Hoje, a Igreja celebra a memória de São Damião de Veuster († 1889), o padre belga da Congregação dos Sagrados Corações, que saiu da Europa para evangelizar o arquipélago do Havaí. Esse sacerdote ficou conhecido por escolher passar o resto de seus dias na ilha de Molokai, uma porção de terra escolhida para isolar pessoas que tivessem contraído a doença da lepra. Ao partir para Molokai, Damião assinava, na verdade, a sua sentença de morte. Ele sabia que, uma vez na ilha dos leprosos, jamais tornaria a sair de lá. Mesmo assim, por amor às almas que aí estavam, passando no extremo sofrimento os seus derradeiros dias, ele foi.

A história a seguir, extraída de sua famosa biografia escrita por John Farrow, aconteceu antes mesmo que Damião partisse para Molokai, mas ilustra o fervor que já movia esse grande homem de Deus ainda enquanto jovem sacerdote.

As vicissitudes da natureza não eram o único obstáculo que o sacerdote tinha de enfrentar. Havia outros, menos evidentes, mas mais poderosos, e sem dúvida mais difíceis de vencer: continuavam a praticar-se na ilha os ritos pagãos e muitos dos fiéis de Damião se encontravam ainda sob a influência nefasta dos curandeiros nativos, que procuravam manter a sua identidade em segredo. Nos tempos antigos, esses feiticeiros, chamados kahunas, tinham constituído uma casta muito respeitada e temida, situada logo abaixo dos reis, a quem não se subordinavam.

Com efeito, apenas cerca de cinqüenta anos antes da chegada de Damião, o poder dos feiticeiros chegara a tal ponto que as ilhas estavam dominadas por uma infinidade de tabus [1], que seriam ridículos se não tivessem resultados trágicos. Um kahuna podia decidir da vida e morte de um homem e, como era crença geral que estava em constante comunicação com a sua divindade favorita, podia decretar um tabu por qualquer motivo. A única escapatória possível para quem transgredisse uma proibição dessas era fugir para uma cidade-refúgio, pois, tal como os antigos israelitas, também os havaianos possuíam redutos murados e cercados de templos, dentro de cujos limites podia abrigar-se qualquer pessoa, independentemente do crime que tivesse cometido.

Depois da morte de Kamehameha I [2], os reis passaram a opor-se ao poder dos kahunas e a casta dos feiticeiros entrou em decadência. Só nas regiões mais afastadas é que ainda aparecia ocasionalmente algum desses feiticeiros, formando ao seu redor um grupo de adeptos que praticava em segredo determinados ritos sinistros.

A certa altura, Damião percebeu indícios de que existia no seu distrito um desses grupos: chegaram-lhe rumores vagos acerca de feitiços, medos e exóticas e obscenas danças rituais, e à cabeceira dos moribundos começaram a aparecer amuletos e simpatias, sinais evidentes do trabalho de algum curandeiro. Embora se tivesse lançado numa vigorosa campanha, pregando contra a superstição e procurando descobrir a identidade dos sectários e os seus locais de reunião, não obteve resultado algum. Mesmo os seus paroquianos mais fiéis e dedicados assumiam um ar taciturno diante das suas perguntas, como se temessem alguma vingança sobrenatural, e o missionário teve de reconhecer, com grande tristeza, que o mal parecia estender-se, ao invés de diminuir. Rostos que antes se abriam num sorriso amistoso agora viravam-se de lado quando passava; muitos já não lhe respondiam aos cumprimentos; o número de assistentes à missa começou a decrescer e até nos funerais, quando encomendava o corpo, surpreendia às vezes uns olhares furtivos entre os presentes, como se se tivessem invocado outros poderes.

Certa noite, sentado à porta da sua casa para desfrutar da paz do entardecer, observava tranqüilamente o céu estrelado quando ouviu à distância uns tambores que soavam com uma nota estranha: não era o habitual toque festivo, mas um tantã rápido e inquietante, que se interrompeu abruptamente. O agudo silêncio que se seguiu foi cortado por um grito lancinante e inumano, e novamente o silêncio. Damião pôs-se de pé num salto e olhou alarmado na direção de onde viera o barulho, mas já vivera nas ilhas tempo suficiente para saber que era melhor não tentar nada durante a noite.

Na manhã seguinte, explorou meticulosamente os arredores e efetivamente encontrou, escondido numa moita de xaxins, um ídolo de pedra toscamente esculpido. Examinou-o com cuidado, à luz esverdeada que se filtrava através das frondes: as feições eram grosseiras e a figura obesa e atarracada; tinha cerca de um metro e vinte de altura e estava colocado sobre uma laje achatada, evidentemente um altar, salpicada de manchas escuras e pegajosas de sangue coagulado, sinais claros de um recente sacrifício sangrento. Tomado de horror, Damião aplicou os ombros contra a imagem e derrubou-a sobre o altar, que se despedaçou. A seguir, cortou dois galhos de uma árvore próxima e amarrou-os com um cipó, formando uma cruz tosca que cravou triunfalmente no mesmo lugar onde se erguera o ídolo. E, para que ninguém tivesse dúvidas sobre o autor do feito, deixou o seu chapéu de clérigo ao lado, bem à vista.

