Podemos adorar o Preciosíssimo Sangue de Cristo?

A pergunta pode parecer ociosa a quem tenha fé católica, mas oferece-nos, em todo o caso, a oportunidade de esclarecer alguns mal-entendidos que hoje circulam, mesmo entre os fiéis, a respeito desta e de outras práticas devocionais tão caras ao povo cristão. A pergunta adquire ainda maior interesse se abordada neste mês de julho, em que a Igreja procura estimular no coração de seus filhos o culto ao Sangue do Redentor, cuja propagação experimentou fortes incrementos a partir da primeira metade do século XVIII. Para responder-lhe na ordem adequada e, desse modo, acordar em nosso ânimo a honra e estima em que devemos ter o culto ao caríssimo preço da nossa Redenção, convém repassar em primeiro lugar o que a fé católica nos ensina sobre a adoração devida a Cristo [1].

1.º) É ponto pacífico que devem adorar-se com a mesma adoração tanto a humanidade quanto a divindade de Nosso Senhor. Trata-se de uma verdade revelada e definida pela autoridade da Igreja em mais de uma ocasião [2].

A razão teológica que a corrobora é bastante clara. De fato, a honra em que consiste a adoração é dirigida própria e primariamente à totalidade da pessoa, e não a seus pés e mãos, por exemplo, a não ser na medida em que por tais membros ela é honrada como um todo. Ora, em Cristo há uma única pessoa, na qual se encontram unidas duas naturezas. Portanto, a ele deve tributar-se uma só adoração. Mas como a pessoa do Verbo encarnado subsiste em duas naturezas, inseparáveis e indivisas, a causa desta única adoração é dupla: de um lado, a divindade tem de ser adorada em si e por si mesma; a humanidade, de outro, por encontrar-se hipostaticamente unida ao Verbo divino. Eis porque decretou o II Concílio de Constantinopla:

Se alguém diz que Cristo é adorado em duas naturezas, introduzindo com isto duas adorações […], sem venerar com única adoração o Deus Verbo encarnado junto com a sua carne, como a Igreja de Deus recebeu por tradição desde o início: seja anátema. [3]

2.º) Disto se segue que a humanidade de Cristo pode e deve ser adorada com adoração de latria, consistente num ato da virtude da religião pelo qual manifestamos a Deus, em sinal de submissão, a honra e a reverência que ele merece em razão de sua infinita excelência como Senhor e Criador de todas as coisas.

A razão disso, como dissemos acima, é que a honra da adoração se dirige à pessoa como um todo. Ora, visto que a pessoa a que está unida a humanidade de Cristo é divina, também a essa humanidade se deve a mesma adoração com que é honrado o Verbo que a assumiu. Nesse sentido, "adorar a carne de Cristo nada mais é do que adorar o Verbo de Deus encarnado" [4]. Há que ter em mente, contudo, que este culto latrêutico é prestado à humanidade do Senhor em razão, não de si mesma, mas da divindade a que ela está unida. É por isso que diz São João Damasceno: "Tendo-se encarnado o Deus Verbo, adora-se a carne de Cristo, não por si mesma, mas por ter-se unido a ela segundo a hipóstase o Verbo de Deus" [5].

3.º) Nada disso impede — antes, pelo contrário, autoriza-o — que prestemos o mesmo culto de adoração com que honramos a pessoa do Filho de Deus encarnado tanto às suas imagens quanto às partes de sua nobilíssima natureza humana. Não porque esse culto nelas se encerre e termine, mas porque por meio delas se dirige e chega à própria pessoa do Verbo: nas imagens, tendendo ao objeto por elas representado; nas partes do corpo do Senhor, adorando ao Deus que delas se serviu para nos redimir.

É por esse motivo que a Igreja sempre teve em alta conta a devoção ao Sacratíssimo Coração de Jesus, que, por "estar unido hipostaticamente à pessoa do Verbo de Deus" e ser "o índice natural […] da sua imensa caridade para com o gênero humano", merece que lhe seja tributado o culto de adoração a que têm direito todos os "membros adoráveis do corpo" de Nosso Senhor [6].

