Este poema de Dom Marcos Barbosa “Em louvor da Natividade” é de 1963 e consta em sua obra “Poemas do Reino de Deus”. É dedicado a Nossa Senhora, por ocasião de seu nascimento neste mundo, festa que a Igreja comemora a 8 de setembro — nove meses depois da Imaculada Conceição. (Do mesmo autor, e honrando o mesmo evento, já publicamos aqui “Pelos dias dos teus anos”.)

Dom Marcos é natural de Cristina (MG), foi monge beneditino (daí o “dom” que lhe precede o nome), esteve diretamente envolvido na tradução brasileira do Ofício Divino, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras em 1980 e faleceu em 1997. Sua poesia era apreciada por nomes como Gustavo Corção e Cecília Meireles. 

Para facilitar a compreensão de alguns termos do poema, enriquecemo-lo de notas, as quais se encontram logo abaixo do texto em verso.


Em louvor da Natividade

Nossa Senhora menina
nasceu de Ana e Joaquim,
do beijo que ambos trocaram
em frente à Porta Dourada [i].

Giotto conta em quadrinhos
essa história comovente [ii],
e a lenda vira verdade
pelos séculos afora.

Nos velhos corpos estéreis
passa de repente um frêmito
e brota a rosa menina
do negro tronco rugoso.

Branca de Neve, que outra
terá sido assim tão branca,
e qual terá despertado
ao beijo de maior Príncipe?

A obscura Cinderela,
nascida sem ruga e mancha,
com seu pé tão pequenino
esmaga a cruel serpente.

Maria-não-vai-com-as-outras,
após João vai marcando
com o pão descido do céu
a estrada que leva ao Pai [iii].

Ó Raquel, Ester, Judite [iv],
o velo de Gedeão [v],
todo orvalhado de graça,
enxuto de toda culpa!

Todos para ti se voltam,
os povos buscam teu rosto,
ó flor nascida em setembro
e ressurgida em agosto [vi].

Os anjos que te colheram [vii]
levaram-te em tuas mãos
com os dedos e as almas trêmulas,
tamanha a tua beleza!

Salve, arca da Aliança [viii],
salve, esposa dos Cantares [ix],
poeta do Magnificat,
ave da Ave-Maria!

O sol te serve de túnica,
doze estrelas te coroam [x],
o rosário é teu roteiro,
o arco-íris é tua porta [xi].

Maria, escrava nascida
na humilde terra dos homens,
toma posse da coroa,
preparada antes da aurora.

De ti nos falam as fontes,
os jardins são tua imagem,
as nuvens são o teu trono,
a lua teu escabelo. 

Salve Rainha, escrava
de Deus e de todos nós [xii],
mãe dos homens, mãe da Igreja,
mãe do Cristo, minha mãe! 

Mãe nossa, que estás no céu,
mas que sempre nos visitas,
aparecendo entre as águas
ou na fenda dos rochedos [xiii]…

Referências

  • Dom Marcos Barbosa, Poemas do Reino de Deus. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, pp. 116-117.

Notas

  1. A Porta Dourada é uma das aberturas de acesso à Cidade Velha de Jerusalém. Segundo o Protoevangelho de São Tiago, Sant’Ana e São Joaquim teriam se encontrado em frente a essa porta logo após descobrir que Ana estava grávida de Nossa Senhora. São várias as obras de arte retratando esse episódio, tenha ele acontecido de fato ou não.
  2. No século XIV, um paduano chamado Enrico Scrovegni comissionou o artista italiano Giotto di Bondone para encher de afrescos todo o interior da capela de sua família. O projeto incluía o relato da vida de São Joaquim e concepção de Nossa Senhora, tal como no-lo contam os apócrifos.
  3. Dom Marcos Barbosa recorre, aqui, a três conhecidos contos de fadas para falar de Maria, superior a todos eles. A Branca de Neve é contrastada com a alvura sem igual da Mãe de Deus; seus pés, que derrotam o inimigo, são maiores que os da Cinderela, igualmente decisivos na história fantástica; e no fim são lembrados João e Maria: como os dois irmãos da história marcam o caminho de volta para casa com pedaços de pão, João Evangelista, que registrou o discurso do pão da vida (cf. Jo 6), e Maria, que passou a conviver com o Apóstolo após a morte do Filho (cf. Jo 19, 25ss), marcam para nós, com a Eucaristia, “a estrada que leva ao Pai”.
  4. Raquel, Ester e Judite são as mulheres do Velho Testamento que prefiguram, cada uma a seu modo, a Santíssima Virgem. A primeira deu à luz José, traído e vendido por seus irmãos, mas salvação de todos eles no final — e nisso é figura de Maria, que gerou o Salvador do mundo, traído por Judas e também por ele vendido. A segunda intercedeu junto ao rei Assuero em favor do povo hebreu, prestes a ser destruído — e nisso é figura de Maria, que intercede junto a Deus “por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte”. A terceira salvou os judeus da invasão estrangeira, cortando a cabeça de Holofernes, seu líder — e nisso é figura de Maria, que esmagou a cabeça de Satanás e nos livrou de seu cativeiro.
  5. No Livro dos Juízes, Gedeão pede a Deus um sinal de que vai vencer seus inimigos, e este sinal é justamente o “velo”, um pedaço de lã de ovelha: “Gedeão disse a Deus: ‘Para saber se vais salvar Israel por minha mão, como prometeste, vou estender esta pele de lã na eira. Se o orvalho cair sobre a lã e o resto do chão ficar seco, saberei que salvarás Israel por minha mão, como prometeste’. E assim aconteceu” (Jz 6, 36-38).
  6. A Natividade de Nossa Senhora é em 8 de setembro, mas sua glorificação é em 15 de agosto, festa de sua Assunção. A ressurreição de Maria não é contemplada no dogma que Pio XII proclamou em 1950, mas é a “sentença mais comum” dos teólogos. “Ainda que nos faltem notícias históricas fidedignas a respeito do lugar (se em Éfeso ou Jerusalém), tempo e circunstâncias da morte de Maria, a quase universalidade dos padres e teólogos supõem a realidade efetiva de sua morte, que além de tudo é atestada expressamente pela liturgia” (Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática. 5. ed. Barcelona: Herder, 1966, p. 325).
  7. Isto é: “que te colheram” da terra e te conduziram ao Céu, na Assunção.
  8. A Arca da Aliança é uma das principais figuras de Maria no Antigo Testamento, pois nela estavam guardadas as tábuas da Lei, o maná com que os hebreus foram alimentados no deserto e a vara de Aarão (cf. Hb 9, 4). A Virgem Santíssima, por sua vez, trouxe no seio o próprio Autor da Lei, Pão do Céu e Sacerdote da Nova Aliança.
  9. Os Cantares, ou Cântico dos Cânticos, são o livro bíblico que prefigura a união entre Cristo e sua Igreja. Maria, como alma fiel a Jesus, é o cumprimento místico mais perfeito da esposa dos Cantares.
  10. Referência clara ao Apocalipse de São João (c. 12).
  11. Como o arco-íris foi sinal da aliança de Deus com Noé, Nossa Senhora é Medianeira de todas as graças, levando aos homens os favores divinos.
  12. Diz-se que Maria é nossa escrava no sentido de que nos presta favores, de que realiza serviços para nós. Sua servidão fundamental, no entanto, é a Deus, como ela mesma declara na Anunciação: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra”.
  13. A imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi pescada em 1717 nas águas do Rio Paraíba do Sul. E em Pesqueira, Pernambuco, Nossa Senhora das Graças apareceu a duas jovenzinhas justamente na fenda de uma penha.

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