I. Esclarecimentos preliminares
Por Igreja Ortodoxa designa-se o conjunto de jurisdições eclesiásticas — presentes sobretudo em nações orientais, como veremos abaixo — que se encontram em situação de cisma relativamente à Igreja Católica Apostólica Romana. Trata-se de comunidades não-católicas que (a) ou recusam sujeitar-se ao Sumo Pontífice, enquanto é chefe da Igreja, ou (b) se excluem da comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos [1]. Tais comunidades, direta ou indiretamente oriundas do Grande Cisma de 1054, podem enquadrar-se, de acordo com certos autores, no grupo das assim chamadas "igrejas orientais dissidentes ou separadas" de Roma, a saber: (1) a igreja nestoriana; (2) as igrejas monofisistas ou não-calcedonianas; e (3) as igrejas ortodoxas, de cuja reunião é composta a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa, como é conhecida por seus fiéis [2]. Não entram nesta classificação, é preciso lembrar, as igrejas católicas orientais, comunidades sui iuris em plena comunhão com o Papa e, portanto, com o restante da Igreja. A elas pertencem várias igrejas de tradição alexandrina (coptas e etíopes), antioquena (maronitas e sírios), armena e bizantina, sendo esta a mais numerosa (abarca desde católicos ítalo-albaneses até croatas, húngaros, ucranianos etc.).
Historicamente vinculada aos quatro antigos patriarcados de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Constantinopla, a Igreja Ortodoxa compreende hoje uma série de igrejas autocéfalas locais que se podem dividir, para fins de simplificação, em duas grandes famílias: a igreja eslava (Rússia, Sérvia, Romênia, Bulgária e Geórgia) e a igreja grega (Chipre e Grécia). Além destas, também pertencem à comunhão ortodoxa as igrejas da Polônia e da Albânia. A Igreja Ortodoxa abrange ainda outras jurisdições que, apesar de não serem autocéfalas em sentido estrito, gozam de certa autonomia e poder de autogoverno: são as igrejas da China, do Japão, da Finlândia, da República Tcheca e Eslováquia, além do arcebispado do monte Sinai. Garças à variedade e descentralidade organizacional que as caracteriza, muitas jurisdições ortodoxas possuem comunidades em diáspora na Austrália e na América (particularmente nos Estados Unidos e no Brasil) [3]. Embora não possuam nenhuma figura equivalente ao que o Papa representa para os católicos, os ortodoxos têm como vínculo visível de unidade, ao menos num sentido lato e não jurídico, o Patriarca Ecumênico de Constantinopla.
II. Alguns princípios de eclesiologia
Antes de compreender as disposições do atual direito canônico a respeito da comunhão em comunidades que, embora acatólicas, preservam válidos aos olhos da Igreja alguns dos sete sacramentos, é importante ter presente que Nosso Senhor Jesus Cristo fundou apenas uma única Igreja [4], instituída para a salvação de todos e constituída na terra ao modo de verdadeira sociedade visível e de natureza externa, sujeita ao governo do Romano Pontífice e cujos membros, reunidos pela regeneração de um só Batismo, são exteriormente reconhecidos pela profissão da mesma fé e pela obediência ao mesmo regime religioso [5]. Constituindo uma sociedade necessária à salvação não só por necessidade de preceito, mas também por necessidade de meio, de sorte que, fora dela, ninguém pode efetivamente salvar-se, Igreja Católica é a única depositária da verdade e dos dons espirituais que possam porventura encontrar-se em comunidades cristãs separadas, de cujos membros (a) a Igreja, pela autoridade que lhe foi conferida, (b) ou Cristo, segundo o mistério de sua providência, podem servir-se como instrumentos colativos da graça divina [6].
Disto se pode concluir que, enquanto sociedade religiosa, nenhuma seita ou igreja dissidente pode ser considerada, sob qualquer aspecto, membro ou parte da verdadeira Igreja, como se esta se reduzisse a uma confederação de denominações cristãs. Donde se vê que, enquanto organismos religiosos separados da unidade da fé e da comunhão no mesmo Corpo místico, estas comunidades não podem constituir per se meios úteis e eficazes de salvação; antes, pelo contrário, são obstáculos à consecução da vida eterna. Se, portanto, os fiéis que nestas comunidades erram de boa-fé chegam a salvar-se, isto se dá apenas acidentalmente e na medida em que, por disposição da divina providência ou pela vontade positiva da Igreja Católica, tais fiéis recebem as graças de que somente a verdadeira Igreja de Cristo, a quem foram de algum modo incorporados, é a única e fiel depositária.
