Em geral, acredita-se que a inclusão da festa de Corpus Christi no calendário universal da Igreja tenha se dado com a visão mística de Santa Juliana, uma freira agostiniana de Liège, na Bélgica, no ano de 1209. Pela mão providencial da história, o arquidiácono de Liège tornou-se o Papa Urbano IV, que instituiu a festa para toda a Igreja. 

Mas a devoção à presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento não começou no século XIII, nem a controvérsia sobre esta difícil realidade teológica. Séculos antes, um milagre eucarístico envolvendo o Papa São Gregório Magno, que reinou de 590 a 604, trouxe à tona essa questão fundamental e acabou por se tornar uma imagem muito representada na arte cristã — seu título: A Missa de São Gregório.

Conhecido por emprestar seu nome ao canto gregoriano, o Papa Gregório fez mudanças e acréscimos notáveis à liturgia romana, desde a mudança do Pai-nosso para seu lugar atual na Missa até a proibição do uso de casulas pelos subdiáconos. Na arte, porém, talvez ele seja mais conhecido por uma cena em que está celebrando Missa, com Cristo lhe aparecendo milagrosamente sobre o altar.

A piedosa história do acontecimento foi relatada por Paulo, o Diácono, um monge beneditino do século VIII que viveu na Abadia de Monte Cassino, perto de Roma. Em sua biografia do Papa Gregório, mais tarde recontada na Legenda Áurea do século XIII, Paulo relata a história de uma “matrona incrédula” que vai à igreja trazendo o pão que ela mesma tinha assado para ser usado na Missa. Quando se aproximou para receber a Comunhão, Gregório reparou que ela ria, duvidando; o Papa a interrogou e a mulher disse que não podia acreditar que o pão que ela própria fizera, pelas simples palavras da consagração, se pudesse tornar o Corpo e o Sangue de Cristo. Ouvindo isto, Gregório rezou com urgência para que se curasse a incredulidade da mulher. Então, de repente, uma hóstia tomou a aparência de carne e sangue reais, do tamanho aproximado de um dedo humano. A mulher, vendo isto, voltou a ter fé na presença real de Cristo e pôs-se de joelhos, chorando de arrependimento.

Ao longo dos séculos, conforme ia sendo contada e recontada a história, alguns pormenores foram mudando em sua representação visual. O pequeno pedaço de carne foi gradualmente substituído pelo corpo inteiro de Cristo aparecendo sobre o altar, e a matrona incrédula foi substituída por um diácono. Foram aparecendo também versões sucessivas em pinturas, iluminuras de manuscritos, gravuras e até mesmo esculturas, muitas vezes encomendadas por particulares como imagens devocionais para oração e contemplação.

“A Missa de São Gregório”, de um pintor espanhol.

Na versão aqui apresentada, da coleção do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, São Gregório está rezando a Santa Missa num cenário litúrgico repleto de detalhes. As galhetas estão sobre uma pequena prateleira perto do altar, a patena com a hóstia está sobre o corporal, e um elaborado frontal cobre o altar. Apoiado sobre uma almofada, o missal está aberto em uma imagem da crucificação, indicando que está a ser rezada a Oração Eucarística, com uma grande letra iluminada bem visível. Sobre o altar repousa a tiara tríplice, indicando a identidade e posição hierárquica de Gregório.

Vestido com uma casula sobre uma dalmática, costume já antigo nesta altura para os bispos que celebravam Missas pontificais solenes, Gregório é assistido por um diácono e um subdiácono que seguram velas e levantam a sua casula durante a elevação do cálice. Milagrosamente, é o próprio Cristo sobre o altar que verte o seu Precioso Sangue dentro do cálice do Papa. Embora a história original mencione apenas uma pequena aparição de carne no milagre eucarístico, uma cena como esta não pretende ser historicamente exata, mas, sim, reflexo de uma realidade teológica mais ampla: a carne e o sangue reais de Cristo, presentes na Eucaristia, são fruto de sua Paixão, oferenda da qual Ele quis que se fizesse memória na refeição sacrifical da Missa. Ao fundo, um vitral proeminente da Virgem com o Menino reforça a realidade carnal de Cristo, o Verbo que se encarnou no ventre de Maria, tal como o pão feito por uma mulher tornou-se carne nas mãos de um Papa santo.

Comum a quase todas as representações de A Missa de São Gregório é o aparecimento de instrumentos da Paixão, reforçando a ligação entre a missão salvífica de Cristo e o sacrifício eucarístico. Conhecidos como arma Christi, literalmente as “armas de Cristo” usadas para derrotar Satanás, muitas vezes elas aparecem sem nenhuma cerimônia como figuras desarticuladas em uma parede de fundo, embora neste exemplo o artista as tenha trabalhado num cenário arquitetônico credível. Atrás da tiara papal, os instrumentos da Paixão aparecem num tecido suspenso, como uma cortina, característica comum dos altares medievais. São claramente visíveis o véu de Verônica, a lança que transpassou o lado de Cristo na Cruz, o martelo que pregou as suas mãos e os seus pés, um jarro e um pano usados por Pilatos para lavar as mãos da morte de Jesus, a esponja sagrada com que se lhe ofereceram fel e vinagre e, por fim, os dados utilizados pelos soldados romanos para lançar a sorte sobre as vestes de Cristo

Atrás da figura de Nosso Senhor, em pé, aparecem a Cruz, os pregos da crucificação e a tenaz usada para retirar os pregos quando o corpo de Cristo foi retirado do madeiro. Ao mesmo tempo que recordam os eventos da história sagrada, todos esses instrumentos sublinham com insistência a humanidade verdadeira e temporal de Cristo, e como a ação divina continua na história através da vida sacramental da Igreja.

Como imagem devocional, A Missa de São Gregório serve hoje como sempre serviu. Proporciona ao espectador um agradável encontro com a própria pedagogia da salvação de Cristo. A sua Paixão terrena, que é um acontecimento histórico real, não terminou simplesmente no ano 33 d.C. Através da instituição da Igreja e da sua estrutura hierárquica, a missão de Cristo continua. Na experiência da maior parte dos fiéis, sua presença permanece velada sob a aparência do pão e do vinho. Embora por vezes aconteçam, os milagres eucarísticos são raros, pois se dão em momentos de especial necessidade e sob circunstâncias específicas. A Missa de São Gregório lembra ao cristão que Deus continua a atuar na história, tanto nas mãos do Papa mais santo como nas do mais humilde sacerdote, transformando a sua carne em pão para a vida do mundo.

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