Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 9,43b-45)
Naquele tempo, todos estavam admirados com todas as coisas que Jesus fazia. Então Jesus disse a seus discípulos: “Prestai bem atenção às palavras que vou dizer: O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens”. Mas os discípulos não compreenderam o que Jesus dizia. O sentido lhes ficava escondido, de modo que não podiam entender; e eles tinham medo de fazer perguntas sobre o assunto.
O Evangelho de hoje é o segundo anúncio da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus, uma vez que os Apóstolos fizeram a sua profissão de fé através de Pedro, começa a ensinar-lhes que irá morrer em Jerusalém. Aqui nós estamos diante do segundo anúncio. Existe algo de especial neste anúncio segundo a versão de São Lucas. É o seguinte.
Em primeiríssimo lugar, algumas coisas bem típicas do grego que dificilmente as traduções conseguiriam nos dizer, mas vamos tentar expressar. Jesus disse aos seus discípulos: “Prestai bem atenção às palavras que eu vou dizer”. O original grego é difícil de transmitir em português, mas a nova tradução da CNBB está um pouquinho melhor. Ela diz assim: “Gravai nos ouvidos esta palavra”. Ao pé da letra, o grego diz: “Recebei dentro dos ouvidos essa palavra”. Por quê? Porque o anúncio da Paixão, de alguma forma, chegou até os discípulos, mas não entrou, e por que não entrou? Porque muitas vezes nós só queremos compreender as coisas agradáveis.
A maior parte das pessoas, quando a verdade lhes dói, prefere acreditar numa versão diferente da realidade, ou seja, numa mentira, naquilo que chamam hoje em dia de “pós-verdade” ou, na melhor hipótese, preferem esquecer o que ouviram. Jesus, aqui, como Mestre, sabe muito bem que os seus discípulos não estão ouvindo de verdade, então usa essa palavra “plástica” para dizer “colocar dentro”, “fazer entrar” nos ouvidos, porque não está entrando. Ele diz: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens” .
O Evangelho, logo em seguida, diz: “Os discípulos não compreendiam o que Jesus dizia e o sentido lhes ficava escondido” (ao pé da letra, “velado”), “de modo que não podiam entender”. Esse “não podiam entender”, no grego original, é um hápax legómenon (palavra que aparece uma única vez nas Sagradas Escrituras). É o verbo αἴσθωνται, que significa “entender”, mas, na sua raiz, é um verbo que quer dizer “perceber com os sentidos”.
É um pouco a forma como os portugueses se expressam em Portugal. Nós brasileiros dizemos: “Ah, não entendi”. Os portugueses não dizem isso. Os portugueses dizem: “Não percebi” (de perceber as coisas). O verbo “perceber”, originalmente, tem a ver com os sentidos externos e somente numa segunda versão é que ele significa “entender com a inteligência”.
É exatamente o que esse verbo grego é. Ou seja: “eles não percebiam o que Jesus estava dizendo”. Por que eu estou gastando todo esse tempo com gramática, grego e raiz de palavras? Pelo seguinte: eles não percebiam porque a coisa bate e volta, ou seja, não chega a entrar. É exatamente o que Jesus está dizendo: “Cave um buraco aí no seu ouvido e ouça! Você não está percebendo.
A notícia não está nem sequer conseguindo entrar, porque vocês estão anestesiados”. A coisa está velada, encoberta por um véu de dormência, porque a verdade dói, e a verdade dolorosa que Jesus está querendo transmitir, e que nós precisamos hoje aprender, fazendo um lugar dentro de nós para nos livrar desse véu de dormência, é esta: nós temos de perceber que não há salvação sem cruz.
“O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens”. Ele está verdadeiramente indo a Jerusalém para se entregar em sacrifício de amor. Nós queremos o Cristo, mas não o queremos crucificado… Nós gostaríamos de simplesmente celebrar Jesus, um Deus de amor que venceu com a ressurreição… Mas a verdade cristã é uma páscoa, é morte e ressurreição, e não haverá vitória e ressurreição se não houver a morte na cruz. É exatamente essa a doença dos cristãos atuais.
Esse Evangelho é enormemente oportuno porque, hoje como dois mil anos atrás, Jesus diz: “Coloquem dentro dos ouvidos de vocês essa verdade” — a cruz de Cristo, a cruz salvadora de Cristo —, e eles não entendem a coisa, coberta por um véu, mas é o véu do nosso egoísmo, o véu do nosso medo. Eles tinham medo de perguntar, eles não queriam nem sequer tocar no assunto para dizer: “Eu não estou entendendo”; na verdade, porque não queriam perceber aquilo que dói. A verdade vos libertará, mas ela não é necessariamente agradável. Haverá salvação para nós, sim, pela cruz e ressurreição.
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