A Carta aos Hebreus fala do misterioso Melquisedec [i]:

Este Melquisedec, rei de Salém, sacerdote de Deus Altíssimo, saiu ao encontro de Abraão, quando este regressava da vitória sobre os reis, e o abençoou. Abraão entregou a ele o dízimo de tudo. Primeiro, seu nome significa “Rei de Justiça”; e ele é também “Rei de Salém”, isto é, “Rei da Paz”. Sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem início de dias nem fim da vida, ele se assemelha ao Filho de Deus e permanece sacerdote para sempre. Considerai, pois, como Melquisedec era grande: Abraão, o patriarca, lhe deu o dízimo dos despojos (Hb 7, 1-4).

Quem foi Melquisedec? Abraão pagou dízimos a ele — algo que cabe por justiça a Deus. Então, ele deve ter sido alguém muito importante!

De um ponto de vista mundano, Melquisedec foi o rei de Salém (depois chamada de Jerusalém). Não foi apenas um rei, mas um sacerdote que cultuou “O Deus Altíssimo” (El Elion, em hebraico). Embora alguns afirmem que esta provavelmente era uma divindade cananeia, naquele período inicial da revelação as distinções textuais e nomes posteriores usados para se referir a Deus ainda não estavam muito claros.

De um ponto de vista secular, nós vemos que Melquisedec, ainda que fosse um sacerdote-rei cananeu, honrava Abraão por suas conquistas. (Como Abraão acabara de derrotar dez reis, muitos outros reis locais procurariam tornar-se agradáveis a ele.)

As Sagradas Escrituras dizem o seguinte a respeito do misterioso sacerdote-rei:

  • O Salmo 110 indica que, quando o Messias vier, ele terá um sacerdócio derivado do sacerdócio de Melquisedec (e não do sacerdócio levítico): “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem do rei Melquisedec” (v. 4b).
  • O capítulo 7 da Carta aos Hebreus, como na citação acima, vê em Melquisedec uma prefiguração de Jesus. Observe que Melquisedec é descrito como alguém sem hereditariedade, cuja vida não tem início nem fim.
“Abraão e Melquisedec”, por Marten de Vos.

Melquisedec foi de fato uma imagem de Cristo antes da Encarnação? Dizia-se que ele não tinha pai, mãe ou hereditariedade terrena, que sua vida não teve início e não teria fim. Só poderia ser o Senhor! (O que ajudaria a explicar o comportamento atípico de Abraão de lhe pagar um dízimo.) Porém, esta certamente não é a conclusão adequada porque o texto diz que ele foi feito para se assemelhar a Cristo. Portanto, Melquisedec está mais para um tipo ou prefiguração de Cristo.

O ponto principal é que Hebreus afirma claramente que a base para o sacerdócio de Jesus Cristo tem raízes no sacerdócio de Melquisedec. Também é algo que se declara no Salmo 110.      

O autor de Hebreus declara que esse sacerdócio é muito superior ao sacerdócio levítico. Por quê? Primeiro, Melquisedec era superior a qualquer levita porque recebia dízimos de Abraão e porque vive para sempre. Para o mundo judaico, ninguém foi maior que Abraão, seu pai na fé, e ainda assim Abraão pagou dízimos a Melquisedec, um indício de que ele foi ainda maior

Segundo, o sacerdócio levítico foi inaugurado por causa do pecado. Portanto, era um substituto precário do sacerdócio na ordem de Melquisedec. Nas Sagradas Escrituras, lemos o seguinte sobre a origem do sacerdócio levítico após o incidente do bezerro de ouro:

Moisés viu que o povo estava desenfreado, porque Aarão o tinha deixado assim, expondo o povo à zombaria dos inimigos. Postou-se então à porta do acampamento e gritou: “Quem for do Senhor, junte-se a mim!” E todos os levitas juntaram-se a ele. Ele disse-lhes: “Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Cada um cinja a espada na cintura. Circulai pelo acampamento, de porta em porta, e cada qual mate até seu irmão, seu próximo, seu vizinho”. Os levitas fizeram o que Moisés mandou. E assim, naquele dia, tombaram cerca de três mil homens. Moisés lhes disse: “Hoje é o dia de vossa investidura, pois cada um enfrentou o próprio filho ou irmão. Que ele [o Senhor] vos conceda, hoje, a bênção” (Ex 32, 25-29).

