Quem poderia descrever o amor ardente que abrasava Francisco, esse amigo do Esposo? Como um carvão a arder, parecia inteiramente devorado pela chama do amor de Deus. Mal ouvia falar do amor do Senhor, ficava excitado, comovido, inflamado, como se esse som exterior lhe fizesse vibrar lá dentro as cordas do coração. Segundo ele, era uma prodigalidade principesca oferecer, em troco da esmola, o precioso patrimônio do amor de Deus; e dar-lhe menos apreço do que ao dinheiro era tolice rematada, porquanto essa moeda inapreciável do amor divino é a única com que se pode comprar o reino dos Céus, e é um dever natural pagar amor com amor.

A intensidade desse amor sem limites que o impelia para Deus, fez com que também aumentasse a ternura afetuosa para com os que com ele participavam da natureza e da graça. Os sentimentos naturais do seu coração bastavam para o transformar num irmão de todas as criaturas. Não é de admirar, portanto, que o seu amor a Cristo, o tenha tornado ainda mais irmão daqueles que são a imagem do Criador e foram resgatados pelo seu sangue. Não se considerava amigo de Cristo, se não se preocupava com as almas que Ele resgatara. “Nada se devia antepor à salvação das almas”, dizia. E apresentava como prova o fato de o Filho Unigênito de Deus se ter dignado morrer na cruz por amor das almas. Isso explica a sua veemência na oração, a atividade incessante da pregação, e os excessos quando se tratava de dar exemplo. Se lhe censuravam certos exageros de austeridade, respondia que tinha sido dado aos outros como exemplo. Se bem que a sua carne inocente, já sem relutância submetida ao espírito, não merecesse qualquer castigo pelas próprias faltas, no entanto, para dar exemplo, impunha-lhe novos castigos e novos sofrimentos, calcorreando, por amor dos outros, caminhos duros. Ainda que eu falasse, dizia, as línguas dos homens e dos anjos, se não tivesse caridade e não desse exemplo de virtude, isso de nada me serviria a mim, e muito pouco aproveitaria aos outros.

“São Francisco de Assis em êxtase”, pintura do séc. XVII.

O incêndio de amor que o devorava, criava nele uma santa inveja do triunfo glorioso dos santos mártires, a quem ninguém conseguiu apagar a chama da caridade, nem abater a coragem. Também ele, abrasado no mesmo santo amor que rejeita todo o medo, queria oferecer-se ao Senhor como hóstia viva, imolada pelo martírio, para retribuir a Cristo a morte que ele sofreu por nós e incentivar os homens ao amor de Deus. 

Seis anos após a conversão, ardendo em desejos de martírio, resolveu dirigir-se para as bandas da Síria, a pregar a fé cristã e a penitência aos sarracenos e outros infiéis. Mas o navio em que embarcara foi arrastado por ventos contrários para as costas da Eslavônia, onde teve de aportar. Aí se viu forçado a ficar algum tempo, sem conseguir nenhum barco que o transportasse mais além. Percebendo que o seu desejo não seria o do Senhor, e vendo uns marinheiros prestes a desamarrar para Ancona, pediu-lhes que o levassem — mas teria de ser por amor de Deus, pois ele nada tinha com que pagar. Por mais que insistisse, os homenzinhos fizeram ouvidos de mercador. Então o homem de Deus, num extremo de confiança na bondade do Senhor, esgueirou-se sub-repticiamente para o navio, ele e o companheiro. Entre os passageiros encontrava-se um, sem sombra de dúvida enviado por Deus em favor do seu pobrezinho, que levava mantimentos em abundância, e chamando à parte um membro da tripulação que lhe pareceu mais temente a Deus, recomendou-lhe: “Guarda bem estas provisões para uns Irmãos pobrezinhos que vão aqui escondidos no navio, e dá-lhas quando eles precisarem”. Ora aconteceu que os ventos sopraram com tanta violência, que os dias se passavam sem que pudessem aportar em parte alguma. Os marinheiros já não tinham provisões; só restava aquela esmola graciosamente concedida pelo céu ao pobre Francisco. Era muito pouco, não havia dúvida; mas o poder de Deus fez com que esse pouco se transformasse em tanto, que apesar do atraso provocado pela tempestade, o alimento chegou e sobrou para todos até ao porto de Ancona. Os marinheiros, vendo-se libertos dum perigo de morte por intermédio do servo de Deus, imitaram os do Salmo, que depois de terem sentido os perigos horrendos do oceano, testemunharam as obras do Senhor no alto mar; deram graças a Deus todo-poderoso, que se mostra sempre tão amável e tão admirável para com os seus amigos e servidores. 

