A encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, que condenava como imorais os métodos de contracepção artificial — preservativos e pílulas anticoncepcionais, por exemplo —, completou seu cinquentenário no último dia 25 de julho e, até hoje, a onda de contestação a seu conteúdo não cessou.

Em nossos dias, porém, em vez de uma oposição aberta, o que parece estar se delineando é uma tentativa de reinterpretar o documento à luz de teorias morais já condenadas pelo Magistério, a fim de invalidar, na prática, tudo o que a Igreja sempre ensinou a esse respeito.

Não há nada de novo debaixo do sol, é preciso dizer. A título de exemplo, vejamos o que um dos contestadores da Humanae Vitae — e, infelizmente, perito do Concílio Vaticano II — disse sobre a encíclica, tão logo ela foi publicada:

Se um cristão católico, após provar suficientemente sua consciência, acredita ter chegado, após completa reflexão e autocrítica, a uma posição que dissente da norma papal, e a segue em sua vida matrimonial sob a observância desses princípios aos quais já se aludiu frequentemente como sendo comumente cristãos, então esse católico não precisa temer qualquer culpa subjetiva ou considerar a si mesmo formalmente desobediente à autoridade da Igreja. [1]

Para dizer de maneira mais clara: se uma pessoa casada chegasse à conclusão de que deveria usar camisinha ou tomar a pílula, e efetivamente o fizesse em seu relacionamento conjugal, não deveria considerar-se “desobediente” por isso. Pela mesma lógica, um marido que, “após provar suficientemente sua consciência”, “após completa reflexão e autocrítica”, decidisse trair a própria esposa, e realmente o fizesse, nem por isso deveria considerar-se um adúltero; um bandido que decidisse roubar um carro de alguém, e realmente o roubasse, não deveria considerar-se um ladrão, e por aí vai.

A manifestação acima é de ninguém menos que Karl Rahner e, como se vê, seu argumento traz dentro de si o poder de derrubar não só a moral sexual da Igreja, mas todo o edifício doutrinário católico. Afinal de contas, “se tais princípios podem ser aplicados à questão da contracepção”, pergunta-se um estudioso da história da Igreja, “então por que não aplicá-los a outros aspectos da moralidade tradicional católica” [2]? Ora, se a consciência possui um papel assim criativo, que dogma e que preceito moral não poderia ser derrubado por sua atuação?

A contestação à Humanae Vitae precisa ser lida, portanto, em um contexto mais amplo: não se trata de minar simplesmente uma parte do ensinamento da Igreja, mas de relativizar todo o Magistério. A esse propósito o próprio Paulo VI havia respondido em sua encíclica, lembrando que:

Na missão de transmitir a vida, eles [os esposos] não são, portanto, livres para procederem a seu próprio bel-prazer, como se pudessem determinar, de maneira absolutamente autônoma, as vias honestas a seguir, mas devem, sim, conformar o seu agir com a intenção criadora de Deus, expressa na própria natureza do matrimônio e dos seus atos e manifestada pelo ensino constante da Igreja. [3]

É da máxima importância, para a paz das consciências e para a unidade do povo cristão, que, tanto no campo da moral como no do dogma, todos se atenham ao Magistério da Igreja e falem a mesma linguagem. [4]

A proibição de um “livre exame” do ensinamento contido na Humanae Vitae provinha, portanto, da simples leitura de suas letras. Não há desculpas.

Mas o argumento da consciência, aludido acima por Karl Rahner, ainda tem seus simpatizantes em nossos dias. Sob o pretexto de recorrer a ela, tudo se justifica, tudo se desculpa, até mesmo o pecado mortal.

Por isso, como complemento da Humanae Vitae, é preciso ter sempre à mão um outro documento pontifício, tão ou até mais importante para os nossos dias do que a encíclica de Paulo VI: seu nome é Veritatis Splendor, seu autor é São João Paulo II e, coincidência ou não, seu 25.º aniversário se recordou no último dia 6 de agosto de 2018.

