Publicou-se há dias, nesta mesma página, um artigo referente à possibilidade de os estúdios de animação Disney lançarem, em 2019, uma sequência do filme infanto-juvenil Frozen cuja protagonista, a popular rainha Elsa, seria apresentada como lésbica.

Trata-se, é claro, de um tema polêmico e delicado, que não poderia deixar de suscitar reações de todo tipo, desde as mais sérias e respeitosas ao sarcasmo puro e simples. A seção de comentários à matéria em questão é prova disso.

Embora muitos se tenham manifestado a favor do artigo, cujo ponto central consistia em alertar para a influência a que a indústria de entretenimento quer submeter a formação ética e afetiva das crianças, houve quem dele discordasse, apelando a chavões do discurso corrente como, por exemplo, a palavra mágica “preconceito”, largamente utilizada como ponto final de qualquer debate e meio de desqualificar a priori o outro lado, o lado “preconceituoso” e “malvado” da conversa e, para muitos, da história.

Dentre as vozes contrárias, algumas se destacaram por fazer eco à opinião — já bem generalizada — de que, “se os filhos são seus, então você que os eduque como quiser”. É uma versão reformulada de um mesmo princípio, de coloração fortemente liberal [1], que vem sendo empregado para justificar práticas como o aborto: “Se você não gosta ou não concorda, então simplesmente não faça”.

No fundo, o que se deseja é permitir e liberalizar tudo, e os que discordam que o engulam quietos.

Aplicada ao caso Frozen, esta opinião liberal se apóia numa série de pressupostos que vale a pena trazer a lume e aos quais parece oportuno responder, a fim de dissipar um pouco as confusões e mal-entendidos que costumam vir implicados em debates como esse:

1) Pressupõe-se, em primeiro lugar, que, quando se trata de assuntos relativos à sexualidade ou à intimidade pessoal, não haveria critérios objetivos que permitissem determinar a bondade moral (ou a falta dela) das ações humanas.

Por um passe de mágica, no âmbito sexual — ao contrário do que ocorre nas relações comerciais ou trabalhistas, nas quais todos presumem saber o que é justo e injusto, bom e mau — todo comportamento seria aceitável, desde que não afetasse a terceiros sem o seu consentimento.

A sexualidade seria, assim, um campo aberto, de sorte que pretender delimitar o que é ou não “permitido” equivaleria à “imposição autoritária” de um ponto de vista parcial, particular e, portanto, sem direito a uma validez universal.

Quanto a isso, é preciso recuperar a consciência de que a sexualidade é parte integrante da vida e, enquanto expressão da natureza humana, está ordenada a um bem específico: a procriação. Trata-se de uma tendência natural que, por pertencer a um sujeito que, mais do que um “bicho”, é fundamentalmente um ser racional, só pode ser satisfeita em conformidade com a razão, ou seja, com a dignidade integral da pessoa humana.

E a razão mostra que o reto exercício da sexualidade exige, sim, complementaridade sexual, vivida num contexto de amor e entrega mútua garantido por um pacto de fidelidade que salvaguarde não só o amor dos esposos, mas sobretudo o desenvolvimento dos futuros filhos.

Como assinala a declaração Persona Humana, a sexualidade, para ser vivida de modo plenamente humano, tem de corresponder “verdadeiramente às exigências da sua finalidade própria” [2], cuja realização se dá na união entre um homem e uma mulher no contexto de um matrimônio estável e posto a serviço do bem do outro, e não da satisfação de preferências e desejos pessoais.

O ato sexual, como qualquer outro ato moral, possui, sim, uma estrutura objetiva que o torna bom ou mau na medida em que a pessoa que o pratica se aproxima ou afasta da realização do seu verdadeiro bem. Não há motivo nenhum para subtrair a sexualidade à existência daquelas “leis imutáveis inscritas nos elementos constitutivos da natureza humana e que se demonstram idênticas em todos os seres dotados de razão” [3].

