A penitência quaresmal vai além da abstenção de comida e bebida. Também diz respeito à restrição do “deleite da visão” e de sons agradáveis, que satisfazem nossos sentidos. Mortificação quer dizer o seguinte: devemos morrer para nós e dedicar mais tempo à oração e à penitência.

Esse esforço poderia ser embalde graças à imersão contínua em diversões agradáveis, mesmo que aparentemente inócuas. Na Itália, no início da modernidade, a ópera, uma das mais populares diversões públicas da época, era proibida temporariamente junto com qualquer outro “espetáculo” a fim de honrar a Quaresma

A ópera teve origem na Itália, no século XVI. Claudio Monteverdi foi o primeiro grande compositor a assumir a nova forma, transcrevendo a música para um libreto sobre a história mítica e musical de Orfeu (Orfeo), que estreou na celebração do carnaval de Mântua em 1607.

Retrato de Claudio Monteverdi, por Bernardo Strozzi.

A ópera era um acontecimento suntuoso, caracterizado por sua exuberante música vocal acompanhada não apenas por um conjunto musical, mas também por atores fantasiados, cenários elaborados e, depois de um tempo, casas de ópera belamente construídas. Um verdadeiro “espetáculo” para os sentidos e a imaginação! Se Monteverdi, que mais tarde se tornou sacerdote, compôs essa famosa ópera para o carnaval, será que poderia haver um contraponto para a Quaresma? 

Surge o oratório. Não estaríamos muito distantes da verdade se o descrevêssemos como uma ópera religiosa, apesar de a descrição ser bastante simplista. Ele preserva o drama da narração de uma história por meio de uma composição musical definida, mas sem fantasias, atuações ou cenários; em lugar de histórias míticas ou romances, volta a atenção para temas religiosos da Bíblia e dos santos, bem como para a alegoria. Preserva muito do apelo artístico da ópera ao mesmo tempo que se volta para temas edificantes, destinados a estimular a meditação durante a Quaresma, em vez de proporcionar entretenimento (embora eu tenha certeza de que ele mantém muito desse atrativo).

O oratório teve origem no Oratório de São Filipe Néri em Roma, o qual tinha uma sala de concerto, e dele tomou nome. Era uma localização perfeita, o centro da Contrarreforma em Roma. O primeiro oratório (embora fosse mais semelhante a uma ópera) foi executado lá em 1600, na verdade precedendo a famosa ópera Orfeo, de Monteverdi: Rappresentatione di Anima, et di Corpo, de Emilio de Cavalieri, uma alegoria de “Representação do Corpo e da Alma”, uma obra considerada parte essencial do desenvolvimento da ópera e do oratório. Os primeiros oratórios focavam no diálogo, como nas conversas religiosas de personagens santos (como os breves diálogos compostos por Pietro della Valle nas décadas seguintes). Às vezes os oratórios curtos eram agrupados em torno de um sermão.

O oratório virou moda, mas, à medida que foi se desenvolvendo, tornou-se mais longo, assemelhando-se a uma ópera sacra, como podemos ver nas composições de Alessandro Scarlatti e Antonio Vivaldi (por exemplo, em Juditha Triumphans, deste último compositor). Apesar de ter ficado famoso na Inglaterra como compositor de ópera, Handel passou a compor oratórios a partir da década de 1730, começando em italiano (como em suas óperas), embora tenha composto a maioria de seus 25 oratórios em inglês.

Por mais que associemos seu Messiah ao Natal, tema da primeira parte, na verdade ele foi executado no Tempo Pascal (o coro do Aleluia, é claro!), tendo estreado na Catedral de São Patrício em Dublin, no dia 13 de abril de 1742. Joseph Haydn preservou a conexão entre oratório e Quaresma quando estreou no Domingo de Ramos de 1798 sua versão para coral das Sete Últimas Palavras de Cristo, e sua Criação, no dia 19 de março de 1799, durante a Semana Santa. Com uma música tão exuberante assim, caberia a seguinte pergunta: depois que a ópera foi substituída pelo oratório, este não se tornou tão emocionante como ela, apesar de abordar um tema mais sagrado?

Alguns dos grandes oratórios têm, no entanto, muita profundidade espiritual. Na minha opinião, os maiores deles são os oratórios da Paixão compostos por Bach, executados durante as Vésperas na Sexta-feira da Paixão. Ninguém poderia acusar Bach de ter escrito essas Paixões para entreter, já que a linguagem deles é a de sacra sublimidade. Apesar de ter composto cinco (tendo revisado todos eles ao longo de 26 anos), somente dois deles nos chegaram em sua versão integral: o da Paixão segundo São Mateus e o da Paixão segundo São João.

Os oratórios apresentam arranjos musicais para o Evangelho, acompanhados de comentários e coros poéticos. Escritos em duas partes, preservam a estrutura segundo a qual a música era composta em torno de um sermão. Também preservam uma nota sombria para o dia santo por meio da exclusão dos metais de sonoridade mais festiva.

Os oratórios mantiveram sua proeminência depois do período barroco. Um exemplo particularmente digno de nota pode ser visto na adaptação de Edward Elgar do poema de São John Henry Newman sobre a morte e o purgatório, O Sonho de Gerôncio, em 1900 (embora Elgar não a considerasse um oratório; seja como for, muitas pessoas afirmam que se trata de um). Ela é digna de nota não apenas do ponto de vista artístico e espiritual, mas também por levar o gênero de volta às origens com os oratorianos, Ordem fundada por São Filipe Néri. Depois de sua conversão, Newman escolheu o Oratório durante seus estudos em Roma, atraído pela estabilidade do lugar para construir relações e evangelizar, inclusive por meio da música. Quando retornou à Inglaterra, fundou um oratório em Birmingham. Faz todo sentido que o texto de Newman tenha-se tornado uma expressão moderna da forma musical que teve origem no oratório original. 

Durante a Quaresma, tente abster-se de entretenimento e recorra ao oratório para algo mais edificante. Você pode começar com os exemplos que dei acima: Juditha Triumphans, de Vivaldi; a segunda parte do Messiah, de Handel; a Criação, de Haydn; A Paixão segundo São Mateus, de Bach; ou O Sonho de Gerôncio, de Elgar [i].

Notas

  1. O fato de a maior parte dessas composições estar em outros idiomas não deve ser um obstáculo para que as apreciemos. Com um bom mecanismo de pesquisa e uma ferramenta adequada de tradução, é possível buscar os libretos destas obras e acompanhá-las na íntegra, ária por ária (N.T.).

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