Os deveres da consciência

Nesta encíclica, dedicada a uma defesa geral de toda a doutrina moral cristã, encontramos ensinamentos fundamentais para resolver o aparente choque entre lei e consciência, verdade divina e liberdade humana. O Papa S. João Paulo II aí ensina, por exemplo, que:

Se existe o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da verdade, há ainda antes a obrigação moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida. Neste sentido, afirmava com decisão o Cardeal John Henry Newman, eminente defensor dos direitos da consciência: “A consciência tem direitos, porque tem deveres”. [5]

Só neste simples parágrafo já é possível identificar o problema do pensamento de Karl Rahner, exposto mais acima. O direito a ser respeitado “no próprio caminho em busca da verdade” deve andar junto com a responsabilidade “de aderir a ela, uma vez conhecida”. Em outras palavras, a consciência não cria a lei que deve seguir, mas simplesmente se submete àquilo que encontra inscrito na própria natureza das coisas e revelado por Deus ao longo da história da salvação. Nas palavras do teólogo dominicano espanhol Pe. Royo Marín,

A consciência supõe verdadeiros os princípios morais da fé e da razão natural e aplica-os a um caso particular. Não julga de modo algum os princípios da lei natural ou divina, mas unicamente se o ato que vamos realizar se ajusta ou não àqueles princípios. Donde se segue que a consciência de modo nenhum é autônoma (como querem Kant e seus sequazes) e que é falsa aquela liberdade de consciência proclamada por muitos racionalistas, que consideram a própria consciência como o árbitro supremo e independente do bem e do mal. [6]

Saiamos um pouco da teoria e sejamos práticos. O que isso significa de modo bem concreto?

Significa simplesmente que a Verdade não é uma ficção que nós inventamos, mas um dom que nós recebemos. Se Deus revelou e a Igreja ensina, na linha de uma tradição constante, o que é certo e errado, não resta ao ser humano outra alternativa senão submeter-se humildemente a essa verdade e procurar conformar a ela sua conduta. Nós não somos senhores do bem e do mal; a verdade não é relativa, como pregam muitos de nossos contemporâneos. O que é certo, é certo; o que é errado, é errado, independentemente do que achemos ou deixemos de achar.

Mas talvez estejamos excessivamente apegados ao nosso pecado. Quando as pessoas repetem muitas vezes um ato mau, pouco a pouco vão perdendo a noção da gravidade do que fazem, podendo até mesmo achar que aquilo que as está destruindo, na verdade, é um bem. Assim o dependente químico com as drogas; assim o jovem obstinado na masturbação e na pornografia, ou no sexo desregrado; assim o marido infiel; assim o ladrão que não se arrepende do que faz etc. É o fenômeno da chamada “consciência culpavelmente errônea”:

A consciência, como juízo último concreto, compromete a sua dignidade quando é culpavelmente errônea, ou seja, quando o homem não se preocupa de buscar a verdade e o bem, e quando a consciência se torna quase cega em consequência do hábito ao pecado. Jesus alude aos perigos da deformação da consciência, quando admoesta: “A lâmpada do corpo é o olho; se o teu olho estiver são, todo o teu corpo andará iluminado. Se, porém, o teu olho for mau, todo o teu corpo andará em trevas. Portanto, se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão essas trevas!” (Mt 6, 22-23).

Nas palavras de Jesus agora referidas, encontramos também o apelo para formar a consciência, fazendo-a objeto de contínua conversão à verdade e ao bem. Análoga é a exortação do Apóstolo a não se conformar com a mentalidade deste mundo, mas a transformar-se pela renovação da própria mente (cf. Rm 12, 2). Na verdade, o “coração” convertido ao Senhor e ao amor do bem é a fonte dos juízos verdadeiros da consciência. [7]

A consciência deve ser, portanto, um “santuário” onde o ser humano “se encontra a sós com Deus” [8], não uma rave onde dá ouvidos tão-somente a suas paixões desordenadas. Só pode reclamar o direito de seguir a própria consciência quem primeiro se submeteu ao dever de formá-la retamente, de acordo com os Mandamentos, com a verdade divinamente revelada, com a doutrina moral da Santa Igreja. Caso contrário, o “argumento” da consciência não passará de uma desculpa esfarrapada para satisfazer caprichos e desejos irracionais.

Consequências práticas do abandono da moral católica

Vejam-se, por exemplo, todas as tentativas recentes de minar a doutrina católica tradicional com a velha “moral de situação”.

