Sobre “Maria Madalena”, lançado no Brasil no último dia 15 de março, é importante que você saiba uma coisa importante: não era a intenção nem das roteiristas nem do diretor, Garth Davis, fazer um filme de acordo com os Evangelhos canônicos.
Em entrevista a um site australiano, Davis declarou que, quando recebeu o roteiro, ele descobriu “que não era um filme bíblico, mas sim uma incrível história espiritual dessa mulher extraordinária, cuja história — eu depois entendi — não havia sido realmente contada”. O retrato de Maria Madalena como uma “mulher imoral” teria sido “uma invenção do Papa Gregório, em 591 d. C.”.
Essa mesma alegação consta no final do filme, como um post scriptum, acompanhada de uma informação que os espectadores talvez não conhecessem: recentemente, da mesma Roma onde vivera São Gregório Magno, o Vaticano teria “reabilitado” Maria Madalena, dando-lhe o título de apostola apostolorum (“apóstola dos apóstolos”) e reconhecendo nela uma pessoa “em nada diferente” dos outros Apóstolos.
Antes de qualquer coisa, vamos à verdade dos fatos.
Por desejo expresso do Papa Francisco, a Congregação para o Culto Divino estabeleceu em 2016 que “a celebração de Santa Maria Madalena” fosse “inscrita no Calendário Romano Geral, com o grau de festa em vez do de memória”, como era até então. No mesmo decreto consta o título “apóstola dos apóstolos”, dado a Maria Madalena, mas a expressão está longe de ser uma novidade, como Hollywood quer fazer as pessoas acreditarem; seu autor é Santo Tomás de Aquino, que viveu ainda no século XIII.
Isso significa que a suposta “reabilitação” de Maria Madalena é muito mais antiga do que se pensa… A começar pelo fato de que dizer simplesmente “Maria Madalena” já está errado. Nós, católicos, lhe chamamos santa, e não é de hoje. “A Igreja, tanto no Ocidente como no Oriente — diz ainda o decreto do Culto Divino —, teve sempre em grande consideração e louvor Santa Maria Madalena, celebrando-a de diversos modos, pois ela foi a primeira testemunha evangelizadora da Ressurreição do Senhor”.
Mais correto seria dizer, portanto, que foi o próprio Senhor quem “reabilitou” Maria Madalena. Quando “andava pelas cidades e aldeias anunciando a boa-nova do Reino de Deus”, não só os Apóstolos iam com Ele, “como também algumas mulheres”, dentre as quais menciona-se “Maria, chamada Madalena” (Lc 8, 1-2). Ela também esteve aos pés da Cruz (cf. Mt 27, 56; Mc 15, 40; Jo 19, 25) e, o mais importante de tudo, foi a primeira testemunha de Jesus após a Ressurreição (cf. Mt 28, 1-10; Mc 16, 1-11; Lc 24, 1-10; Jo 20, 1-18). Tudo isso é mais do que o suficiente para fazer de Santa Maria Madalena uma figura importantíssima para a nossa fé.
Mas, aparentemente, para os fãs da polêmica e os inimigos da religião — especialmente da católica —, o que consta nos Evangelhos canônicos não basta. Em um passado não muito distante, houve até quem idealizasse um verdadeiro casamento entre Jesus Cristo e Maria Madalena, com filhos e tudo. Garth Davis não chega a esse ponto, mas as imprecisões e os exageros da trama saltam aos olhos.
Em primeiro lugar, a possessão de Santa Maria Madalena antes de seguir a Cristo, confirmada por dois dos Evangelhos canônicos (cf. Lc 8, 2; Mc 16, 9), é totalmente relativizada no filme. A família de Maria teria simplesmente interpretado mal a sua audácia e destemor. Em seu primeiro encontro com a mulher de Magdala, o Jesus interpretado por Joaquin Phoenix diz-lhe que não via demônio nenhum presente nela.
Pode ser falta de fé na existência do demônio, necessidade de “romantizar” a história de Maria Madalena, ou mesmo as duas coisas juntas. O fato é que essa tendência, que não é de agora, de tentar eliminar todas e quaisquer manchas possíveis na vida pregressa de Maria Madalena, passa uma impressão muito errada a respeito do que sejam a conversão e a santidade para a religião cristã.
Veja-se, por exemplo, a tempestade que os exegetas modernos fazem em torno da hipótese de Maria Madalena ter sido uma prostituta. Para negar essa informação — que, embora não conste expressamente nas Escrituras, foi amplamente aceita pela Igreja no Ocidente —, eles chegam a atribuir más intenções aos santos e padres católicos, inventando histórias as mais estapafúrdias.
Mas, controvérsias exegéticas à parte, seria preciso perguntar: que diferença faria ela ter sido prostituta ou não? Por acaso Deus não pode resgatar as pessoas de todos os tipos de pecado? Figuras como um Santo Agostinho ou uma Santa Maria Egipcíaca (esta, sim, tirada da prostituição) deveriam receber menos prestígio e veneração, só porque levaram uma vida de pecados antes de conhecer a Cristo? Ou não é justamente a mudança que se operou em suas vidas o motivo maior de sua glória, como diz o Apóstolo: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20)?
