Quem conhece, lê e medita habitualmente as sagradas páginas do Evangelho verificará facilmente que Jesus, Nosso Senhor e Deus, quando fala desta nossa atual vida terrestre, costuma atribuir-lhe um valor decisivo para toda a existência posterior à morte; verificará ainda que Jesus insiste, e muito, na importância culminante da hora da morte, advertindo-nos freqüentemente de estarmos sempre prontos e preparados para prestar conta da nossa vida ao Juiz Divino, prometendo aos justos recompensa imediata depois do desenlace e contestando abertamente a possibilidade de arrependimento e perdão, passados os umbrais da eternidade; verificará ainda que Jesus desconhece quaisquer vagabundeios pelos espaços ou na erraticidade, para “progredir continuamente”.

Vejamos alguns dos mais frisantes exemplos.

a) Em Lc 16, 19-31 lemos a parábola do pobre Lázaro e do rico epulão. São palavras de Cristo. Aí se oferece a Nosso Senhor uma excelente oportunidade para dar ensinamentos sobre o que acontecerá aos homens depois da morte. Ambos morrem, primeiro o pobre Lázaro, que “foi levado pelos anjos ao seio de Abraão”. A expressão “seio de Abraão” era corrente entre os judeus para significar o céu. E Cristo continua:

Morreu também o rico, e foi sepultado. No inferno, em meio a tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio. Então exclamou: ‘Pai Abraão, tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois estou torturado nesta chama’. Abraão respondeu: “Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida, e Lázaro por sua vez os males; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E além do mais, entre vós e nós existe um grande abismo, de modo que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o podem, nem tampouco atravessaram os de lá até nós”.

Paremos aqui. A parábola ainda continua, rica em ensinamentos sobre as relações entre os falecidos e os que ainda vivem cá na terra. Vemos aí vários pronunciamentos diretamente contrários aos princípios da palingenesia. Se Jesus fosse reencarnacionista, teria agora uma boa ocasião para insistir nesta doutrina: diria que a alma se desprende lentamente do corpo, permanecendo ainda por algum tempo em estado de perturbação e confusão; explicaria como ela readquire aos poucos um estado de consciência, lembrando as existências passadas; como vai depois perder-se na imensidade dos espaços, na erraticidade; como procura novas oportunidades para reencarnar etc.

Mas nesta parábola não encontramos nada disso: ambos morrem, ambos são julgados, um vai para o céu, outro para o inferno. Nada de sempre novas vidas, nada de andar pela erraticidade, nada de ininterruptos progressos depois da morte, nada de esperar novas vidas terrestres, nem mesmo nada de se comunicar com os vivos, como tanto queria o falecido epulão… É que Jesus, ao menos nesta parábola, não era nem reencarnacionista, nem espírita, nem esoterista

“A Crucifixão”, por Pedro Orrente.

b) Em Lc 23, 39-43 contemplamos Jesus pregado e suspenso no alto da cruz, no meio de dois ladrões. Note-se que ambos tinham sido muito maus. Um deles, o do lado direito, confessa-o abertamente, quando repreende seu colega com estas palavras: “Tu nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação? Quanto a nós, é de justiça; estamos pagando por nossos atos; mas ele não fez nenhum mal” (Lc 23, 40s).

Pois bem, este mesmo ladrão, depois daquele público reconhecimento de seus crimes, contrito e arrependido, dirige-se a Jesus com estas palavras: “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com teu reino”. E Jesus responde com a seguinte solene e extraordinária promessa: “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso”. Naquele dia! “Hoje!”

Fosse reencarnacionista, Jesus não poderia ter falado assim. Poderia ter consolado e animado o ladrão arrependido mais ou menos com estas palavras:

Fazes bem em arrepender-te, pois o arrependimento é o primeiro passo para a regeneração. Mas não basta. Deves ter paciência contigo mesmo. Cada qual deve resgatar-se a si mesmo. Tu cometeste muitos crimes: toda falta cometida, todo mal realizado é uma dívida contraída e que deverá ser paga. Já não o podes nesta existência: terás que reencarnar mais vezes, deverás voltar a esta terra, em novo corpo, para expiar e resgatar teus crimes.

