Sem sombra de dúvida, um grande desafio a ser encarado por todas as pessoas que já estão (teoricamente) caminhando com Deus é o de viver não segundo a carne, mas segundo o Espírito Santo. Às vésperas que estamos da grande solenidade de Pentecostes, poucas reflexões são tão necessárias quanto essa.

É trágico, de fato, que haja tanta gente “de igreja”, batizada, indo à Missa e até confessando e comungando com frequência, mas sem que suas vidas tomem impulso, sem que seus corações sejam mudados, sem que se note algo de real e substancialmente diferente em suas conversas e condutas. Sem o Espírito Santo, os católicos são como sal que não salga, luz que não ilumina, e em nada parecem diferir dos demais homens.

Consideremos nestas linhas, por exemplo, como nada pode haver de mais deplorável do que estarmos na Igreja apenas “de corpo presente”, mas com a alma em pecado mortal — sem dúvida, a ilustração mais crua do que é viver segundo a carne. Sim, porque as pessoas nesse estado não só não vivem segundo o Espírito, como aborrecem esse mesmo Espírito, não o têm em suas almas. Em suas vidas, o que sobressai é justamente o oposto: o espírito maligno, o espírito das trevas. Nas palavras do Apóstolo:

Digo, pois: deixai-vos conduzir pelo Espírito, e não satisfareis os apetites da carne. Porque os desejos da carne se opõem aos do Espírito, e estes aos da carne; pois são contrários uns aos outros… Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus!... Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências. Se vivemos pelo Espírito, andemos também de acordo com o Espírito (Gl 5, 16-17.19-21.24-25).

São Paulo está dizendo com muita simplicidade: não é possível ser ao mesmo tempo de Deus e do demônio, e nesta matéria não há meio-termo. Ou se está com Cristo, ou se está longe dEle (cf. Mt 12, 30). Os pecados que ele enumera, de modo especial, têm uma característica em comum: são, em sua maioria, pecados externos, que realmente “separam” os cristãos, destroem a ilusão de que eles podem ser “como todo o mundo”, estabelecem uma espécie de “limite” que quem deseja ser de Cristo não deve ultrapassar. Trata-se de obras carnais as mais grosseiras, por assim dizer, e quem quer que as pratique não só não tem o Espírito Santo, adverte o Apóstolo, como não herdará o Reino de Deus

Como comentário a essa passagem tão contundente das Escrituras, atentemo-nos ao que diz São João d’Ávila em um de seus sermões:

Que quereis? O Espírito Santo? Pois sabei que Ele não é amigo da carne [...].

Desenganem-se os amancebados, desenganem-se os carnais, que a nenhum deles virá o Espírito Santo. A pomba que saiu da arca de Noé tomou um raminho de oliveira e não quis pôr o pé sobre corpo morto; voltou limpa à arca. O corvo come a carne morta; a pomba detesta-a. A pomba é figura do Espírito, e o Espírito Santo não toca em carne morta. Limpai, pois, vossos corações dos desejos carnais. Jejuai nesta semana os que tiverem forças para isso; pois, já que quer carne, seja a carne mortificada e com jejuns enfraquecida. E como alvíssara e favor vo-lo peço, varrei com muita devoção a vossa casa mediante a confissão, pois há de vir vosso Hóspede, e não convém que encontre suja a casa [1].

A mensagem deste Doutor da Igreja é muito clara, tão clara que dispensa maiores comentários. Se não fugirmos das obras da carne, será impossível receber o Espírito Santo. Sem isso, não haverá Pentecostes em nossas vidas.

Expliquemos, antes de mais nada, que é o próprio Espírito que inspira a alma a buscá-lo e a evitar o pecado, de modo que a inspiração mesma de procurar fazer a vontade divina só acontece por obra da graça. Deus busca a todos, não privando ninguém do auxílio necessário para a própria salvação. Mas na alma daquele que corresponde a esse chamado de Deus acontece uma união que não acontece na alma em que se extinguiu a chama da caridade. Nas palavras do Papa Leão XIII, explicando o mistério da inabitação trinitária: “Também no homem perverso podemos deparar reflexos do poder e sabedoria de Deus; mas só o justo participa do amor divino, característica do Espírito Santo” [2].

