A Igreja de Cristo é santa, e parte essencial da santidade consiste em estar separado [do mundo]. É claro que essa separação, quando mal interpretada, pode dar origem a uma mentalidade de “gueto”, uma espécie de isolacionismo ou um fechamento doentio em si mesmo. O abuso porém não tolhe o uso nem a verdade. São Pedro proclama: “Vós, porém, sois uma raça escolhi­da, um sacer­dócio régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus” (1Pd 2, 9). A Igreja deve distinguir-se e, até certo ponto, viver separada do mundo. O relato da Transfiguração (cf. Mc 9, 2-10) nos mostra como e por que a Igreja é assim.

Primeiro, “Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, e conduziu-os a sós a um alto monte” (Mc 9, 2). Para fazer deles o seu povo, o Senhor os afasta do mundo. Chamados por Deus, também Abraão, Moisés e Elias subiram cada qual um monte, afastando-se por si mesmos. Esse distanciar-se na montanha sinaliza uma ruptura espiritual mais profunda em relação ao mundo. Não eram homens como os outros; sabiam-se pertencentes a Deus. No Tabor, os Apóstolos de Cristo e, por extensão, toda a Igreja são “segregados” [do mundo].

A Transfiguração, por Teófanes, o Grego.

Sim, toda separação dói. Ninguém quer ser visto como estranho. Abraão, Moisés e Elias sabiam bem o que era ser tentado a não se separar, mas a conformar-se para ser aceito. Os israelitas mesmos se recusaram uma e outra vez a ser diferentes, pois queriam assemelhar-se às outras nações. Em consequência, perderam as próprias terras. É um tema constante entre os profetas: “Sede santos — separados — porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 19, 2).

A tentação de assimilar a cultura dominante salta hoje a olhos vistos. Se, no passado, os católicos tínhamos uma mentalidade de “gueto”, hoje sofremos, ao revés, de um desejo quase doentio de “ser parte da turma”. Parecemos preocupados mais em “nos dar bem” do que em proclamar a verdade. Tornar as palavras mais palatáveis do que convincentes, eis no que se concentram nossos esforços. Não deixa pois de ser irônico que já nos tenhamos separado de uma cultura cristã com a qual ainda tínhamos muito em comum, enquanto hoje nos conformamos a uma que abomina nossas crenças mais fundamentais.

Fomos separados. Portanto, devemos lutar contra a tentação de adaptarmos ao mundo quer a nós mesmo, quer a própria fé. A exemplo dos Apóstolos, é preciso permitir-se ser levado à parte, longe da irrealidade do mundo — não importa o desconforto, a dor e a perseguição que isso acarrete.

Mas este estar separado não é fim em si mesmo; antes, ordena-se à união com Deus. Como Abraão, Moisés e Elias, também os Apóstolos foram a um monte encontrar-se com Deus. Foi numa montanha que Deus clamou a Abraão, deu a Lei a Moisés e aproximou-se de Elias no “murmúrio de uma brisa ligeira” (1Rs 19, 12). No Tabor, Cristo “transfigurou-se diante” dos Apóstolos, e as vestes dele se tornaram “resplandecentes e de uma brancura tal, que nenhum lavadeiro sobre a terra as pode fazer assim tão brancas” (Mc 9, 3). Jesus os tira do mundo para os ter consigo.

Do mesmo modo, afastamo-nos do mundo e de suas seduções para que nos possamos apegar mais a Deus e às suas promessas. Sem propósito de separação, nem o desapego nem os sacrifícios que fizermos farão sentido, senão que, pelo contrário, se tornarão um peso irracional. No fundo, separamo-nos mais por causa de Deus que por causa do mundo.

“Transfiguração de Cristo”, por Willem van Herp, o Velho.

Isso se aplica antes de tudo à nossa oração particular. Precisamos fugir do barulho e das notícias do mundo para encontrar o silêncio e a verdade de Deus. Se não passarmos pela difícil escalada da montanha, desligando-nos de distrações e tentações mundanas, nossa oração nunca irá decolar. Da mesma forma, a maneira como adoramos deve separar-nos do mundo e levar-nos para Deus. Se queremos colher os frutos da presença eucarística de Cristo, a Missa não pode admitir os ruídos e a superficialidade do mundo.

Mas não permanecemos na Missa para sempre, o que nos leva ao objetivo final de nossa separação: voltar para dar testemunho. Quando os grandes homens da Escritura descem da montanha, trazem junto o fruto de seu encontro. Abraão, por exemplo, desce de Moriá capaz de proclamar que a Deus não agradam sacrifícios humanos, pois Ele mesmo lhe providenciou um cordeiro (cf. Gn 22, 1-14); Moisés desce com as tábuas da Lei entre as mãos (cf. Ex 32, 15); Elias volta para Israel com zelo renovado pela Aliança (cf. 1Rs 19, 14).

Os Apóstolos, é verdade, não dariam testemunho da Transfiguração imediatamente: “Ao descerem do monte, proibiu-lhes Jesus que contassem a quem quer que fosse o que tinham visto, até que o Filho de Homem houvesse ressurgido dos mortos” (Mc 9, 9). Mesmo assim, os Apóstolos testemunharam a outros o que experimentaram na montanha. Eles descem do Tabor capazes de dar testemunho de Cristo, o Filho de Deus. Mais tarde, Pedro escreveria sobre aquela singular declaração: “Este é o meu Filho muito amado, em quem tenho posto todo o meu afeto”, dizendo: “Essa mesma voz que vinha do céu nós a ouvimos, quando estávamos com ele no monte santo” (2Pd 1, 17s).

Separação, comunhão e testemunho. Eis as notas de santidade que marcam o tempo da Quaresma. Por nossas renúncias e mortificações, separamo-nos do mundo e declaramo-nos independentes dele. Nosso objetivo é encontrar-nos com Cristo, unindo-nos a Ele especialmente em sua Paixão e Morte. Quando enfim chegarmos à Páscoa, esperamos testemunhar juntamente com os Apóstolos: “Não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido” (At 4, 20).

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