Existem várias formas de um médico influenciar as decisões clínicas a serem tomadas pelos pais em relação a seus filhos que estão em tratamento.

Certos estudos podem ser citados a favor da vontade do médico, e estudos apontando para uma direção diferente podem ser ignorados. É possível usar uma linguagem diretiva, emotiva e mesmo exagerada a fim de manipular, especialmente quando estão em discussão os resultados de várias opções possíveis de ser escolhidas. Números podem ser usados de modo similar: uma consulta deveria focar nos dois terços de pacientes que tiveram resultados ruins ou no um terço que teve resultados satisfatórios?

Essas formas de manipulação são uma preocupação constante da ética médica e ganham um tom dramático quando as equipes médicas discutem deficiências.

Às vezes a vontade de um médico de chegar ao resultado de sua preferência é tão forte, que ele acaba aderindo a práticas enganosas chamadas de “código lento” (slow code, manobras de reanimação propositalmente lentas, em casos de paradas cardiorrespiratórias) ou “código mostrar” (show code, que instrui a equipe médica a fingir manobras de reanimação). O médico diz aos pais que todo o possível será feito por seu filho (full code), mas, na verdade, o doutor e sua equipe não se comprometerão a um tratamento agressivo. Essa prática é defendida por alguns bioeticistas hoje, e com frequência é justificada pela opinião pessoal do médico de que não valeria a pena salvar a vida de uma criança em particular.

Na maioria das vezes, isso é feito por debaixo dos panos. Os médicos em geral são bons em evitar o escrutínio público de seus atos, particularmente nesse tipo de caso. A decisão de recusar tratamento a uma criança por causa de deficiência é distorcida por eufemismos como: parar “por compaixão” ou evitar tratamentos “onerosos” ou “extraordinários”.

Só para deixar claro: a distinção entre um tratamento vital, moralmente necessário, e um tratamento do qual se pode abrir mão — levada a cabo pela teologia moral católica na Alta Idade Média e início da Idade Moderna — é essencial nesses casos.

Todavia, o princípio de jamais provocar a morte de uma pessoa inocente, seja por ação, seja por omissão, não deve comportar absolutamente nenhuma exceção. Trata-se de uma exigência da dignidade da pessoa humana, especialmente quando se quer proteger populações mais vulneráveis, que correm o risco de ser marginalizadas por quem as vê como sendo inconvenientes. Tendo em vista a história da medicina ocidental, repleta de nuances no que diz respeito ao valor das pessoas com deficiência, devemos cuidar para que esse princípio seja sempre reforçado na prática médica.

Alfie Evans: o pai mostra aos jornalistas uma fotografia do filho.

Quanto à discussão corrente sobre o pequeno Alfie Evans, a um primeiro olhar, esse caso parece ter muito em comum com o debate travado, em 2017, a respeito do bebê Charlie Gard. E, de fato, existem semelhanças muito relevantes.

  • Assim como Charlie, Alfie é portador do que parece ser uma doença neurodegenerativa — da qual os médicos britânicos acreditam que ele não será capaz de se recuperar jamais.
  • Assim como os médicos de Charlie, os de Alfie acreditam que o dano causado a seu cérebro tornaria inútil prolongar a sua vida, razão pela qual eles recomendaram que a ventilação artificial que o mantinha vivo fosse desligada, a fim de que ele pudesse morrer — tudo tendo em vista os seus “melhores interesses”.
  • Assim como Charlie, Alfie ganhou o apoio de inúmeras pessoas ao redor do mundo, inclusive do Papa Francisco. Ele ganhou cidadania italiana, e a Itália se dispôs a transportá-lo para o Hospital Bambino Gesù, do Vaticano, sem nenhum custo para o serviço de saúde britânico. (Na tarde de anteontem (25), foi rejeitado o último recurso dos pais de Alfie à ordem judicial que impedia o vôo de seu filho a Roma.)

Existem, no entanto, algumas diferenças importantes entre os dois casos. A síndrome de Charlie, mesmo sendo rara e pouco conhecida, foi efetivamente diagnosticada. A de Alfie não. Charlie foi examinado de forma abrangente por vários tipos de equipes médicas, enquanto Alfie foi tratado quase que exclusivamente em uma unidade de terapia intensiva.

Mas provavelmente a mais importante diferença entre os dois casos é que, quando as autoridades britânicas determinaram que o suporte de Alfie fosse desligado, ele não morreu. Até o momento, o bebê está respirando por conta própria, já há mais de três dias.

Em resposta a esse impressionante rumo que vêm tomando os acontecimentos, a equipe responsável por Alfie parecia estar dando a ele água e oxigênio (não o suficiente, segundo algumas fontes), embora estivesse aparentemente negando à criança, por outro lado, níveis básicos de alimentação.

Esse procedimento em hipótese alguma pode ser considerado uma renúncia a um tratamento oneroso ou extraordinário. Assegurar que uma criança com deficiência receba alimentação e hidratação adequadas, especialmente quando ela é incapaz de obtê-las por si só, não é um ato médico, senão um princípio básico de decência humana.