Começou então a percorrer essa província, semeando a boa semente da salvação e colhendo frutos copiosos. Mas como o fruto mais apetecido era o do martírio, e mais desejava a morte por Cristo do que todos os méritos duma vida virtuosa, partiu em direção a Marrocos, com a intenção de anunciar o Evangelho de Cristo ao Miramolim e ao seu povo: podia ser que assim alcançasse a desejada palma do martírio. E era de tal ordem o seu entusiasmo, que sendo embora franzino de corpo, andava sempre à frente do companheiro de viagem, e deslumbrado na ânsia de concretizar o seu sonho, parecia que queria voar. Já tinha chegado à Espanha. Mas a disposição divina reservava-lhe outras incumbências. Sobreveio-lhe uma doença muito grave, que o impediu de realizar o que tanto desejava. Apesar do lucro que para ele representava a morte, compreendeu que a sua vida corporal era imprescindível para a família que gerara. E voltou, para apascentar as ovelhas confiadas aos seus cuidados.

Mas o fervor da caridade continuava a aguilhoá-lo em ânsias de martírio. Uma terceira vez tentou passar a terras de infiéis, para com efusão do sangue favorecer a expansão da fé na Santíssima Trindade. No ano décimo terceiro da sua conversão partiu para o Oriente, exposto constantemente a inúmeros perigos, no intuito de poder contatar pessoalmente com o Sultão de Babilônia. Travava-se então uma guerra implacável entre cristãos e sarracenos. Os dois exércitos encontravam-se frente a frente no campo de batalha. Tentar passar dum lado para o outro era um risco de morte. Além disso, o Sultão publicara um édito cruel prometendo um talento de ouro a quem lhe trouxesse a cabeça dum cristão. Pois, apesar de tudo isso, Francisco, o intrépido cavaleiro de Cristo, na esperança de obter sem mais delongas aquilo por que tanto suspirava, meteu-se a caminho: longe de temer a morte, sentia-se atraído por ela. Depois de fervorosa oração, confortado pelo Senhor, começou a cantar cheio de confiança aquele verso do profeta: Nem que eu tenha de andar no meio da sombra da morte, não terei medo nenhum porque tu estás comigo

Tomando por companheiro Frei Iluminado, um Irmão de fato iluminado no sentido de inteligente, e também corajoso, puseram-se a caminho, quando imediatamente depararam com duas ovelhinhas. Entusiasmado com este encontro, comentou para o companheiro: “Confia no Senhor, meu Irmão. Está-se a realizar em nós aquele aviso do Evangelho: Envio-vos como ovelhas para o meio de lobos…”. 

“São Francisco diante do Sultão do Egito, Malik-al-Kamil”, de Zacarías González Velázquez.

Um bocado mais adiante foram interceptados pelos guardas avançados dos sarracenos. Como lobos em busca de ovelhas lançaram-se brutalmente a eles, agarraram-nos com ódio e crueldade, cumularam-nos de injúrias, espancaram-nos e agrilhoaram-nos. Por fim, depois de maltratados e vexados de mil maneiras, levaram-nos — segundo os desejos do Santo e as disposições da Providência — à presença do Sultão. Quis ele saber quem é que os tinha mandado, com que fim; em que condições, e como é que tinham chegado ali. Com todo o sangue-frio, o servo de Cristo esclareceu que tinha sido enviado de além dos mares, não por qualquer homem mas pelo Deus Altíssimo; que vinha indicar-lhe, a ele e ao seu povo, o caminho da salvação e anunciar-lhe o Evangelho da verdade. Depois pregou ao Sultão os mistérios da Trindade e da Redenção. E fê-lo com tal fervor e entusiasmo, que bem parecia realizar-se nele aquilo do Evangelho: Hei-de pôr-vos na boca uma tal sabedoria, que nenhum dos vossos adversários conseguirá resistir-lhe nem pôr-lhe objeções