Em segundo lugar, o filme retoma uma falsa dicotomia retirada de um antigo apócrifo gnóstico: haveria uma revelação feita a Maria Madalena e uma outra aos Apóstolos, ou melhor, Jesus teria anunciado o Evangelho a todos eles, mas só a “apóstola dos apóstolos” — que está mais para superapóstola — o teria compreendido verdadeiramente.
Na história de Hollywood, Jesus pede a Maria que “seja suas mãos”, abençoando o povo que o circunda; manda que ela vá com Pedro, só os dois, pregar em outras aldeias; põe-na entre os convivas da Última Ceia, à la Dan Brown; e é ela, por fim, quem, em retribuição, tenta defender Nosso Senhor dos soldados romanos no Horto das Oliveiras — e não Pedro, como diz o Evangelho de São João (Jo 18, 10).
Aqui é chegado o momento de explicar a compreensão correta da expressão “apóstola dos apóstolos”, atribuída a Santa Maria Madalena por ninguém menos que Santo Tomás de Aquino. Para tanto, deixemos que o próprio Doutor Angélico fale. O contexto de seu ensinamento é a passagem em que Jesus manda Maria avisar os Apóstolos de sua ressurreição:
Deve-se reconhecer aqui um tríplice privilégio concedido a Madalena. Em virtude do primeiro, de caráter profético, ela mereceu ver os anjos; o profeta, com efeito, é quem serve de mediador entre os anjos e o povo. Em virtude do segundo, consistente na elevação angélica, ela viu a Cristo, a quem desejam contemplar os anjos. Em virtude do terceiro, que é o ofício apostólico, ela tornou-se apóstola dos Apóstolos, e por causa disso lhe foi confiada a tarefa de anunciar aos discípulos a Ressurreição do Senhor, a fim de que, assim como no princípio a mulher levara ao homem palavras de morte, assim também uma mulher anunciasse agora palavras de vida (Comentário ao Evangelho de São João, c. XX, l. 3, n. 2519).
Note-se, portanto, que a expressão tem todo um contexto, relacionado ao fato de ela ser a primeira testemunha da Ressurreição, o que está muito longe da afirmação, falsamente imputada ao próprio Vaticano, de que Santa Maria Madalena não seria “em nada diferente” dos demais Apóstolos. Isso colocaria em xeque o fato, já confirmado recentemente pelo Papa São João Paulo II e reiterado pelo próprio Francisco, de que Nosso Senhor escolheu apenas homens como Apóstolos, para compor a hierarquia de sua Igreja.
Em que essa escolha de Cristo diminui as mulheres, são os céticos e críticos da Igreja que precisam responder. A Igreja, afinal, nunca teve dificuldades em reconhecer a santidade e os méritos de Santa Maria Madalena, bem como o de inúmeras outras mulheres ao longo de toda a história:
- Santa Cecília, a primeira em que se observou o fenômeno da incorruptibilidade após a morte;
- Santa Hildegarda de Bingen, proclamada doutora da Igreja pelo Papa Bento XVI;
- Santa Catarina de Sena, mãe e mestra em sua época de uma multidão de leigos, religiosos e sacerdotes (chegando a aconselhar em cartas o próprio Papa!);
- Santa Joana d’Arc, no fim da Idade Média;
- Santa Teresa de Calcutá, em nossa época, e a lista se prolonga indefinidamente…
A criatura mais perfeita criada por Deus, a propósito, foi uma mulher: seu nome, assim como o da mulher de Magdala, é Maria, e por causa da devoção que lhe temos até de idólatras somos acusados.
Nenhuma dessas mulheres, no entanto, ousou fixar um protesto na porta de uma igreja ou convocar uma marcha questionando o porquê de as mulheres não serem ordenadas sacerdotisas. Porque, no fim das contas, a coisa mais importante dentro da Igreja não é fazer parte da hierarquia, mas, sim, cumprir a vontade de Deus, onde quer que Ele nos chame.
Além disso, o sacerdócio católico não é uma posição de poder, mas um serviço. Foi o que explicou Nosso Senhor um dia, conversando com seus discípulos: “Sabeis que os chefes das nações as subjugam, e que os grandes as governam com autoridade. Não seja assim entre vós. Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso servo. E o que quiser tornar-se entre vós o primeiro, se faça vosso escravo.” (Mt 20, 25-27)
Estamos dispostos a isso? Santa Maria Madalena, como santa que foi, esteve. E, no fundo, o que mais importa, ao entrarmos em contato com sua biografia, não é tanto saber o que ela fez ou deixou de fazer fora do que está nos Evangelhos canônicos, mas sim o que ela tem a nos ensinar justamente a partir deles. Quem ainda não foi aos cinemas assistir a “Maria Madalena”, portanto, faça melhor: abra a Bíblia e deixe-se instruir pelo que as páginas inspiradas do Evangelho têm a nos transmitir. Hollywood e suas narrativas fantasiosas e recheadas de causas políticas passarão; as palavras de Deus não.
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