Nesse sentido, tudo o que estas comunidades retêm dos tesouros da Redenção, é da Igreja Católica que o receberam como de sua fonte própria e legítima. Permanecendo pois na linha autêntica da sucessão apostólica, a hierarquia eclesiástica dos cristãos ortodoxos preserva, de facto, o poder e as faculdades da Ordem outrora conferida no seio da Igreja e, por isso, pode celebrar e conferir validamente os sacramentos, inclusive a Eucaristia [7]. Como, porém, "uma coisa é ter, e outra é ter retamente" e "uma coisa é não dar, e outra é não dar bem", como diz S. Agostinho [8], os separados da Igreja quer por heresia, quer por cisma, tendo recebido o Batismo — por cujo caráter indelével permanecem sob a jurisdição da Igreja, com qual mantêm uma conexão real, embora imperfeita [9] — e o sacramento da Ordem, ao qual se segue o poder consecratório, podem oferecer o Santo Sacrifício em que Nosso Senhor se faz presente sob as sagradas espécies. Fazem-no contudo ilicitamente, visto estarem apartados da comunhão eclesial, e, por conseguinte, como ensina S. Tomás de Aquino, não recebem os celebrantes o fruto espiritual que do Sacrifício lhes poderia advir [10].
III. A legislação atual
Ora, a Santa Igreja, como dispensadora da Redenção, pode permitir que naquelas circunstâncias, prescritas sempre pelo direito, em que não haja ofensa à unidade eclesial nem perigo de adesão formal ao erro ou de aberração na fé [11], seus fiéis recebam os Santos Mistérios de ministros acatólicos que pela sucessão apostólica tenham verdadeiros sacramentos. Com efeito, se é certo haver entre os dissidentes muitos filhos desconhecidos [12], nascidos e batizados sem culpa pessoal em seitas separadas, os quais, ao menos em voto, aderem à verdade católica, a Igreja pode e tem o direito de conferir não apenas a estes as graças que de outra maneira lhes seriam inacessíveis, mas sobretudo a seus filhos notórios que, em casos especiais, estão impossibilitados de dirigir-se a um ministro católico. Por isso, já o Concílio Vaticano II, tendo em vista o bem espiritual das almas e para favorecer a união com as igrejas orientais separadas, estabeleceu a seguinte norma:
[...] podem ser conferidos aos orientais que de boa-fé se acham separados da Igreja Católica, quando espontaneamente pedem e estão bem dispostos, os sacramentos da Penitência, Eucaristia e Unção dos enfermos. Também aos católicos é permitido pedir os mesmos sacramentos aos ministros acatólicos em cuja igreja haja sacramentos válidos, sempre que a necessidade ou a verdadeira utilidade espiritual o aconselhar e o acesso ao sacerdote católico se torne física ou moralmente impossível [13].
O atual Código de Direito Canônico, ao legislar sobre a communicatio in sacris entre católicos e acatólicos, reproduziu esta mesma norma no cânone 844, § 2.º:
Todas as vezes que a necessidade o exigir ou a verdadeira utilidade espiritual o aconselhar, e desde que se evite o perigo de erro ou de indiferentismo, os fiéis a quem seja física ou moralmente impossível recorrer a um ministro católico, podem licitamente receber os sacramentos da Penitência, Eucaristia e Unção dos enfermos dos ministros não-católicos, em cuja igreja existam aqueles sacramentos válidos.
A legislação atual, portanto, exige para a lícita comunhão numa igreja ortodoxa: a) estado de necessidade; b) que se evite qualquer perigo de erro [14] ou indiferentismo; c) que o fiel esteja física ou moralmente impossibilitado de receber de um ministro católico os sacramentos (e apenas estes) da Penitência, Eucaristia e Unção dos enfermos. O mesmo cânone, § 3.º, contempla ainda a possibilidade de os ortodoxos receberem esses três sacramentos das mãos de um ministro católico:
Os ministros católicos administram licitamente os sacramentos da Penitência, Eucaristia e Unção dos enfermos aos membros das Igrejas orientais que não estão em comunhão plena com a Igreja Católica, se eles os pedirem espontaneamente e estiverem devidamente dispostos; o mesmo se diga com respeito aos membros de outras igrejas, que, a juízo da Sé Apostólica, no concernente aos sacramentos, se encontram nas mesmas condições que as igrejas orientais referidas.
Observação. — Devido à não reciprocidade (de base, aliás, doutrinal) [15] que há neste campo entre as disciplinas católica e ortodoxa, deve-se ter em mente que, apesar da permissão canônica, os fiéis católicos apenas dificilmente poderiam, sem grave incômodo e risco de escândalo, receber a SS. Eucaristia de um sacerdote cismático, pois a Igreja Ortodoxa proíbe seus ministros de oferecerem qualquer um dos sacramentos a cristãos não-ortodoxos e seus fiéis de os receberem de sacerdotes não-ortodoxos.
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