Na festa da Epifania, os Três Reis Magos que visitam o Menino Jesus trazem-lhe presentes: ouro, incenso e mirra — dádivas um tanto incomuns para se dar a uma criança, observou certa vez o Papa Bento XVI. Mas aquele infante era diferente: Deus feito carne (daí o incenso), que viria a reinar pelo lenho da Cruz (daí o ouro), na qual morreria por todos os homens (daí a mirra).

Não obstante a peculiaridade dos dons trazidos por essas personagens do Oriente, sua dimensão gratuita permanece. “O povo de Tiro vos traz seus presentes, os grandes do povo vos pedem favores”, diz o Salmo 44 (v. 13). Nossos chás de berço também demonstram: nós gostamos de presentear as crianças. E não existe melhor forma de celebrar essa Epifania senão oferecendo também nós algum presente ao Menino que nasceu em Belém.

E por que não brinquedos, se as crianças gostam tanto deles?

Nossos leitores talvez achem jocosa a sugestão, mas foi o próprio Jesus quem a deu a Santa Margarida Maria Alacoque, no dia de sua admissão à vida religiosa, 6 de novembro de 1672. O fato, ela mesma no-lo conta em sua Autobiografia

No dia em que consegui o tão almejado bem da admissão, meu divino Mestre quis receber-me por esposa, mas de um modo que não consigo exprimir. Direi somente que se apresentou a mim, e tratou-me como uma esposa do Tabor, o que era, para mim, mais duro que a morte, pois percebia estar em desacordo com meu Esposo, a quem via, diante de mim, todo desfigurado e dilacerado sobre o Calvário. Mas me disse: “Deixa que Eu faço cada coisa a seu tempo, pois quero que tu sejas um joguete nas mãos de Meu amor, o qual anseia divertir-se contigo como as crianças o fazem com seus brinquedos, a seu bel-prazer. Cumpre que tu te abandones, sem que resistas ou fiques com o pé atrás, e deixa-me contentar-me às tuas custas. Mas tu não perderás nada”. Prometeu-me não me deixar jamais, dizendo-me: “Esteja (sic) sempre prestes e solícita a receber-me, pois desejo fazer de ti Minha morada, para conversar e entreter-me contigo” [i].

Percebam, no entanto: o presente que Jesus queria era ela mesma; o nível de entrega que era o de um brinquedo. Jesus se compara a uma criança, que anseia divertir-se conosco como se fôssemos peças de lego, bonecos, carrinhos em suas mãos. O curioso é que, na Epifania (e em todo este Tempo do Natal, na verdade), nós contemplamos a Deus em faixas de recém-nascido, na manjedoura de Belém, nos braços de Maria: o Filho eterno de Deus não se comparou simplesmente a uma criança, Ele se fez de fato uma delas.

Basta observar como se desenrola a história da nossa vida para compreender o quão adequada é esta analogia. Às vezes, determinadas coisas que nos acontecem, seja para o bem seja para o mal — mas principalmente para o mal: perdas, acidentes, tragédias, “apertos” financeiros —, deixam-nos a impressão (especialmente a nós que cremos) de que estamos mesmo à mercê dos “caprichos” de uma criança, lá nos céus, que arranja e “desarranja” tudo aqui em baixo conforme seus desejos; que brinca com um de nós agora, se diverte um pouco e de repente nos “chacoalha” com violência, nos joga para um canto da sala e não quer mais saber de nós… (Mais ou menos como o menino Andy dos filmes Toy Story, que vai “enjoando” de alguns brinquedos à medida que vai ganhando outros.)

No entanto, o que nos parece ser os “desmandos” de um Deus caprichoso não passa do plano sapientíssimo e ordenadíssimo de sua Providência. Não estamos nas mãos de um tirano, mas de um Senhor amoroso, que se aproveita até de nossos pecados, e do que vemos como grandes “desgraças”, para derramar em nós as suas graças e fazer cumprir em nós a sua vontade.

