[Este texto não foi escrito pelo Pe. Paulo Ricardo. É de autoria do Pe. John Zuhlsdorf e foi traduzido e levemente adaptado por nossa equipe para esta publicação.]

Um leitor pergunta se “é pecado pedir a Deus para derrubar um inimigo da Igreja”.

Nosso Senhor Jesus Cristo nos mandou amar os nossos inimigos (cf. Mt 5, 44).

O amor ao “inimigo” tem diferentes formas. Pode ser demonstrado de diferentes maneiras. Todos nós sabemos o quão “duro” pode ser o amor.

Isto posto, devemos ficar atentos para ser capazes de resistir vigorosamente ao ódio para com nossos inimigos. Somos obedientes a Nosso Senhor.

Se são nossos inimigos porque se opõem à Igreja, à bondade, nosso amor por eles significa que lhes desejamos a conversão. Quando se converterem (se realmente o fizerem), teremos de estar preparados, não para esquecer, mas para perdoar. Quando ensinou os discípulos a orar, o assunto retomado pelo Senhor foi a necessidade de perdoarmos, pois, se não o fizermos, não seremos perdoados.   

Eu perdoo os meus inimigos. Eu perdoo a você o que fez comigo. Perdoo-lhe os atos malignos contra a fé. Converta-se ou arrisque-se a ir para o inferno. Prefiro vê-lo no céu. Por isso, rezo para que Deus lhe envie exatamente o que é melhor para a sua alma. Rezo para que você o aceite. Ele conhece a todos nós muito melhor do que nós mesmos nos conhecemos.

Amar os nossos inimigos significa desejar o bem deles, isto é, a salvação.

Há muitos inimigos. Eles são pessoas (humanas e angélicas). Anjos não podem mudar de opinião; portanto, é inútil rezar por anjos caídos.

Seres humanos vivos podem mudar, e é nossa obrigação rezar por eles.

Nós podemos — ou devemos — rezar para que Deus derrube os inimigos da Igreja? 

Sim.

Vejamos o livro dos Salmos.

Os antiquados “salmos imprecatórios” (5, 6, 11, 12, 35, 37, 40, 52, 54, 56, 58, 69, 79, 83, 137, 139 e 143) pedem que juízo e desastre caiam sobre os inimigos de Deus e do povo de Deus.

Alguns dos “salmos imprecatórios” foram editados ou completamente excluídos do Saltério revisto utilizado na Liturgia das Horas do Novus Ordo, mas este é outro assunto.

Quando rezados, esses salmos provavelmente levarão o cristão contemplativo às lágrimas e ao verdadeiro temor reverente a Deus, pois ele sabe que somos todos pecadores e dependemos completamente da graça de Deus.

A Sagrada Escritura está cheia de orações oferecidas pela derrota dos inimigos de Deus. Alguns vão dizer de forma precipitada que eram outros tempos, que aquilo faz parte do Antigo Testamento e que agora estamos no Novo Testamento. Pessoas assim são virtualmente marcionitas [i].

Não há dúvida de que temos o direito de usar os salmos em nossas orações. Todos eles.

Sabe de uma coisa? A vida é difícil, e há perigos para nós na Igreja Militante, neste vale de… de que era mesmo tal vale? “Gemendo e chorando neste vale de… de… de… abraços, de gatinhos e margaridas fofas! É isso!”

Realmente existem inimigos das coisas boas, verdadeiras e belas que querem nos fazer mal.

Há muitas orações tradicionais que pedem a Deus que envie uma calamidade aos nossos inimigos, não por ódio ou vingança, mas por causa do desejo legítimo pela paz e pelo bem deles. A verdadeira caridade almeja o bem do outro. Portanto, às vezes desejamos que ocorra uma calamidade com alguma pessoa, se é isso o necessário para que ela se converta e emende de vida.

Isso é forte. Não estamos acostumados atualmente a esse tipo de coisa.

Por exemplo, no Missal tradicional existe a Missa pro defensione ab hostibus, isto é, “para pedir defesa contra os inimigos”. Eis a minha tradução da Coleta:

Hóstium nostrórum, quaésumus, Dómine, elíde supérbiam: et eórum contumáciam déxterae tuae virtúte prostérne. — Nós vos pedimos, Senhor, que destruais o orgulho dos nossos inimigos e, pelo poder de vossa destra, lanceis por terra a insolência deles.
“Se respondi mal, mostra em quê, mas, se falei bem, por que me bates?” — “Jesus ante o sumo sacerdote”, de Gerard van Honthorst.

Como o Senhor diz que devemos “dar a outra face”, alguns podem apresentar a seguinte objeção: deveríamos simplesmente permitir que sejamos atacados, permitir que o malvado ganhe notoriedade na Igreja e abuse dos fiéis, pervertendo sua doutrina e sua liturgia. Mas uma coisa é oferecer a própria face. Outra é oferecer a face da esposa, dos filhos e de todos os próximos, irmãos e irmãs da fé.  A depender do estado de vida da pessoa, alguns devem se erguer e resistir.     