Espantado com semelhante entusiasmo e coragem, o Sultão parecia gostar de o ouvir, sugerindo-lhe mesmo que ficasse por ali mais algum tempo com ele. Porém o servo de Cristo, instruído por uma indicação do céu, avançou: “Se de fato queres converter-te a Cristo, tu e o teu povo, eu com todo o prazer, e por amor dele, ficarei convosco. Mas vejo que te sentes indeciso em trocar a lei de Maomé pela de Cristo… Pois bem: manda acender uma grande fogueira, e eu desafio os teus sacerdotes a avançarem comigo para o meio do fogo. Dessa forma se poderão dissipar as dúvidas, acerca de qual das crenças é a mais santa e a mais certa”. “Duvido muito — replicou o Sultão — que algum dos meus sacerdotes se quisesse expor ao fogo ou suportar qualquer tormento em defesa da sua fé…”. De fato não lhe tinha passado despercebido que um dos seus sacerdotes, aliás sincero e venerável, ao ouvir o desafio de Francisco, se esgueirara sem que ele mais o visse. 

O Santo mais se encheu de coragem: “Se quiseres prometer-me, em teu nome pessoal e no do teu povo, que abraçareis a religião de Cristo no caso de eu sair ileso do fogo, eu irei para lá mesmo sozinho. Nota porém uma coisa: se eu me vier a queimar, isso será devido única e exclusivamente aos meus pecados! Pelo contrário, se o poder de Deus me proteger, é para que reconheçais por verdadeiro Deus, Senhor e Salvador de todos os homens, a Jesus Cristo, poder e sabedoria de Deus”. Não se atreveu o Sultão a aceitar o repto, por medo duma possível sublevação do povo. Preferiu oferecer-lhe numerosos e ricos presentes, que o homem de Deus rejeitou com desprezo: ele era ganancioso, é certo, mas não das riquezas do mundo, senão somente da salvação das almas. Esta atitude granjeou-lhe ainda maior estima por parte do Sultão, assombrado de ver um homem tão desprendido dos bens mundanos. Apesar de tudo, não quis, ou talvez melhor, não teve coragem de abraçar a fé cristã. Ainda assim, pediu ao servo de Cristo que aceitasse os presentes e os desse a cristãos necessitados ou igrejas pobres: esse gesto, pensava ele, era um passo no caminho da salvação. Mas o Santo, que por um lado tinha horror ao dinheiro, e por outro lado não descobria na alma do Sultão profundas raízes de verdadeira fé, recusou-se terminantemente a aceitar qualquer presente. 

Verificou também com tristeza que nada conseguia quanto à conversão dessa gente, nem tão-pouco pressentia poder realizar o seu desejo de martírio… Uma revelação divina, de resto, veio dissipar-lhe as dúvidas. E voltou novamente para terras de cristãos. O que Deus em sua bondade decretara e o Santo por sua generosidade merecera, era ter Francisco conseguido o martírio de desejo. Pelo grande amor que dedicava a Cristo, tinha-se exposto a morrer por Ele sem o conseguir: mas haveria de ser marcado mais tarde com um selo e um símbolo desse martírio. O fogo divino que lhe ardia cada vez mais em labaredas no coração havia de alastrar até à carne. Ditoso de verdade, aquele cuja carne, sem ser ferida pelo ferro de um tirano, não deixou de apresentar tão perfeita semelhança com o Cordeiro Imolado! Plenamente ditoso de verdade, aquele a quem “a espada do perseguidor não tirou a vida, sem, no entanto, perder a palma do martírio!”.

Notas

  • É de tal modo célebre esse episódio da vida de S. Francisco de Assis, que consta não só de sua Legenda maior, escrita por S. Boaventura, mas também de sua Legenda menor (c. 3, 9), de seus Fioretti (c. 24) e de sua Primeira vida (l. 1, c. 20, 57), escrita por Tomás de Celano.
  • Esse texto foi transcrito e levemente adaptado de: S. Boaventura. Legenda maior (c. 9, 1.4-9), trad. Frei José Maria da Fonseca Guimarães, OFM. Editorial Franciscana, pp. 80-88. As referências do original foram omitidas desta publicação, os grifos em negrito são nossos e os em itálico fazem alusão a trechos das Sagradas Escrituras.

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