Advertência prévia da edição de J.-P. Migne [1]. — Eis aqui um fragmento, erudito leitor, das cartas festivais [2] de Atanásio, cuja perda é verdadeiramente deplorável. Foram escritas em grande número pelo santo pastor quando, no exílio, vivia em regime de solidão. Mesmo nos mais remotos lugares do deserto, tendo na memória a sua grei, oprimida por dificuldades e tragédias diárias por conta do furor dos arianos, enviava-lhe cartas, quase sempre consolatórias, para serem lidas na reunião dos irmãos, as quais foram daí compiladas em um só corpo epistolar [...].

A carta abaixo, por nós descoberta em manuscrito antiquíssimo [3], data do ano 356, quando as igrejas de Alexandria, roubada aos católicos, foram entregues por ordem de Constâncio II aos arianos, razão por que escreveu Atanásio esta carta consolatória. Desta, extraiu o editor somente dois fragmentos, omitidos os trechos em que Atanásio, como é de crer, tratava com mais vagar e detalhe dos atos dos arianos em sua invasão das igrejas. Seja como for, por pequenas que sejam essas linhas, aqui vingadas da obscuridade e da injúria do tempo, revelam-nos coisa digna de saber: que os arianos converteram igrejas em casas de negócios e domus veli, isto é, tribunais de justiça.


Começa a carta de S. Atanásio, bispo de Alexandria, a seus filhos

Santo Atanásio, retratado por Francesco Bartolozzi.

[1]. Que Deus vos console! Tomei conhecimento de que não só isso vos contrista, mas de que também vos entristece o fato de terem alguns tomado as igrejas por violência, enquanto vós permaneceis de fora; eles ocupam, sim, os lugares; vós porém tendes a fé apostólica. Eles, embora dentro dos templos, estão do lado de fora; mas vós, conquanto estejais fora dos templos, tendes a fé dentro <de vós>. Vejamos pois o que é maior: se o templo, se a fé; ora, é evidente que a verdadeira fé. Quem, portanto, mais perdeu, ou quem mais possui: o que ocupa o lugar, ou o que retém a fé? Sim, é bom o templo, quando ali é pregada a fé apostólica; é santo, se ali habita o Santo. […] 

[2]. Bem-aventurados sois vós, que estais, pela fé, na Igreja: habitais nos fundamentos da fé, e tendes suficiente satisfação, a grandeza da fé, que em vós permanece inconcussa; ela, com efeito, vos foi transmitida pela Tradição apostólica, e frequentemente a tentou abalar a execranda inveja, mas não <o> pôde: na verdade, mais se apartaram eles pelas maquinações que <contra ela> urdiram. É isso, pois, o que está escrito: “Tu és o Filho de Deus vivo”, confessado por revelação do Pai pela boca de Pedro, que mereceu ouvir: “Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai, que está nos céus” etc. Ninguém, portanto, irá prevalecer jamais contra a vossa fé, diletíssimos irmãos: se porventura nos devolver Deus algum dia as igrejas — e nisto acreditamos! —, independente da devolução das igrejas, basta-nos a fé. E para não soar talvez demasiado duro falando sem Escrituras, é bom que vos aduza testemunhos das Escrituras.

Lembrais-vos de que o Templo estava, de fato, em Jerusalém: o Templo não estava em lugar deserto, e gentes estranhas o invadiram. Depois disso, estando o Templo ainda em Jerusalém, desceram exilados <os judeus> para a Babilônia, por juízo de Deus que não só os provava, mas corrigia e, assim, manifestava a pena <reservada> aos ignorantes por intermédio de inimigos sedentos de sangue. Tomaram, sim, o Templo gentes estranhas, mas desconheciam o Senhor do Templo. Mas <Ele>, entrementes, nem lhes respondia nem lhes dirigia palavra, porque estavam separados da verdade. Que lhes aproveita o lugar, pois? Eis que agora os que ocupam os templos são acusados pelos que amam a Deus, porque fizeram deles espelunca de ladrões, casa de negócios e, ensandecidos, transformaram para si em tribunais de justiça o lugar santo, onde não lhes é lícito entrar.

Ouvimos estas coisas, diletíssimos, dos que de lá vieram, e até piores do que estas. Quanto mais parece que é deles a Igreja, tanto mais fora dela se encontram. E julgam estar dentro da verdade, quando são eles os exilados e cativos, e nenhum ganho têm em ter só para si a Igreja, porque é a verdade das coisas que se julga…

Notas

  1. Cf. PG 26, 1189-1190.
  2. As cartas festivais (epistulæ festales), também chamadas cartas pascais, eram uma forma de notificação anual do Patriarca de Alexandria, endereçada a todas as cidades e mosteiros de sua jurisdição eclesiástica, sobre a data de início do jejum quaresmal e, portanto, sobre o dia da celebração da Páscoa. O costume parece ter começado pouco depois do Concílio de Niceia, que, além de condenar a heresia ariana, também se ocupou de matérias disciplinares, como a uniformidade do calendário litúrgico, com a determinação precisa das principais festividades do ano (cf. W. Cureton, The Festal Letters of Athanasius. Londres, 1848, p. xxxvii). Não parece haver evidências, contudo, de que o fragmento aqui apresentado provenha de alguma carta pascal de S. Atanásio. (Nota da Equipe CNP.)
  3. Trata-se de um códice (Colb. 1783) do ano 800 d.C. (Nota da Equipe CNP.)

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