Já vimos esses e semelhantes textos de Allan Kardec. Mais ou menos assim deveria ter falado Cristo, se fosse reencarnacionista. Mas falou de modo muito diferente. O que Cristo disse não entra na filosofia das vidas sucessivas. É que Jesus não era reencarnacionista…

c) Do mesmo modo poderíamos analisar outras muitas passagens da mensagem cristã.

Por exemplo, a parábola das dez virgens, das quais cinco eram prudentes e vigilantes e cinco tolas e indolentes e que não estavam preparadas quando “chegou o esposo”. Depois bateram à porta e disseram: “Senhor, Senhor, abre-nos!”; Ele, porém, replicou: “Em verdade vos digo que não vos conheço!” E Cristo tira a conclusão: “Estai, pois, alerta, porque não sabeis nem o dia nem a hora” (Mt 25, 13) da morte.

E outra vez admoesta: “Estai, pois, alerta! Vigiai e orai! Porque ignorais quando chegue esse momento […], se de tarde, se à noite, se ao canto do galo, se de madrugada. Que não apareça de improviso e vos encontre a dormir! O que digo a vós, digo-o a todos: estai alerta!” (Mc 13, 33ss). E ainda: “Vigiai, portanto, e rezai sem cessar, a fim de que vos torneis dignos de evitar todos estes males, e de aparecer com confiança diante do Filho do Homem” (Lc 21, 36). Pois dirá Ele em outra oportunidade: “Se não vos converterdes, perecereis todos” (Lc 13, 3).

d) Particularmente claro é São Paulo, fiel discípulo e zeloso apóstolo de Cristo e que nos assegura de ter recebido seu Evangelho diretamente de Jesus (Gl 1, 12). Eis o que ele escreve aos hebreus: “Está decretado que o homem morra uma só vez, e depois disto é o julgamento” (Hb 9, 27). Morra uma só vez! Não mais vezes, não muitas vezes, não um número indefinido de vezes: uma só vez!

É a afirmação explícita da unicidade da vida terrestre, contra o princípio reencarnacionista da pluralidade das existências. É, em outras palavras, a condenação formal, explícita e clara da teoria da reencarnação. No Concílio Vaticano II, por ocasião da votação do n. 48 da Constituição Lumen Gentium, 123 bispos pediram a introdução de um texto especial de explícita afirmação da unicidade da vida terrestre, propondo esta emenda, que foi aceita e aprovada pelo Concílio: “Vigiemos constantemente, a fim de que, terminado o único curso de nossa vida terrestre (cf. Hb 9, 27), possamos entrar com Ele para as bodas e mereçamos ser contados com os benditos”.

Por isso, diz ainda a Sagrada Escritura: “A cada um, no dia de sua morte, o Senhor retribuirá, conforme as suas obras” (Ecl 11, 28). É o que Nosso Senhor repete sem cessar: desde que o homem se arrependa sinceramente dos pecados cometidos, por maiores que tenham sido, e receba o perdão divino, “entra no gozo do Senhor”.

Unicidade da vida terrestre, julgamento imediatamente depois da morte, recompensa ou castigo posterior, sem liberdade de vaguear pela erraticidade, sem promessa de novas vidas terrestres — eis o que Cristo opõe ao princípio reencarnacionista da pluralidade das existências; e eis também o que os reencarnacionistas não podem admitir na mensagem de Cristo. E eis, ainda, por que os espíritas não são cristãos.

Referências

  • Trecho extraído e levemente adaptado de Espiritismo: Orientação para Católicos. 9.ª ed., São Paulo: Loyola, 2014, pp. 104-106.

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