Falar de sexualidade não é discutir opções e alternativas para o uso dos órgãos genitais; é falar do bem humano para o qual aponta a natureza e o propósito das funções sexuais: é falar de filhos, é falar de família.

2) Pressupõe-se, em segundo lugar, que os atos sexuais, desde que restritos à esfera privada, não possuiriam qualquer repercussão sobre o comportamento público e social de quem os pratica. Em resumidas contas, aquilo que se faz “entre quatro paredes” não influenciaria em nada o modo de a pessoa portar-se consigo e com os demais. As ações humanas seriam como átomos isolados, sem papel nenhum na configuração geral do próprio caráter.

Quanto a este segundo ponto, é preciso recordar que toda ação moral, seja qual for a sua relevância para a vida como um todo, é sempre de índole “autoconfigurativa”: ela sempre recai sobre o próprio agente, conferindo-lhe um novo grau de determinação [4]. São as nossas ações, ao fim e ao cabo, que nos aperfeiçoam ou pioram como agentes racionais e livres. O que fazemos não pode não configurar o que somos.

Se o nosso agir moral carecesse dessa estrutura, seria impossível adquirir hábitos, ou seja, disposições estáveis — boas ou más — para atuar de um determinado modo. Quem perde a hora por ter-se levantado tarde um dia não é, só por isso, um preguiçoso incorrigível; mas quem o faz ao longo de um mês inteiro está num bom caminho para quem não quer levantar-se cedo nunca.

Nesse sentido, sempre que realizamos um ato, estamos adquirindo a disposição para repeti-lo, ou seja, estamos conformando-nos, por um processo de habituação e “conaturalização”, a uma maneira determinada de ser e atuar que impregna toda a nossa vida. É por isso que não há moral privada que não seja, ao mesmo tempo, moral pública ou política: o que somos em casa tende, mais dia, menos dia, a refletir-se na rua.

A ideia de que “o que se faz entre quatro paredes, fica entre quatro paredes”, não passa, pois, de um mito, visto que toda ação contribui, ao seu modo, para a configuração do caráter humano, cujas qualidades morais devem expressar-se, de forma integrada, tanto privada quanto publicamente. E o que pode existir de mais daninho e ofensivo à integridade de um caráter maduro e senhor de si do que a falta de castidade, sem a qual é praticamente impossível “defender o amor dos perigos do egoísmo e da agressividade” [5]?

Se somos livres, ao menos em princípio, para decidir o que fazer, não o somos para escapar aos efeitos que nossas próprias ações geram sobre o como agimos.

3) Pressupõe-se, em terceiro lugar, que a ordem pública deveria reger-se por uma espécie de “neutralidade ética” com respeito aos bens, serviços e produtos oferecidos dentro da sociedade. Nesse sentido, poder-se-ia fazer, produzir, regularizar e divulgar o que quer que fosse, mesmo contra os valores e convicções da maior parte da população, sob o pretexto de que vivemos num mundo “plural”, onde cada um tem autonomia para decidir, entre opções igualmente válidas, o seu próprio jeito de viver.

Quanto a este terceiro ponto, é preciso reconhecer que a pretensão de ser “eticamente neutro” é sempre artificiosa, dado que o ser humano é ético por natureza, ao menos de modo implícito [6].

Com efeito, não há ninguém que não professe, ainda que inconscientemente, um “código” moral, que se revela e manifesta no conjunto de impressões, sentimentos e valorações — sejam elas espontâneas ou fruto de meditação — acerca da conduta própria e alheia [7]. Não há quem seja completamente indiferente ao que faz e a como agem as pessoas que o rodeiam.

Todo homem, ao fim e ao cabo, adota alguma postura (por incoerente e pobre que seja) diante da vida, atribuindo-lhe um sentido por referência ao qual mede, avalia e julga não só suas próprias ações, mas também as de quem está ao seu lado.

Essa neutralidade, se não é possível na esfera individual, tampouco o será coletivamente. A neutralidade ética do Estado, desse ponto de vista, é um contrassenso, pois não há Estado sem finalidade e, portanto, sem uma concepção prévia do que entende por bem humano.