Poderíamos argumentar que, ao adotar uma postura mais passiva, como se fôssemos um cordeiro diante dos tosquiadores (cf. Is 53, 7), tornamo-nos mais semelhantes a Cristo? Com certeza. Há não muito tempo, recebi um e-mail que sugeriu que Bento XVI renunciou ao seu ministério ativo na Igreja, que finalmente “fugiu dos lobos”, precisamente porque ao fazê-lo os lobos e suas tramas cruéis seriam expostos à luz do dia. De modo semelhante, no romance de Robert Graves Eu, Claudius, Imperador, o velho imperador não faz nada para interromper as vis pilhagens do emergente Nero precisamente porque sabia que, quando as pessoas vissem quem ele realmente era, se levantariam e restaurariam a República. “Que apareçam todos os venenos escondidos na lama”. Naturalmente, era uma fantasia. O plano não funcionou [ii].  

Independentemente das circunstâncias, podemos e devemos rezar e jejuar por nossos inimigos e contra eles: por sua conversão e contra seus planos. Rezamos pela proteção da nossa Santa Madre Igreja contra todos os inimigos. Rezamos para que os que a ela se opõem sejam parados.

Parados. Este é o primeiro passo. Na Coleta acima pedimos a Deus para acabar com a insolência e o orgulho deles. Se, para superar o orgulho deles, for necessário derrubá-los, que assim seja. Que seja feito o necessário para acabar com a ameaça que eles representam e para garantir que tenhamos paz e possamos viver nossa vocação de forma adequada.

Como diz a oração Pós-comunhão da mesma Missa:

Protéctor noster áspice, Deus, et ab inimicórum nos defénde perículis: ut, omni perturbatióne submóta, líberis tibi méntibus serviámus. — Ó Deus, nosso protetor, olhai para nós e defendei-nos dos perigos dos nossos inimigos, para que, quando toda perturbação for removida, possamos vos servir com as mentes livres.

Se as ações dos inimigos revelam que nós (Igreja, pátria, famílias) não ficaremos a salvo sem que eles percam a capacidade de respirar… então purificamos nossas motivações, pedimos ajuda a Deus — por nós, para que sejamos eficazes e não pequemos, e por eles e contra eles, para que Deus lhes dê graças e/ou sofrimentos adequados a fim de que mudem de mentalidade e de coração.

Adequado. Não mais do que for necessário. Assim como no treinamento para o manuseio de armas de fogo, primeiro a pessoa aprende a tentar evitar o conflito, depois tenta acalmar a situação e, se não houver outra opção e se ela realmente temer por sua vida ou pela vida de outras pessoas, então poderá usar a força adequada para cessar a ameaça. Quando a ameaça é detida, a pessoa deixa de usar a força. Se um soco for suficiente, não se deve usar uma arma de fogo. Se o autor da ameaça fugir, não se deve atirar nas costas dele. Se for necessário usar força mortal, não se deve continuar atirando depois que o autor da ameaça tiver sido neutralizado.

São Paulo: um dos primeiros inimigos da Igreja a ser derrubado, literalmente, por Deus. Possivelmente pelas orações de Santo Estêvão? — Pintura de autor anônimo.

Devemos purificar as nossas motivações. Na Secreta da Missa pro defensione ab hostibus, o sacerdote reza a seguinte oração:

Huius, Dómine, virtúte mystérii, et a própriis mundémur occúltis, et ab inimicórum liberémur insídiis. — Ó Senhor, que pela força deste mistério possamos ser purificados de nossos pecados ocultos e libertos das armadilhas dos nossos inimigos.

Desejamos em nossa oração a conversão dos corações. Quando os nossos inimigos se convertem, em vez de continuar buscando uma vingança sangrenta, temos de nos alegrar com a graça magnífica de Deus todo-poderoso, que deseja não a morte do pecador, mas que ele se converta e viva (cf. Ez 33, 11).

Devemos examinar a nossa consciência e purificá-la.

Sem esquecer que [como diz o livro de Neemias na Vulgata] aedificantium enim unusquisque gladio erat accinctus renes — “cada um dos que edificavam tinha a sua espada à cinta” (4, 18).

Notas

  1. O marcionismo foi uma seita herética fundada no ano 144, em Roma, por Marcião. Seus seguidores rejeitavam o Antigo Testamento e ensinavam que Cristo não era filho do Deus dos judeus, mas do “deus bom”, em oposição ao “deus mau” da Antiga Aliança (N.T.).
  2. Aqui o autor digressiona en passant sobre uma circunstância específica da América do Norte. Omitimos esse trecho na tradução, bem como a sugestão do trecho de um filme que ele dá no final do texto (N.T.).

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