O chocante caso do bebê Charlie Gard, sentenciado à morte pelo Tribunal Europeu dos "Direitos Humanos" contra todos os esforços dos pais para salvá-lo, traz à baila uma questão sobre a qual Gustavo Corção meditava já na década de 1970: qual seria a causa da doença mortal que está destruindo a civilização?

Para o escritor católico, a resposta parecia ser uma só: " O falso amor de si mesmo, que, voltado para as coisas exteriores e para o prazer sensível de sua dominação, nos leva até o esquecimento e o desprezo de Deus" [1]. Bom cristão e filósofo tomista, Corção não buscou uma solução inovadora para um problema que, como qualquer pessoa mentalmente sadia pode perceber, está na sociedade desde o pecado de nossos primeiros pais. Ele apenas observou o mundo a sua volta para certificar-se mais uma vez daquilo que a teologia católica sempre ensinou: o homem, ferido em sua natureza, negligencia a vida interior — a única coisa necessária — para agitar-se com as panelas do fogão; esquece-se do homem interior — e, consequentemente, de Deus — para viver das exterioridades.

O que ocorre, porém, é que esse amor enlouquecido pelas coisas exteriores gera uma desvalorização do próprio homem. Este não vale mais por si mesmo, mas apenas pelo que produz e por seu potencial de satisfação.

A sentença do Tribunal Europeu sobre a situação do pequeno Charlie Gard é um exemplo flagrante disso. Os juízes daquela corte não pensaram nem na alma do garoto nem na sacralidade inviolável de sua vida; consideraram-no apenas do ponto de vista prático da questão: para que serviria um bebê, cuja saúde se encontra gravemente debilitada? Não seria melhor deixá-lo morrer logo para abreviar seu sofrimento? Nesses termos, note-se, a diferença entre um cachorro agonizante na rua e uma criança gravemente enferma na clínica pediátrica é meramente circunstancial. O tratamento dispensado a eles, seja pelo veterinário, seja pelo médico, é exatamente o mesmo. Ambos vão morrer porque não servem para mais nada.

Aliás, é bem possível que em alguns lugares, como no Brasil, por exemplo, os tribunais constranjam o veterinário por certa indelicadeza com o cão (vide o recente caso do ator e chefe de cozinha Rodrigo Hilbert, que está sendo processado por matar uma ovelha e cozinhá-la em rede nacional). À vida humana, por sua vez, nenhum valor será dado senão o do utilitarismo.

Em 1939, o psicólogo judeu Erich Fromm anunciou uma descoberta que, sem dose de ironia, Gustavo Corção chamou de "sensacional". Tratava-se da constatação de que no íntimo do ser humano haveria uma tensão aparentemente irremediável: o cabo de guerra entre o egoísmo (ou amor próprio) e o altruísmo (ou amor ao próximo). Essa tensão, por conseguinte, estaria na base dos conflitos morais e psicológicos gerados no mundo moderno, cujas ideologias ora pendem para os extremos do individualismo e da concorrência selvagem, ora para os coletivismos forçados e campos de concentração. "É espantoso como podem duas doutrinas contraditórias ser ensinadas, uma ao lado da outra, dentro da mesma cultura [...]. E essa confusão é uma das causas mais eficazes do desamparo e do desconcerto do homem moderno", escrevia Fromm em seu artigo para a revista americana Psychiatry [2].

Apesar de Erich Fromm ter tido o mérito de redescobrir a velha antropologia cristã dos dois amores — daí o elogio de Gustavo Corção —, o mesmo psicólogo não pôde, infelizmente, encontrar a solução para o dilema. É aqui então que a sabedoria de Santo Tomás de Aquino, o doutor comum, vale mais uma vez. Em uma das questões de sua Suma Teológica, Santo Tomás trata justamente de distinguir o falso amor de si mesmo pelo verdadeiro amor-próprio:

Costumamos censurar os que se amam a si mesmos quando eles se amam segundo sua natureza sensível, e a ela obedecem. Isto, na verdade, não é o mesmo que amar-se por sua natureza racional, querendo para si os bens que pertencem à perfeição da razão, e é desta maneira que o homem se ama a si mesmo com caridade. [3]

Eis aí a resposta para o problema do mundo moderno: há, sim, um amor sadio de si mesmo com caridade, por meio do qual os homens podem amar também seus irmãos e até seus inimigos. Mas esse amor só pode ser adquirido pela ascese, pelo mergulho profundo na alma, onde habita a Santíssima Trindade, como descobriram Santa Elisabete e Santo Agostinho. Conhecendo-se a si mesmo interiormente, a pessoa humana conhece também a Deus; descobre-se uma criatura ao mesmo tempo miserável e amada pelo Divino Criador. E com esse amor incondicional de seu Senhor, ama seus irmãos por reconhecer neles a imagem e semelhança dAquele Outro a quem tudo deve, inclusive a própria existência.

Quem ousaria negar que o amor de um São Francisco de Assis ou de uma Santa Teresa de Calcutá pelos pobres e enfermos teria outra origem senão a incrível vida de oração e mortificação que ambos levavam no silêncio de seus quartos? Será que os juízes do Tribunal Europeu tratariam o bebê Charlie Gard com o mesmo desprezo se soubessem reconhecer nele o Menino Jesus?

De fato, o mundo moderno precisa urgentemente redescobrir o homem interior para aprender a amar-se verdadeiramente e, com isso, amar os seus irmãos. Caso contrário, Charlie Gard e sua família serão apenas a primeira vítima de um tribunal insan

Referências

  1. Gustavo Corção, Meditações sobre a ruína do mundo, in O Globo (26 de fevereiro de 1977).
  2. Erich Fromm, Análise do homem, 13. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, p. 14.
  3. Suma Teológica, II, II, q. 25, a. 4.

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