A Igreja sempre ensinou que, quando uma pessoa comete consciente e deliberadamente — isto é, “sabendo e querendo” [9] — um pecado de matéria grave, ela perde a graça de Deus, só a recuperando, via de regra, pelo sacramento da Penitência. É o pecado mortal, que mata a vida sobrenatural na alma.

Assim, um casal de namorados que tem relações sexuais fora do casamento, se deseja aproximar-se da mesa da Comunhão, precisa arrepender-se de tal pecado, fazer o propósito de nunca mais o cometer e confessar-se primeiro a um sacerdote; um esposo infiel, se deseja salvar-se, precisa romper seus casos extraconjugais e fazer penitência por sua infidelidade; saindo do sexto para o quinto Mandamento, uma mãe que tenha praticado um aborto só pode voltar a receber os sacramentos se trilhar, também ela, o caminho da conversão. Foi assim que a Igreja sempre e em todos os lugares creu e ensinou, mantendo-se fiel ao Evangelho.

Hoje, ao contrário, há uma tendência generalizada a relativizar o mal, diminuir a gravidade do pecado, em um discurso mais parecido com as máximas do mundo que com a verdadeira doutrina do Evangelho.

A grande tragédia dessa verdadeira “mudança de rota” é que ela simplesmente frustra toda a possibilidade de as pessoas terem uma vida espiritual, uma relação de amizade e intimidade com Deus. Ao invés de reconhecer o próprio pecado, arrepender-se e confessá-lo, o que se busca é apelar a toda sorte de “argumentos” para justificá-lo: o ladrão que rouba pode não estar em pecado mortal, dizem; o marido que não é fiel à esposa pode não estar em pecado mortal; o jovem que se masturba ou tem relações com a namorada pode não estar em pecado mortal… Talvez em um futuro não muito distante certos teólogos cheguem a descobrir que a humanidade inteira foi concebida sem pecado original!

Ora, não seria muito mais fácil, mais simples, mais condizente com o que diz Nosso Senhor nos Evangelhos que ensinássemos às pessoas o que elas devem e o que não devem fazer, sabendo que contam com a graça de Deus para realizá-lo, e reforçássemos a importância dos sacramentos para recuperar a graça de Deus? Que parássemos de inventar todo tipo de pretextos para continuarmos a viver em pecado?

O que nossa época precisa é de menos “argumentações” e mais obediência, mais arrependimento, mais humildade. Quem seríamos nós, por exemplo, na parábola do fariseu e o publicano (cf. Lc 18, 9-14)? Queremos defender-nos diante de Deus, arrumando toda sorte de justificativas para viver no pecado, ou reconheceremos humildemente nossas faltas diante dEle, pedindo perdão por nossas culpas e fazendo o firme propósito de não mais incorrer nelas?

É hora de renunciarmos de vez ao pecado e às “estruturas de pecado” que infelizmente se têm montado dentro de nossas próprias casas. Ouçamos as duras, porém libertadoras, palavras de Cristo ecoando através dos séculos: “Não é possível servir a dois senhores” (Mt 6, 24). Não é possível estar ao mesmo tempo na graça de Deus e no pecado mortal. Não é possível ser ao mesmo tempo amigo de Deus e amigo do mundo (cf. Tg 4, 4). Não é possível acender uma vela para Deus e outra para o diabo.

Procuremos, pois, a salvação com sinceridade e humildade, bem como o perdão de nossos pecados. “Se dissermos que não temos pecado, estamos enganando a nós mesmos, e a verdade não está em nós. Se reconhecemos nossos pecados, então Deus se mostra fiel e justo, para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1, 8-9).

Referências

  1. National Catholic Register, 18 de setembro de 1968, p. 7, apud Michael T. Davies, O Concílio de João XXIII. Trad. port. de Fabiano Rollim. Niterói: Permanência, 2018, p. 70.
  2. Michael T. Davies, op. cit., Niterói: Permanência, 2018, p. 70.
  3. Papa Paulo VI, Carta Encíclica Humanae Vitae (25 de julho de 1968), n. 10.
  4. Ibid., n. 28.
  5. Papa João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 34.
  6. Antonio Royo Marín, Teología moral para seglares, v. 1, 4.ª ed., Madri: BAC, 1973, p. 130.
  7. Papa João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 63-64.
  8. Concílio Vaticano II, Constituição Gaudium et Spes (7 de dezembro de 1965), n. 16.
  9. Papa João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 70.

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