Fica assim patente que, do mesmo modo que a partir "do elemento corpóreo que é o Coração de Jesus Cristo e do seu natural simbolismo" [7] é legítimo adorar a excelentíssima caridade do Filho de Deus feito homem, assim também é verdadeiro, santo, oportuno e piedoso o costume tantas vezes secular de oferecer as devidas homenagens de adoração ao Preciosíssimo Sangue que o Verbo encarnado foi impelido a derramar por amor a nós, "desde o oitavo dia do seu nascimento, e depois, com superabundância, na agonia do horto (cf. Lc 22, 43), na flagelação e na coroação de espinhos, na subida ao Calvário e na crucifixão, e, enfim, da ampla ferida do seu lado" [8], da qual nasceu a Igreja e manaram os sacramentos da Nova Aliança. Porque se o objeto deste culto é, efetivamente, o Sangue físico e material do Salvador, enquanto inseparavelmente unido à divina pessoa do Filho encarnado e preço sensível do nosso resgate, o seu motivo não é senão a infinita dignidade do Verbo divino a que este Sangue se encontra unido segundo a hipóstase, além do valor inestimável de sua vida, entregue em holocausto de amor para reparar a justiça divina, ultrajada pelo pecado, e resgatar da sujeição à morte eterna todos quantos haviam de deixar-se alvejar pela Seiva adorável sem a qual não pode haver Redenção.

Que ao longo deste mês de julho possamos dar ouvidos à paternal advertência de São Pedro, que nos manda viver "com temor durante o tempo da vossa peregrinação. Porque vós sabeis que não é por bens perecíveis, como a prata e o ouro, que tendes sido resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição de vossos pais, mas pelo precioso sangue de Cristo, o Cordeiro imaculado e sem defeito algum" (1Pd 1, 17ss).

Deixando-nos reformar intimamente pela graça que nos foi conquistada ao preço da vida do Homem-Deus, glorifiquemos ao Senhor no nosso corpo (cf. 1Cor 6, 20) e lhe tributemos todos os dias o preito de nossa devoção e gratidão, a ele que nos remiu por seu Sangue adorável e vive e reina à direita do Pai pelos séculos dos séculos. Amém.

Referências

  1. As explicações aqui apresentadas baseiam-se em Tomás de Aquino, S. Th. III, q. 25, aa. 1-2 e R. Garrigou-Lagrange, De Christo Salvatore. Turim: Pontificium Institutum "Angelicum", 1945, pp. 379-382.
  2. Cf., por exemplo, Concílio de Éfeso, Carta "Τοῦ σωτῆρος ἡμῶν" (= 3.ª carta de Cirilo de Alexandria a Nestório), de nov. 430, n. 8 (DH 259); Vigílio, Constituição "Inter innumeras sollicitudines", de 14. mai. 553, n. 5 (DH 420); Pio VI, Constituição "Auctorem fidei", de 28 ago. 1764, nn. 61․63 (DH 2661․2663).
  3. II Concílio de Constantinopla, 8.ª sessão, de 2 jun. 553, cân. 9 (DH 431).
  4. Tomás de Aquino, S. Th. III, q. 25, a. 2, resp. (v. também S. Th. III, q. 58, a. 3, ad 1; III Sent., d. 9, q. 1, a. 2, ql. 1․4, ad 1; Ad Galatas, c. 4, l. 4.). Trad. port. coordenada por Carlos-Josaphat P. de Oliveira. 2.ª ed., São Paulo: Loyola, 2002, p. 386.
  5. De fide. orth., 4․3 (PG 94, 1105B).
  6. Pio XII, Encíclica "Haurietis Aquas", de 15 mai. 1956, n. 12 (AAS 48 [1956] 316). Trad. port. da Poliglota Vaticana. São Paulo: Paulus, 1998 (col. "Documentos da Igreja", vol. 5), p. 749.
  7. Id., n. 58 (AAS 48 [1956] 343), p. 780.
  8. João XXIII, Carta Apostólica "Inde a primis", de 30 jun. 1960, n. 10 (AAS 52 [1960] 548).

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