O dia seguinte era um domingo, e na homilia o sacerdote não mediu as palavras para denunciar os praticantes da idolatria. Era um desafio, e a reação não se fez esperar: na manhã seguinte, encontrou atado à sua porte um amuleto feito de uma concha retorcida de cinzas mal-cheirosas. Sabendo muito bem que o vilarejo inteiro estava pendente das suas menores ações, tomou a peça e, alardeando desprezo, amarrou-a ao rabo de um grande porco. Sem dar importância ao abracadabra que arrastava, o suíno fuçou e chafurdou por toda a aldeia naquele dia, à ruidosa maneira dos da sua espécie, mas durante a noite foi morto e deixado à porta de Damião, com a garganta aberta por um profundo corte serrilhado.

O missionário procurou levar o incidente para a brincadeira, mandando dizer que, apesar de o açougueiro não lhe ter parecido dos mais competentes, agradecia muito o presente anônimo da carne fresca. Mas os habitantes da aldeia não compartilhavam da sua tranqüilidade: ninguém ousou aproximar-se da carcaça e até o nativo que o ajudava nas tarefas da casa desapareceu quando Damião foi chamá-lo para esfolar o porco.

Tarde da noite, enquanto se remexia na cama, inquieto com o novo problema que minava e até ameaçava destruir todo o seu trabalho, o ruído distante dos tambores veio novamente interromper o fio dos seus pensamentos. Aguçou os ouvidos e percebeu um segundo som, como de alguém que arranhasse a sua janela. Do lado de fora estava uma mulher, uma criatura tímida e amedrontada, que conhecera tempos atrás por haver-lhe tratado o filho doente. Com a voz quase irreconhecível de pressa e de medo, ela sussurrou-lhe umas poucas palavras e depois, como que assustada com a sua própria ousadia, desapareceu de novo nas sombras antes de o sacerdote ter podido fazer-lhe qualquer pergunta. Mas tinha dito o bastante: numa caverna mortuária não longe dali, acabara de começar uma cerimônia de invocação dos espíritos malignos contra a vida do padre.

Damião vestiu-se e em poucos instantes estava a caminho do local, situado na base de um penhasco encravado no monte. Essa caminhada de cerca de uma hora pela mata fechada e no meio da mais absoluta solidão deve ter posto à prova os seus nervos indomáveis, mas em momento algum hesitou.

Ouvia-se o ritmo abafado dos tambores. A boca da caverna estava iluminada por um pálido clarão vermelho, que bruxuleava sobre as rochas vizinhas. Saindo das sombras da floresta, Damião aproximou-se da penha e, nesse momento, sobrepondo-se ao ruído dos tambores, ressoou um longo estertor agudo, como se algum animal estivesse sendo torturado. Os participantes da cerimônia deviam sentir-se seguros, pois não se viam sentinelas, e o sacerdote pôde chegar sem problemas à entrada da caverna e contemplar o espetáculo por detrás do enorme pedregulho.

No centro do recinto, fincadas no chão, erguiam-se quatro tochas altas e fumarentas. A sua luz vacilante permitia entrever um semicírculo formado por uns trinta homens de diversas idades, agachados ombro a ombro, o olhar voltado para as sombras do fundo da caverna, onde uma figura fantasmagórica, curvada como uma hiena, estava ocupada num trabalho que Damião a princípio não conseguiu distinguir. Em voz baixa, a criatura cantarolava monotonamente uma invocação. Por todos os lados, sobre pilhas de mortalha, viam-se restos humanos, ossos estranhamente brancos naquela obscuridade, espalhados numa confusão inextricável de caveiras, pernas e mãos desmembrados. O ar estava quase irrespirável e fedia a morte. À luz das tochas, as paredes negras brilhavam como carvões umedecidos.

A ladainha cresceu de tom e Damião, cujos olhos mais e mais se acostumavam à luz mortiça, reconheceu o feiticeiro, um certo Mauae, que gozava em toda aquela região da reputação de sábio e adivinho. Mirrado e de pele negra, sem nenhum dente e incrivelmente velho, não era uma figura grata de se ver, e muito menos naquelas circunstâncias. A certa altura, levantou-se e mostrou o corpo inerme de um cachorro cuja garganta tinha cortado. Segurando-lhe a cabeça em ângulo reto, deixou o sangue do animal escorrer para uma grande gamela e, depois de enchê-la, abandonou o cadáver e concentrou-se sobre a sua repugnante poção, balançando o corpo para frente e para trás ao som de uma cantilena, como se tentasse entrar em transe. Subitamente, a invocação cessou e o feiticeiro ergueu a mão, em sinal aos tamborileiros para que parassem.