No clássico da literatura italiana I Promessi Sposi (“Os Noivos”), de Alessandro Manzoni, o grande fio condutor de toda a história é justamente a Providência divina. Nem Renzo nem Lúcia, nem o heroico Frei Cristóforo nem o covarde Dom Abbondio: o protagonista do romance é o próprio Criador, que conduz as suas criaturas pelos caminhos e “descaminhos” que lhe aprazem. Aos personagens nem sempre as coisas fazem sentido (na verdade, muitas vezes elas não parecem fazer sentido algum), mas no final tudo se encaixa, como esclarece o narrador:

Depois de muito debaterem e procurarem juntos, [Renzo e Lúcia] concluíram que muitas vezes os problemas vêm porque se lhes deu ocasião, mas que a conduta mais cautelosa e mais inocente não basta para mantê-los distantes, e que quando vêm, com ou sem culpa, a confiança em Deus os suaviza e os torna úteis para uma vida melhor. Essa conclusão, apesar de tirada por gente humilde, nos pareceu tão sensata que pensamos em colocá-la aqui, como sentido de toda a história [ii].

Por exemplo: não fosse a recusa covarde de Dom Abbondio em unir Renzo e Lúcia, não se converteria l’Innominato — um homem cruel e misterioso, que se arrepende de seus pecados, se confessa com o Cardeal Frederico Borromeu e muda decididamente de vida, numa das páginas mais belas de todo o romance. O escritor Otto Maria Carpeaux diz, sobre a obra, que:

É um dos mundos mais completos que jamais um poeta criou: mantido em equilíbrio perfeito pela mão de Deus. Manzoni, católico de fé firme, acreditava na Providência divina; e por isso, não se duvida nunca do desfecho feliz da tragédia, e essa fé transforma o romance em símbolo da harmonia celeste [...]. Nos Promessi sposi estão presentes todos os sofrimentos infernais dos quais a humanidade é vítima: tirania, violência, paixões, injustiças e a peste e até aquele inimigo mais terrível da espécie, a burrice covarde, na pessoa de Don Abbondio, que é uma criação de espírito cervantino. Mas os horrores estão atenuados pela perspectiva histórica; e até a trivialidade da pequena gente é transfigurada pelo humorismo irônico e indulgente. De maneira cósmica, a Providência divina e os atos humanos estão entrelaçados [...]. É o maior romance histórico que jamais se escreveu [iii].
“A Adoração dos Reis Magos”, pelo Frei Juan Bautista Maíno.

Como dissemos, esse universo perfeitamente ordenado e harmônico não é uma criação literária de Manzoni; se olharmos para a nossa experiência pessoal, é assim mesmo que as coisas se dão na realidade. A nossa própria existência não é fruto de um sem-número de acasos e eventos fortuitos? Quantos de nós, por exemplo, não viemos ao mundo por um desejo único e exclusivo de Deus — “frustrando” os planejamentos de tanta gente? Quantos ainda não somos o aproveitamento dos pecados graves de outrem — a exemplo de Cristo, em cuja genealogia estão o adultério de Davi e a prostituta Raab (cf. Mt 1, 5-6)? A nível sobrenatural ainda, quantos encontros e “desencontros” não foram necessários para que nos convertêssemos e levássemos uma vida na graça?

Nesse sentido, o pedido de Jesus a Santa Margarida (e a cada um de nós) nada mais é que um chamado a que colaboremos pessoalmente com esta belíssima obra divina em nós. Poucas páginas antes dessa revelação do Senhor, a Mestra religiosa da santa lhe dissera: “Ide pôr-vos na presença de Nosso Senhor como um painel diante do pintor” [iv]. Outra imagem belíssima para nossa meditação: Deus como artista; e nós, uma tela em branco! E pouco depois, falando da obediência devida aos superiores, Cristo lhe diz: 

Eu me prezo de que preferiste a vontade de tuas superioras à minha, mormente em momentos onde elas te proibiram de seguir o que Eu te disse. Deixa-as fazer de ti o que quiserem: darei um jeito de cumprir meus planos, muito embora Me sirva de caminhos aparentemente antagônicos e opostos [v].

Não tenhamos medo, pois, de nos entregar ao divino Infante, como “joguetes”, “brinquedos” mesmo, nas suas mãos — eis um verdadeiro “programa” não só para esta Epifania, mas para toda a nossa vida.

Referências

  1. Santa Margarida Maria Alacoque, Autobiografia. Trad. de Lucas Ferreira. 1. ed. Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica, 2022, pp. 73-74.
  2. Alessandro Manzoni, Os Noivos. Trad. de Francisco Degani. São Paulo: Nova Alexandria, 2012, p. 669.
  3. Otto Maria Carpeaux, História da literatura ocidental. 3. ed. Brasília: Senado Federal, 2008, p. 1486.
  4. Santa Margarida Maria Alacoque, op. cit., p. 66.
  5. Ibid., p. 72.

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