Aspirar a que a estrutura político-jurídica do Estado seja absolutamente neutra com relação aos aspectos não políticos da vida é o mesmo que ignorar que a configuração política do Estado, plasmada em instituições e leis, não pode não afetar, direta ou indiretamente, a forma como os seus próprios membros vivem a vida privada [8].

A idéia de um “Estado neutro”, tão cara à ideologia liberal que pervade hoje a mentalidade de quase todos, é inconsciente de que não é possível um “tipo de Estado que não afete o nosso modo de viver privadamente” [9]. Não faz sentido querer “configurar a política sem, com isso, alterar a forma do que escapa ao âmbito político” [10].

Assim, por exemplo, um Estado que se declara neutro quanto ao Matrimônio natural, uno e indissolúvel, faz com que os cidadãos que desejam participar dessa instituição não possam fazê-lo senão como um tipo de “preferência individual”, nivelada a muitas outras configurações possíveis de uma “vida a dois” — ou a três ou a quatro…

Num Estado como esse, alguém que se oponha ao divórcio encontra-se sujeito à possibilidade de ser socialmente um divorciado (caso o seu cônjuge decida separar-se) e de viver numa situação, eternizada em documentos oficiais, contrária ao que lhe diz sua própria consciência [11].

O mesmo se aplica à sexualidade. Um Estado que se declara neutro com relação à “orientação” sexual de seus membros, permitindo que se divulgue e propague toda forma de “experiência íntima”, faz com que as uniões heterossexuais tendam a ser vistas e vividas como uma “preferência individual” a mais, sem que os cidadãos que a isso se opõem tenham sequer o direito à objeção de consciência, como atestam inúmeros casos recentes.

No fundo, a dissolução da instituição matrimonial e sua pulverização em diversas formas de “arranjo sexual” não é mais do que uma forma de impor, sub-repticiamente, a ditadura do valor único ou, melhor dizendo, do contravalor da completa anarquia sexual.

Toda essa polêmica, trocando em miúdos, revela o quanto a autonomia individual, entendida aqui como o mais cru individualismo, e a busca egoísta do próprio interesse têm sido priorizadas no debate público e assumidas, por não poucas pessoas, como critérios fundamentais e quase sagrados, mais relevantes do que considerações de qualquer outra ordem, inclusive o bem comum das famílias e de toda a sociedade civil.

E aonde isso nos tem levado? Frozen 2, se as coisas não mudarem de rumo, talvez seja a melhor resposta: à instrumentalização do entretenimento, à politização da sexualidade, à sexualização da infância, à fragilização das personalidades.

Referências

  1. A expressão “liberal”, tal como a usamos neste artigo, não se refere a nenhuma proposta ou modelo político-econômico concreto que seja classificado tradicionalmente como liberal, mas ao “universo conceitual e terminológico”, comum tanto à ideologia liberal como à socialista, dentro do qual se move boa parte das concepções modernas sobre política, sociedade e a relação entre ambas (cf. Cf. Alfredo C. Prados, Ethos y Polis. 2.ª ed., Pamplona: EUNSA, 2006, p. 16).
  2. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração “Persona Humana”, de 29 dez. 1975, n. 7 (AAS 68 [1976] 83).
  3. Id., n. 4 (AAS 68 [1976] 80).
  4. Cf. Alfredo C. Prados, op. cit., p. 159.
  5. João Paulo II, Exortação Apostólica “Familiaris Consortio”, de 22 nov. 1981, n. 33 (AAS 74 [1982] 122). V. Conselho Pontifício para a Família, Sexualidade Humana: Verdade e Significado, de 8 dez. 1995, n. 4; Catecismo da Igreja Católica, n. 2341.
  6. Cf. Ana M. González, La Ética Explorada. 2.ª ed., Pamplona: EUNSA, 2016, p. 186.
  7. Cf. Id., pp. 15-16.
  8. Cf. Alfredo C. Prados, op. cit., p. 21.
  9. Id., ibid.
  10. Id., ibid.
  11. Cf. Id., ibid.

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