Concentremo-nos, porém, nestas palavras do santo: “Desenganem-se os carnais”. Se ele diz “desenganem-se”, é porque andam enganados os que vivem segundo a carne: estão como que com os olhos vendados, são incapazes de ver a realidade, encontram-se aprisionados longe da verdade. Talvez os seus pecados lhes tenham inclusive cegado a mente, como Santo Tomás de Aquino diz que sói acontecer com quem vive na carne, especialmente com quem se entrega aos pecados sexuais (cf. STh II-II, q. 15, a. 3).

Mas de que modo andam enganados os carnais? Com o que eles se enganam? Perguntando com mais propriedade: com o que tantos de nós mesmos nos enganamos?

Nossa falta de fé no que ensina a Igreja nos denuncia com muita facilidade: encontramo-nos iludidos com “novas” doutrinas que não a de Cristo, possuídos por um “espírito” que, ousaríamos dizer, de santo não tem nada.

Vejamos por exemplo como tantos hoje se dizem porta-vozes do Espírito Santo, ao mesmo tempo que se esquecem de uma verdade elementar: só se tem o Espírito de Cristo na medida em que se ama o Corpo de Cristo, que é a Igreja [3]; falam tanto do novo, mas se esquecem que “a novidade nunca foi por si mesma um critério de verdade, e só pode ser louvável quando confirma a verdade e leva à retidão e à virtude” [4]; falam tanto de “renovação” — pois, de fato, o Espírito vem renovar a face da terra (cf. Sl 103, 30) —, mas se esquecem do que disse Jesus antes de subir aos céus: “O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome [...] vos recordará tudo o que vos tenho dito” (Jo 14, 26).

Ou seja, a terceira Pessoa da Santíssima Trindade não viria aos homens para lhes ensinar nada de diferente do que havia ensinado Nosso Senhor. (Era o que faltava, afinal, a Trindade contradizer a própria Trindade!) Se há um tal “espírito”, não é o Espírito Santo; está mais ou para um “espírito revolucionário”, que perverte a doutrina e mantém as pessoas no egoísmo de seus pecados, ou para um “espírito de confusão”, que obscurece a doutrina, mas cujo resultado prático é o mesmo.

Por que tantos se rendem a essas “novidades” não é difícil compreender: quem vive na carne e não quer deixar de viver segundo a carne, para justificar seus comportamentos, precisa recorrer a algum subterfúgio. “Quem não vive conforme aquilo em que acredita”, diz um velho adágio, “termina acreditando no modo como vive”.

O que aparece, então? A ilusão da “graça barata”, do Deus que tudo aceita, que com tudo condescende e que a todos salvará. O Espírito consolador do Evangelho é transformado, assim, em um ente abstrato que vem para afagar os nossos sentimentos, ao invés de nos chamar ao que realmente importa, e que constitui a essência da vida cristã: nossa conversão.

Nesse ponto pessoas até bem intencionadas terminam perdendo de vista o essencial. Até com o fim de não “causar problemas”, elas falam do Divino Espírito Santo exclusivamente como Doador de dons carismáticos extraordinários  — as graças chamadas gratis datae —, mas o mais importante, que é a vida de união com Deus, é solenemente ignorado.

Talvez lhes fosse necessário recordar que o Espírito Santo é o Espírito das profecias, é o Espírito das línguas, é o Espírito das curas, sim; mas é também — e principalmente — o Espírito da conversão e da mudança de vida. Porque, não nos esqueçamos, o máximo milagre de Deus é a justificação do pecador (muito mais do que falar línguas estranhas, operar curas físicas e profetizar). Como explica o Doutor Angélico (STh I-II, q. 111, a. 5):

O Apóstolo, depois de enumerar as graças gratis datas (cf. 1Cor 12, 4-11), acrescenta: “Vou mostrar-vos um caminho ainda mais perfeito”. E como fica claro pelo que segue, fala da caridade que se refere à graça que torna agradável a Deus. Portanto, a graça que torna agradável a Deus é superior à graça gratis data [...].

