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Christo Nihil Præponere"A nada dar mais valor do que a Cristo"
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Texto do episódio
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1. O que é uma ideologia? — Na época moderna, a ideologia pode ser entendida, de certo modo, como uma reformulação da sofística, isto é, como uma forma de racionalidade estratégica [1]. Uma das características da ideologia é o fato de ela propor, como verdade política, um projeto que surge do conteúdo de um âmbito não político (v.gr., a classe social, a nação, o “gênero”). A apoliticidade desse âmbito supõe que a política não é arquitetônica; e, por isso, em vez de ser a política o marco que define o que há de ser feito nesse âmbito, é o conteúdo mesmo deste âmbito — considerado como “substancial” — que define o que se há de fazer politicamente.

As necessidades, os objetivos e as motivações que possam surgir nesse determinado contexto adquirem imediatamente validez (racionalidade) política, em vez de serem razões políticas as que mediam e medem a validez das exigências e propósitos que possam surgir em tal contexto. A ideologia apresenta sempre um âmbito ou dimensão social cuja existência e conteúdo supõe como “objetivos”, e extrai desta “realidade objetiva”, de maneira imediata, a pauta da ação política.

Mas esta imediatez é notavelmente suspeita. A teoria, isto é, o conhecimento da realidade objetiva de algo, nunca é imediatamente prática. O que acontece na ideologia é que essa “realidade objetiva”, que é apresentada como fundamento justificativo de um projeto político, é, na verdade, uma criação da própria ideologia, a serviço desse mesmo projeto. O projeto político acaba sendo, no fundo, o único conteúdo real da ideologia política. Isso tinha, naturalmente, de ser assim; mas a ideologia o oculta e, precisamente por isso, é ideologia.

2. Exemplos: a) O marxismo. — O marxismo, por exemplo, cria a realidade “objetiva” da classe social, na qual funda seu projeto revolucionário de eliminação da sociedade de classes. O marxismo cria a classe social da qual ele mesmo fala: a classe social que reúne todos os requisitos para servir de fundamento a esse projeto político. Só uma classe social marxista ou, em outras palavras, só uma classe social que seja uma “realidade” marxista pode servir de fundamento para um projeto político marxista, para uma para uma práxis marxista.

b) O nacionalismo. — O mesmo acontece com a realidade “objetiva” da nação, que o nacionalismo apresenta como fundamento de seu projeto político. A nação que contém os elementos necessários para fundar esse projeto — a nação que está em condições de servir de justificação a essa práxis política — não existe independentemente do nacionalismo. Essa “nação” nacionalista é uma criação do próprio nacionalismo, em ordem a seu projeto político e com vistas às necessidades de tal projeto.

3. Estrutura do pensamento ideológico. — Não existe, pois, um momento verdadeiramente teórico na estrutura do pensamento ideológico. Podemos dizer que sua estrutura está composta por três momentos de práxis: a) primeiro, o momento de uma práxis sem fundamento racional; b) depois, o momento de uma práxis teorizada, que se apresenta como autêntica “teoria prática”, ocultando assim o primeiro momento; c) e, finalmente, o momento de uma práxis manifesta e com aparente justificação racional. A práxis formulada no primeiro momento se torna patente no terceiro, como conclusão e exigência “lógica” do segundo. Se a ideologia, como afirma Julien Freund, é uma “ideia transformada em desejo” [2], o é porque foi antes, primeiramente, um desejo transformado em ideia.

O que, na ideologia, se apresenta como “teoria”, como conhecimento de uma “objetividade”, é, na verdade, um recurso instrumental a serviço de uma práxis, de uma ação previamente formulada. A razão começa a operar depois da formulação da práxis, motivo por que sua função não é configuradora (da práxis), mas somente instrumental. Trata-se, portanto, de uma razão estratégica, que se limita a proporcionar condições para o êxito da ação.

O suposto exercício da racionalidade teórica é só pseudo-teoria, pois é precedido por uma posição prática que esse exercício não medeia nem submete à crítica; senão que, pelo contrário, é esta mesma posição prática que medeia esse exercício e é fortalecida por ele de maneira acrítica. Nesse sentido, a ideologia é uma forma de sofística; mas se trata de uma sofística que mascara sua condição sob a aparência de uma fundamentação objetiva da ação que ela mesma postula [3].

Referências

  1. “A sofística questionava a racionalidade da ordem política” vigente, afirmando que “a política era apenas vontade”, isto é, expressão impositiva daquela vontade que conseguia fazer-se valer em preferência às demais. O saber propriamente político, nesse sentido, consistia para o sofista em certa “perícia que capacitava uma vontade” individual “para se impor às outras. A razão política”, por conseguinte, não era mais do que pura “razão estratégica, orientada ao êxito de uma vontade política, e não à reta configuração da própria vontade” (Alfredo Cruz Prados, Ethos y polis, p. 96s).
  2. La esencia de lo político. Madrid: Editora Nacional, 1968, p. 527.
  3. Esse texto, salvo os subtítulos, é uma tradução de Alfredo Cruz Prados, Ethos y polis: bases para una reconstrucción de la filosofía política. 2.ª ed., Pamplona: EUNSA, 2006, p. 97s.
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