estou convosco. Mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, irá ensinar-vos todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (Jo 14, 25-26). 

Antes de Pentecostes, os Apóstolos e os discípulos reuniram-se amedrontados a portas fechadas. No entanto, em seguida eles prosseguem com a coragem aqui descrita. Os líderes religiosos ficam “admirados” e se maravilham com o fato de homens comuns e não instruídos terem um domínio tão abrangente do assunto de que tratam, bem como uma coragem tão serena. Pedro e João curaram um homem aleijado havia quarenta anos. Eles sabiam que ele era aleijado e já o tinham visto no Templo. Os líderes religiosos não conseguem explicá-lo. Além do mais, as ameaças de costume não parecem gerar neles o efeito desejado. 

Sim, Pedro e João agem com coragem, confiança e intrepidez. Estão manifestando o dom que o Senhor prometeu quando disse: 

Mas, antes de tudo isso, vos lançarão as mãos e vos perseguirão, entregando-vos às sinagogas e aos cárceres, levando-vos à presença dos reis e dos governadores, por causa de mim. Isso vos acontecerá para que vos sirva de testemunho. Gravai bem no vosso espírito: não prepareis vossa defesa, porque eu vos darei uma palavra cheia de sabedoria, à qual não poderão resistir nem contradizer os vossos adversários (Lc 21, 12-15).

Como esses homens mudaram (particularmente Pedro)! Está claro que o Senhor lhes deu um dom tal como prometera. Sua coragem é fruto da graça de Deus. Que essa graça possa chegar aos líderes da Igreja hoje, tanto no clero como no laicato. Precisamos mais do nunca dessa santa coragem.

“A Descida do Espírito Santo”, por Ticiano.

2. Sua vinculação a Cristo. — O texto diz que o Sinédrio reconheceu que eles haviam estado com Jesus. Que trecho magnífico. Embora isso possa significar que eles se lembravam de que os Apóstolos acompanharam Jesus, para o leitor a expressão é muito mais profunda. Pedro e João manifestam por meio de suas vidas transformadas que estiveram com Jesus. Eles apresentam o fruto de um relacionamento transformador com Jesus Cristo. Sim, aqueles homens estiveram com Jesus. É óbvio!

E você e eu? Alguém poderia olhar para nós e concluir que estivemos com Jesus? Isso não seria uma descrição do que deveria ser a vida cristã normal? Sua relação com Jesus Cristo é óbvia para os outros? Deveria ser.

Naturalmente, é uma triste realidade que a maioria dos cristãos se contentem em esconder a própria fé ou em seguir a cultura ao seu redor. São cristãos disfarçados, como agentes secretos; embora tenham sido escolhidos por Deus, estão paralisados. Não há fogo genuíno para chamar a atenção dos outros nem proclamações corajosas ou sinais visíveis de vida espiritual. Poucas pessoas concluiriam que esses cristãos estiveram com Jesus.

Onde estamos no espectro da luz? A Luz de Cristo é visível em nós (cf. Mt 5, 14)? Portamos as marcas registradas de Jesus (cf. Gl 6, 17)? Amamos os nossos inimigos (cf. Mt 5, 44)? Brilhamos como as estrelas em meio a uma geração perversa e depravada (cf. Fl 2, 15)? 

3. Impressionante habilidade. — Embora os santos Pedro e João tenham sido presos, a situação se inverteu, com efeito, e foram eles que prenderam o Sinédrio. Como observamos acima, Pedro e João não parecem intimidados pelas ameaças de sempre, e seus argumentos não são facilmente abandonados, pois falam com sinceridade e autoridade. Além disso, as multidões ficam espantadas, e os próprios líderes não conseguem explicar como um homem que notoriamente fora aleijado por quarenta anos agora caminha e até dança!

Eles realmente não sabem o que fazer. São contidos pelo cativante e corajoso testemunho diante deles.

João Paulo II e Madre Teresa.

A verdadeira santidade pode ter esse efeito, ao menos em certas condições. S. Teresa de Calcutá era assim. Embora muitos não tivessem a mesma fé que ela, até os inimigos da fé a admiravam. Isso acontecia, não porque bajulasse os outros, mas justamente pelo contrário. Ela tinha coragem para repreender inclusive os mais poderosos, mas demonstrava um amor que não podia ser negado. A forma como refletia a glória de Cristo deixava todos paralisados.

Este talvez seja um dos dons mais raros de todos, mas ainda deve ser buscado, para que ao menos algumas pessoas em cada época tenham uma santidade e bondade cativantes em sua pureza. 

4. Assertividade. — Ser apropriadamente assertivo é atender às necessidades de alguém sem pisar outras pessoas. E qual é a maior necessidade de qualquer santo? Proclamar a Cristo crucificado e ressuscitado. Desse modo, quando Pedro e João são instados a parar de proclamar o nome de Jesus, reafirmam a necessidade e o direito de continuarem a fazê-lo. Mas o fazem sem desrespeitar os líderes que estão diante deles. Não gritam: “Não vos escutaremos!” Não os desrespeitam pessoalmente de modo algum. Ao contrário, recomendam-se à consciência dos líderes como forma de recusar respeitosamente uma ordem a que não podem obedecer: “Julgai-o vós mesmos se é justo diante de Deus obedecermos a vós mais do que a Deus. Não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido”.

Em outras palavras, eles dizem: “Irmãos, anciãos, não concordais com que um homem há de obedecer a Deus antes que a qualquer outro homem? Fazei o que tendes de fazer. Tende vossos juízos. Nós, porém, devemos obedecer ao Senhor e falar de Jesus até o nosso último suspiro.”

São respeitosos, mas falam com clareza; afirmam a si mesmos e sua missão, mas não atacam nem pisoteiam as reputações ou a justa autoridade dos membros daquela comunidade ou estado; não podem cooperar com uma ordem vil, mas não atacam nem encenam uma tentativa de tomar o poder. Ficam diante de seus oponentes e olham nos olhos deles. Não fogem nem cedem ao medo, mas tampouco se tornam como eles no que diz respeito à arrogância e a exigências injustas. 

Este é um bom modelo para nós que estamos começando a viver dias difíceis, nos quais as pressões da cultura e do governo podem exigir que nos recusemos a cooperar com demandas perversas. Nosso objetivo não é humilhar nem vencer nossos oponentes, mas convertê-los, e se não os convertermos, que ao menos possamos converter a cultura ao nosso redor. Como diz S. Paulo: “Afastamos de nós todo procedimento fingido e vergonhoso. Não andamos com astúcia, nem falsificamos a Palavra de Deus. Pela manifestação da verdade nós nos recomendamos à consciên­cia de todos os homens, diante de Deus” (2Cor 4, 2). 

Aqui temos um modelo para nós e alguns desafios. Temos de manifestar uma corajosa e sincera confiança no Evangelho que proclamamos, porque conhecemos Jesus e estamos sendo conformados à sua imagem. Na verdade, deveríamos pedir e nos esforçar para ter aquela rara santidade, cativante em sua pureza, mas que também nos leva a anunciar a Cristo assertivamente, sem concessões nem hipocrisia. — Ajudai-nos, Senhor!

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