Não economizemos palavras. Assim como Charlie Gard, a morte de Alfie Evans está sendo intentada pelas próprias pessoas cuja vocação seria ajudá-lo e protegê-lo. A diferença no caso de Alfie é que, por ele seguir respirando, a suposta “renúncia a um tratamento oneroso” torna-se notoriamente absurda. Em uma situação sem dúvida embaraçosa para aqueles que esperavam a sua morte, o fato de Alfie continuar respirando deixou mais clara a verdadeira natureza do ato de desligar a sua ventilação artificial.

É claro que, assim como Charlie Gard, nós tínhamos evidência mais do que suficiente para fazer um tal julgamento, mesmo antes de Alfie ser desentubado. O juiz de primeira instância que se negou a permitir que Alfie viajasse para a Itália estava preocupado com o dano cerebral causado à criança, e não com a “desproporção” do tratamento que se desejava dar ao menino. Como é possível que a deficiência de Alfie seja grave, por isso, de acordo com o juiz, seria do “melhor interesse” da criança… morrer.

Considerando o quanto ainda temos a aprender sobre o cérebro e a sua relação com o funcionamento do nosso organismo, o juiz em questão pode simplesmente estar errado. Em outro caso, um bebê que nasceu com apenas 2% de tecido cerebral normal tem agora, inexplicavelmente, um cérebro em pleno funcionamento. Estudos de caso mostram que pacientes sem camadas do córtex cerebral podem ainda assim saber quem são, contar piadas e reconhecer a si próprios em fotografias. Algumas crianças nascidas com hidranencefalia podem sorrir e chorar, entender a diferença entre familiares e estranhos e até mesmo ter preferência por certos tipos de música.

Também não se pode excluir a possibilidade de que os medicamentos no sistema de Alfie tenham suprimido as conexões talâmicas do cérebro, dando assim a falsa impressão de que grande parte do órgão tenha se danificado.

Uma criança portadora de síndrome de Down. Cada vez mais rara em países como a Islândia.

Mas, mesmo supondo que o juiz esteja correto, o que ele e outras pessoas estão defendendo é que certas crianças portadoras de deficiências graves seriam indignas de viver. Juntando este caso com o de Charlie Gard, o Reino Unido estabelece dois precedentes claros e assustadores, a partir dos quais genitores que não concordem com a visão eugenista dos médicos de seus filhos podem tê-los arrancados de suas mãos e deixados para morrer — tudo no “melhor interesse” das crianças.

Por pior que seja essa tendência, quando combinada com outras tendências do Ocidente secular e supostamente desenvolvido, é possível entrever um caminho lógico e muito claro em direção a coisas ainda piores.

Já existe um “capacitismo” sistemático atuando, por exemplo, nas elevadas taxas de aborto de crianças diagnosticadas com síndrome de Down durante o pré-natal: muitos países da Europa estão eliminando pessoas com essa deficiência em uma taxa que vai de 70 a 90%. A Bélgica e a Holanda desenvolveram protocolos legais para matar crianças depois de nascidas, geralmente por causa de julgamentos a respeito da “qualidade” de suas vidas. Muitos bioeticistas seculares têm defendido a morte ativa de pacientes com deficiência — consequência natural do fato de já estarmos provocando suas mortes, ao deixarmos de lhes dar tratamento.

Basta raciocinar um pouco. O que logicamente impediria um Estado de decidir que vários tipos de crianças com deficiência são indignas de viver, tomando-as de suas famílias à força e provocando suas mortes — no “melhor interesse” delas, é claro?

O Ocidente secularizado e supostamente desenvolvido encontra-se em um de seus mais sérios dilemas morais. Seguiremos a lógica dos princípios morais e legais adotados em países como o Reino Unido, a Bélgica e a Holanda? Ou seremos capazes de juntar forças morais para combater tais princípios de maneira direta e convincente?

Um dos momentos de maior glória para a Igreja Católica no século passado foi a condenação clara e vigorosa dos bispos alemães ao programa de eutanásia nazista para pessoas com deficiência. Não é uma analogia histórica perfeita, mas hoje a Igreja se encontra na cúspide de um momento similar. Seremos mais uma vez francos e veementes na defesa dessas pessoas vulneráveis, que correm o risco de ser mortas? Ou iremos nos render às poderosas instituições forçando uma agenda violenta, “capacitista” e que está em oposição a nosso compromisso fundamental — sem o qual corre risco nossa própria salvação eterna — de ver o rosto de Cristo nas crianças com deficiência?

O Papa Francisco admiravelmente colocou-se do lado tanto de Charlie Gard quanto de Alfie Evans. Mas a hierarquia católica europeia, de modo geral, parece fria e complacente, prestando deferência ao establishment médico-legal que vê, na aplicação da teologia moral católica a esses casos, nada mais do que um “nonsense ridículo e emotivo”.

Talvez aqueles que não foram infectados com o “capacitismo” do Ocidente secularizado e supostamente desenvolvido estejam em melhores condições de corresponder a essa expectativa. Os bispos do Brasil, curiosamente, gravaram um vídeinsistindo em que o governo britânico tem o dever de usar seus recursos para suportar aqueles que mais precisam, e por isso a vida de Alfie deve ser protegida.

É exatamente isso. Basta de deferências ao establishment médico-legal e a seus julgamentos sobre quais vidas seriam dignas de ser salvas. Agora é o momento de escolhermos. Os mais vulneráveis exigem nosso apoio inequívoco e incondicional.

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