Uma virtude é tanto mais excelente na medida em que se ordena a um bem mais elevado. Pois sempre o fim está acima daquilo que é apenas um meio em vista do fim. Ora, a graça que torna agradável a Deus ordena o homem imediatamente à união com o fim último. As graças gratis datae, ao contrário, ordenam o homem ao que é uma preparação para o fim último. Assim, a profecia, o milagre e tudo o que é do mesmo gênero nos levam ao que une ao fim último. Eis por que a graça que torna agradável a Deus é bem superior à graça gratis data.

Dizendo bem claramente, nós, que temos pedido tanto a efusão do Espírito Santo com orações, canções e pedidos de carismas, em que medida temos procurado realmente viver segundo o Espírito, dando o primeiro passo de abandonar as obras da carne, que lhe são contrárias? Importa muito que o amor que certos grupos e movimentos dentro da Igreja mantêm ao Espírito Santo — ouçamos o conselho do Papa Leão XIII, muito próximo da Beata Elena Guerra — “não se limite a umas áridas noções teóricas e a uma homenagem puramente exterior, mas que se distinga pela pronta ação, principalmente pela fuga do pecado, o qual de modo muito particular ofende o Espírito Santo” [5].

Se acreditamos, pois, que o Espírito de Deus realmente intervém na história humana, que Ele realmente age na vida das pessoas, qual é o principal fim com que Ele atua, senão para nos levar à vida divina, à vida da graça, à vida sobrenatural? E como chegaremos aí se continuarmos afundados na lama do pecado mortal, sem fazer uma Confissão sincera, bem feita e com um propósito firme de emenda? Como o Espírito agirá em nós se continuarmos fingindo clamorosamente ser espirituais, enquanto, no fundo, vivemos na carne?

— Que quereis? O Espírito Santo? — pergunta-nos São João d’Ávila. — Pois sabei que Ele não é amigo da carne.

Nunca se insistirá o suficiente nisso. Nós, católicos, não somos protestantes, que nos acreditamos salvos por uma imputação jurídica, ainda que nosso coração esteja podre, apegado ao pecado e aferrado ao mal… Não, a graça realmente opera uma transformação em nossa alma e, a menos que procuremos com sinceridade conformar o nosso coração ao que Deus quer de nós (ao invés de tentarmos encaixar Deus em nossos esquemas humanos), não acontecerá em nós a salvação que o Espírito Santo quer operar em nossa alma.

Fujamos, pois, da tentação de um “espiritualismo” sem doutrina, autorreferencial, inventado por nós mesmos. Uma religião assim não salva verdadeiramente; só engana. Ser de fato guiado pelo Espírito Santo significa ser transformado profundamente por Ele, significa não se deixar arrastar pelo que enumera o Apóstolo: “fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias”. Se estivermos nessas coisas, ainda que clamemos mil vezes o Espírito Santo, ainda que cantemos, ainda que nos agitemos, não haverá Pentecostes em nossas almas.

Por isso, aproveitemos a solenidade que se aproxima e fujamos das obras da carne. Convertamo-nos. Desfaçamo-nos de nossa cegueira. “Se viverdes segundo a carne, haveis de morrer”, diz o Apóstolo, “mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis, pois todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8, 13-14).

“Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”. Mas quem não é conduzido pelo Espírito é simplesmente… carne morta. E à carne morta só o que resta é entregar aos corvos.

Não seja esse o nosso destino.

Referências

  1. Quem não tem o Espírito de Cristo não é de Cristo, Sermão no Domingo da infra-oitava da Ascensão, 29 de maio de 1552, in: Sermões do Espírito Santo, trad. Roberto Leal Ferreira, São Paulo: Molokai, 2018, pp. 57-58.
  2. Papa Leão XIII, Carta Encíclica Divinum Illud Munus (15 de maio de 1897), n. 16.
  3. Cf. Santo Agostinho, In Evangelium Ioannis, t. 26, 13 (PL 35): “Queres pois viver também tu do Espírito de Cristo? Faz-te, portanto, membro do Corpo de Cristo.”
  4. Papa Pio XII, Carta Encíclica Menti Nostrae (23 de setembro de 1950), n. 110.
  5. Papa Leão XIII, op. cit., n. 22.

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