Portanto, o sacerdócio de Melquisedec — superior e mais antigo — levou ao sacerdócio inferior e limitado dos levitas. Hebreus continua:

Segundo a lei de Moisés, os descendentes de Levi que se tornam sacerdotes devem receber o dízimo do povo, isto é, dos seus irmãos, embora estes também sejam descendentes de Abraão. Melquisedec, porém, sem figurar entre os descendentes de Levi, recebeu o dízimo de Abraão e ainda lhe deu sua bênção, a ele que havia recebido as promessas de Deus. Ora, aquele que recebe a bênção é, sem dúvida, menos importante do que aquele que a dá.

Além disso, os filhos de Levi, que recebem o dízimo, são homens mortais. Lá, porém, o dízimo foi recebido por alguém que se declara que está vivo. Podemos até dizer que, na pessoa de Abraão, aquele que devia receber o dízimo, Levi, entregou o dízimo; pois ele estava no corpo do seu antepassado Abraão, quando Melquisedec veio ao seu encontro. 

O sacerdócio levítico não representa a perfeição, embora com base nele o povo tenha recebido a Lei. Caso contrário, que necessidade havia de surgir outro sacerdote, do qual se diz que é sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, e não segundo a ordem de Aarão? (Hb 7, 5-11)

Portanto, a Carta aos Hebreus afirma a superioridade de Melquisedec e de seu sacerdócio em relação ao sacerdócio levítico através da seguinte lógica: 

  • Como uma pessoa inferior é abençoada por uma superior — e Melquisedec abençoou Abraão —, Melquisedec deve ser superior a Abraão.
  • Os levitas são inferiores a Abraão, que por sua vez é inferior a Melquisedec. Portanto, os levitas e seu sacerdócio estão abaixo do sacerdócio de Melquisedec.
  • Como Abraão pagou dízimos a Melquisedec, até os levitas devem dízimos a ele.
  • O sacerdócio levítico não era capaz de levar à perfeição; se fosse, por que a ordem do sacerdócio em Melquisedec teve de ser restabelecida quando veio o Messias? 

A qualquer um que venha a negar que Jesus poderia ser sacerdote porque não era da tribo de Levi, mostre-lhe a Carta aos Hebreus, que afirma que Jesus é sacerdote. Ele não é um sacerdote levítico inferior; é um sacerdote da ordem de Melquisedec, original e superior. Na verdade, o Salmo 110 (um salmo messiânico) chama-o de Senhor e sacerdote [ii]:

Palavra do Senhor ao meu Senhor:
“Assenta-te ao lado meu direito
até que eu ponha os inimigos teus
como escabelo por debaixo de teus pés!”

Jurou o Senhor e manterá sua palavra:
“Tu és sacerdote eternamente,
segundo a ordem do rei Melquisedec!” (Sl 110,1-4)

Isto também explica por que Jesus usa pão e vinho na Eucaristia, pois era esta a oferta de Melquisedec, segundo o relato do Livro do Gênesis [iii]: 

Quando Abrão voltava da vitória sobre Codorlaomor e os reis aliados, saiu-lhe ao encontro o rei de Sodoma, no vale de Savé, que é o vale do Rei. E Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho e, como sacerdote de Deus Altíssimo, abençoou a Abrão… (14, 17-19)

Portanto, quem foi este Melquisedec? Foi uma figura histórica, mas também alguém que prefigurava Jesus Cristo, nosso Sumo Sacerdote e Senhor. Embora não fosse da tribo de Levi, Jesus tem um sacerdócio superior e mais antigo que o dos levitas  — um sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec.

Notas

  1. Esta leitura está presente no Lecionário do rito romano reformado, e é lida em todo ano ímpar na Quarta-feira da 2.ª Semana do Tempo Comum (isto é, bem no início do ano civil, no mês de janeiro). No texto original, inclusive, o Mons. Charles Pope alude ao uso da Epístola na liturgia. (N.T.)
  2. O Salmo 110 dispensa apresentações: é um dos mais célebres de todos, e o próprio Cristo fez referência a ele ao falar de sua divindade (cf. Mt 22,41-46; Mc 12,35-37; Lc 20,41-44). Quem participa da Missa no rito tridentino ouve o Evangelho de S. Mateus a esse respeito no 17.º Domingo depois de Pentecostes. Não obstante a omissão dessa importante perícope evangélica em todos os Lecionários do rito reformado, a liturgia da Igreja continua dando um lugar de prestígio no Ofício Divino ao Salmo 110: ele é o primeiro a ser rezado nas Vésperas de todos os domingos e solenidades. (N.T.)
  3. No atual Missal, esse trecho do Gênesis é lido em todo ano C na solenidade de Corpus Christi, mas também consta nos formulários de Missa votiva da Santíssima Eucaristia e de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote. (N.T.)

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