Este ano marca o 75.º aniversário da libertação de Auschwitz, campo de concentração nazista. Localizado no território da Polônia ocupada pelos alemães, Auschwitz começou como um campo para prisioneiros políticos poloneses, mas tornou-se um epítome simbólico do Holocausto, o extermínio sistemático do povo judeu. Também ao longo deste ano celebraram-se vários aniversários na senda do Dia da Vitória na Europa (n.d.t.: o dia 8 de maio), dia da derrota do Terceiro Reich: entre eles, o aniversário da libertação do campo de concentração de Dachau, em 29 de abril.

S. João Paulo II, em sua Encíclica “Evangelium vitae”, caracterizou os tempos modernos como uma luta entre a “cultura da vida” e a “cultura da morte”. Embora ele tenha escrito a Encíclica em 1995, seria um erro pensar que a “cultura da morte” é um fenômeno exclusivo das décadas recentes.

Auschwitz recorda-nos que os regimes totalitários do séc. XX adotaram a morte como instrumento de política estatal, que solapou a inviolabilidade da vida humana de cada indivíduo. Judeus (e não apenas judeus) foram sujeitos à execução arbitrária nas mãos de nazistas alemães, não por um “crime” de que pudessem ser culpados (embora os alemães formalistas tenham criado “crimes” — inclusive “raciais” — para justificar o que faziam), mas porque as vítimas eram quem eram. Ser judeu na Europa ocupada pelos nazistas era motivo suficiente para ser morto. Auschwitz foi simplesmente a encarnação de toda essa mentalidade.

“Ser judeu na Europa ocupada pelos nazistas era motivo suficiente para ser morto.”

Autores contemporâneos insistem em restringir o termo “Holocausto” ao extermínio dos judeus europeus, à “Solução Final” da questão judaica (Endlösung der Judenfrage). Eu entendo o esforço por reconhecer a singularidade do que ocorreu aos judeus europeus, tanto em escopo quanto em grau.

Mas não podemos esquecer que a eliminação dos judeus europeus foi parte de uma agenda racial e eugênica muito mais ampla abraçada pelos nazistas, que começou muito mais cedo com o extermínio de cidadãos alemães da própria Alemanha, por considerar-se que viviam uma “vida indigna de ser vivida” (lebensunwertes Leben). Na verdade, essa mesma ideia surgiu treze anos antes dos treze anos de reino de terror que foi o nazismo: a expressão “lebensunwertes Leben” apareceu no título de um livro publicado em 1920 por… dois professores. 

O Holocausto foi uma encarnação particularmente cruel dessa ideia, mas ela não surgiu do nada: as sementes do Holocausto foram plantadas no momento em que o direito de uma vida inocente deixou de ser autojustificável; quando a vida inocente em si mesma deixou de ser motivo o bastante para que a protegessem; quando a vida inocente passou a precisar de um outro motivo para permanecer inviolável. A essência disso foi bem captada no filme Julgamento de Nuremberg (1961), na cena em que o juiz americano Dan Haywood (Spencer Tracy) visita o nazista Ernst Janning (Burt Lancaster) em sua última cela prisional. “Aquelas pessoas… aqueles milhões de pessoas… eu nunca pensei que fosse chegar a tanto. Acredite”, declarou Janning. 

“Herr Janning”, respondeu Haywood, “chegou a tanto na primeira vez que você condenou à morte um homem que você sabia ser inocente”.

Embora Auschwitz tenha-se tornado um símbolo do extermínio dos judeus europeus, não nos podemos esquecer dos muitos outros crimes contra a vida humana praticados em toda a rede de campos de concentração montada pelos nazistas. Dachau era praticamente uma comunidade religiosa católica — ou mesmo um seminário —, e escreverei posteriormente sobre alguns daqueles sacerdotes que, em algum momento, partiram de Dachau para os Estados Unidos. Os ciganos também foram massacrados nos campos. Prisioneiros foram usados em experimentos “médicos” discutíveis — que estavam mais para sádicos (por exemplo, os “experimentos com água gelada” em Dachau, nos quais sacerdotes e prisioneiros de guerra soviéticos eram imersos em água gelada para ver quanto tempo sobreviviam e, assim, aplicar os dados colhidos desses Untermenschen, desses povos inferiores, ao pedigree da nação germânica, que sobrevoava, em bombardeiros, o gélido Atlântico Norte). O grau de colaboração de cientistas, em geral, e de médicos, em particular, com os nazistas era elevado. O dr. Josef Mengele era apenas o zênite daqueles que prostituíam suas profissões.

O desfecho da II Guerra Mundial levou, pelo menos, a um esforço temporário de proteger o direito à vida e a dignidade humana em instrumentos legais projetados pelos arquitetos da ordem pós-guerra. A nova constituição da Alemanha Ocidental, por exemplo, consagrou seu compromisso de abertura à “inviolabilidade da dignidade humana”. A ética médica do pós-guerra (por exemplo, o Código Internacional de Ética Médica da Associação Médica Mundial) exortou os doutores a sempre “respeitar a vida humana” e a obter [dos pacientes] consentimento informado. As lições do Holocausto foram universalizadas como uma ética da inviolabilidade da dignidade humana.

O Holocausto tem, é claro, uma dimensão única como testamento da dimensão letal do antissemitismo. Isso ninguém pode negar. Mas agora que celebramos o 75.º aniversário da libertação de Auschwitz — tanto como símbolo da Solução Final quanto como nadir de um período de três meses e meio, em 1945, quando campos de concentração foram libertados e seus horrores dados a conhecer —, não nos esqueçamos de uma verdade fundamental: tudo isso começou quando o primeiro homem inocente foi, não obstante, deliberadamente assassinado.

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