O profundo silêncio que se seguiu, quebrado apenas pela respiração ofegante do mago, parecia quase sobrenatural e estava carregado de expectativa. A um segundo sinal, apagaram-se três das tochas e os olhos de todos, esgazeados de terror, fixaram-se obsessivamente na sombria figura do feiticeiro, que agora estendia a mão para além da carcaça degolada do cachorro e extraía da escuridão outro objeto, um tosco boneco de madeira cujo rosto fora pintado de branco e que vestia algo de parecido com uma batina preta. Em volta do seu pescoço pendia uma pequena cruz de madeira, e em torno da cintura trazia um terço cuja falta Damião sentira havia algum tempo. Sem sombra de dúvida, o boneco pretendia ser uma efígie do sacerdote, e o feiticeiro fez-lhe umas caretas enquanto se voltava para a sua sangrenta gamela.

Damião entrou em ação. Sem uma única palavra, lançou-se no meio dos assistentes, e estes, atordoados pelo súbito aparecimento, ficaram momentaneamente paralisados. Mas logo um urro uníssono se ergueu de todas as gargantas e o grupo tentou avançar sobre ele. Enraivecido, o missionário fez sem querer a coisa mais conveniente de todas: arrancou o boneco das mãos de Mauae e, com um safanão, lançou o feiticeiro para longe, fazendo-o derrubar a gamela, cujo conteúdo se espalhou numa grande mancha escura. Ao verem o sangue derramado, os nativos detiveram-se imediatamente e caíram num silêncio pasmo, enquanto presenciavam um espetáculo que não esperavam: o sacerdote fazia em pedaços a efígie. Nos seus rostos, o ódio deu lugar ao medo e depois à perplexidade. Esperavam que uma terrível catástrofe se abatasse sobre o homem branco que se atrevia a destruir o boneco mágico, mas nada de grave aconteceu; em vez dos trovões dos espíritos irados, só se ouvia uma torrente de imprecações vindas da figura agachada do feiticeiro, que, tendo-se esgueirado para a escuridão do fundo, morria visivelmente de medo do padre.

Damião perscrutou os rostos escuros que o cercavam, lendo-lhes os pensamentos. Os pais desses homens haviam praticado os mais horrendos sacrifícios humanos sob as ordens dos seus kahunas, e nas suas aldeias ainda viviam anciãos que se vangloriavam de ter visto a carne do capitão Cook [3] queimada sobre os altares; se aqueles nativos continuassem a ter a menor ponta de fé no autor do estúpido ritual a que acabavam de assistir, era muito provável que dessem a Damião o mesmo fim que tivera o descobridor. Mauae tinha de ser completamente desacreditado.

Com um movimento de braços repentino e violento, que fez os kanakas recuarem alarmados, o sacerdote dispersou pelo chão com desprezo os restos do boneco. "Por acaso vocês são crianças, para terem medo de um boneco e do sangue de um cachorro?", perguntou-lhes com desdém. A seguir, calcando a cabeça do fetiche na lama, demonstrou-lhes de maneira irrefutável que nenhum mal lhe podia advir dos maus espíritos, por mais que os insultasse. Os rostos tensos assumiram um ar de dúvida e a seguir de vergonha, e ninguém tentou detê-lo quando se encaminhou para a saída, depois de lhes dizer que aquele lugar infecto não era próprio de homens de bem e que deviam retornar para as suas esposas e filhos. A passos largos, o sacerdote regressou a casa, feliz com a vitória alcançada.

Depois desse incidente, quase ninguém ousou opor-se à sua pessoa. Em breve, toda a paróquia fervilhava de atividade.

Referências

  • John Farrow, Damião, o leproso (trad. de Antonio F. Amado). São Paulo: Quadrante, 1995, pp. 68-74.

Notas

  1. Atualmente, a palavra tabu significa simplesmente "algo que é proibido", mas a sua origem está ligada a proibições religiosas que acarretavam maldições para as pessoas que as descumprissem, como se pode depreender do próprio texto.
  2. Kamehameha I foi o primeiro monarca a governar o Reino do Havaí. Curiosamente, foi o seu nome que deu origem ao famoso golpe dos personagens do desenho Dragon Ball.
  3. O capitão James Cook foi o primeiro explorador e cartógrafo europeu a entrar em contato com o arquipélago do Havaí, em 1776. O navegador morreu três anos depois, vítima dos nativos havaianos.

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